23 março, 2014

O FIASCO DA MARCHA DOS REAÇAS COM DEUS PELA DITADURA É REAL, MAS TAMBÉM APARENTE

Cláudio R. Duarte



 

 
TOTAL FIASCO. Em algumas cidades a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade - O retorno"(!) não teve nem cerca de 20 manifestantes. Em São Paulo, entre 500 e 700, esbravejando com a ajuda de um carro de som seus slogans non-sense tirados da velha propaganda anticomunista, provinda do velho udenismo, e mais recentemente, dos cursos paranoicos de Olavo de Carvalho e do caldo de cultura antiesquerda, alimentado por Veja, Globo, jornalões-jornalecos diários e organizações protofascistas de todo tipo nas redes sociais.
 
Por que o fiasco? Primeiramente, porque um golpe não interessa à atual classe dominante e a seus associados no mundo. Aliás, a elite empresarial brasileira - conservadora sim, mas liberal e cosmopolita, até por obrigação de seus negócios - tem nojo dessa gente semianalfabeta, reacionária, carola e provinciana, que foi ontem às ruas. O sonho de um novo golpe é simplesmente um delírio coletivo dessa massa "zé ninguém" (Reich), o resultado direto de um desespero diante da hegemonia petista, que parece por enquanto inabalável. Como não há candidato de direita, ou melhor, de extrema-direita que os represente, apelam brutalmente para o golpe. Não faltou quem defendesse a violência da PM, as execuções sumárias de bandidos, a pura e simples eliminação das organizações de esquerda e mesmo o louvor à civilização meritocrática dos "brancos" e suas organizações reacionárias secretas (como apareceu no link direto do Mídia Ninja, entrevistando a dita senadora biônica "Dulce Holanda").
 
Acontece que um golpe não se faz assim, de improviso. Isso é ingenuidade de gente despolitizada e sem conhecimento histórico algum. A ignorância política que foi às ruas é o fruto do próprio regime militar, dos anos de deseducação e desinformação. O golpe de 64, como mostrou René A. Dreifuss (1964: a conquista do Estado), foi o fruto de uma longa conspiração de classe, unindo forças da burguesia nacional e internacional, dos militares, de institutos como IPES e IBAD e, é claro, da CIA, envolvendo diretamente o embaixador norte-americano e o presidente Kennedy. É óbvio que o lulismo não assombra mais nenhum pouco as elites atuais, que vêm ganhando muito com o governo conservador e fiel aos investidores de todo o mundo. Além disso, o modus operandi fascista da PM e as leis de exceção (o novo AI-5 da Copa) estão em pleno curso. Não precisa de ditadura alguma para controlar a massa trabalhadora e a ralé dentro de certos limites. Basta o atual bota pra quebrar da PM e a criminalização dos movimentos em geral (é o que dá para sentir perfeitamente numa das últimas capas da revista Veja do mês de março).
 
Alguns colegas de esquerda dizem então que temos de parar de falar nisso e passarmos ao que interessa. Pois é. Só que não é bem assim. Se a ideologia fosse só o que aparece como fato nas ruas, seria muito fácil "transformar o mundo".
 
O "fascismo à brasileira" tem uma raiz autoritária e religiosa vinda do colonialismo escravista português. Este "formou" negativamente, a seu modo, a cultura e o povo brasileiros. Uma espécie de fascismo que, por isso mesmo, não consegue aparecer solidamente nas ruas. Daí também ele aparecer como uma massa tosca, dispersiva, cuja frágil unidade só pode ser a de um grito irracional por Ordem. 
 
Ou seja, na base, a mesma e velha necessidade reacionária de forma, diagnosticadas pela melhor literatura nacional (Machado de Assis, Mário, Drummond etc.), uma forma que essa gente sente estar ausente do país. Jamais perceberão eles que isso é o resultado da forma coisificada do mercado e do Estado vigentes, o fruto perverso de nossa formação capitalista singular, herdeira do vale-tudo escravista. Eles apelam então para o uniforme militar: a forma absoluta, ditatorial, aquilo que subjaz à ideia de um gigante nacional integralista. E isso talvez desde os primeiros anos da República, com a chamada República da Espada. A massa protofascista nacional não costuma vir às ruas apenas devido a fatores casuais, de organização ou falta de liderança etc., mas por razões objetivas, intrínsecas à sua de-formação cultural, num amplo sentido. Essa deformação constitui o espírito da massa popular brasileira, principalmente das classes médias, como um todo.

Trata-se de uma cultura essencialmente antipública, familista e privatista. Herdeiras da casa-grande e senzala, ela teme a ideia de socialização como se fosse o Capeta. A socialização aparece a ela como a ausência final da forma - a erosão de seu casulo de segurança, só possível em seus bunkers de classe. Daí o seu ódio irracional da política em geral, sua paranoia securitária, a quase impossibilidade de tomada de posições claras em praça pública e o desejo de retorno à ditadura ("intervenção militar constitucional" dizem eles, de maneira alucinada, sem nenhum respaldo jurídico-legal). O desejo dessa massa é reacionário em sentido integral: o de servir a um grande Pai autoritário que colocaria fim às suas angústias, trazidas pela desvalorização do trabalho, o desemprego, a falta de prazer na vida adulta há muito sacrificada, enfim, o medo da proletarização.
 
Assim, uma coisa é contar essa meia dúzia de "revoltados on line" que tiveram o despudor de ir para a rua defender o horror e que felizmente foram ridicularizados até pela mídia mainstream, bem outra é compreender o HORROR instalado na cultura e no psiquismo do cidadão médio (o mal-estar da civilização brasileira, aqui, para situarmos o conceito de Freud), embutido na ideologia racista e meritocrática (aliás, não havia praticamente negros nessas passeatas), enfim, implantado no modo de ser de instituições patriarcais e autoritárias do país, cuja maior expressão é essa glorificação cínica da violência da PM e dos torturadores de 64, em nome de Jesus. A caixa de comentários da Veja e do Uol saiu às ruas, mas continua em casa, como uma massa reacionária invisível, com ódio de toda luta pela emancipação.
 
Nesse sentido, o fiasco não foi total. Eles foram à rua e trouxeram à tona demandas reacionárias que calam fundo na "alma" da classe média, a classe que saiu às ruas em Junho e que a esquerda otimista existente insiste em não querer compreender em seu profundo reacionarismo.

Basta assistir a este vídeo do FACEBOOK para reconhecer o reacionário em seu habitat original:
 
 
 
Isso vale como uma micrologia do fenômeno em pauta. Esse cidadão não foi para a Marcha, deve estar cuidando de seu carrão aqui ou nos EUA, mas é o idiota protofascista nacional típico, que apoiaria qualquer intervenção militar que aparecesse no horizonte. Não nos enganemos quanto ao fenômeno de rua. Uma crise maior na reprodução do capital trará à tona esses mesmos sentimentos reacionários à praça. Ele é muito mais latente e radical do que se imagina. Por isso mesmo sua manifestação é se dá de dentro das casas, das redes sociais e, aqui, dentro de um automóvel.
 
 
Subestimar o ovo da serpente autoritária nacional é um positivismo ingênuo. A ação antifascista, que reuniu seus 1500 manifestantes em São Paulo, fez a sua parte ontem. Fascistas não passarão!
 
























































09 março, 2014

A greve dos garis no Rio: são as lutas de março fechando o verão sangrento com vitória

Cláudio R. Duarte
 
 
"Que mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi legado na Terra (...). Olhos tão habituados às sombras, como os nossos, dificilmente conseguirão dizer se sua luz era de uma vela ou a de um sol resplandecente." (Hannah Arendt)
 
"Toda vez que alguém falar que vivemos uma democracia racial, mostre essa foto"
(Garis em greve no centro do Rio de Janeiro - Foto: Mídia Ninja)
 
Durante essa semana de carnaval, os garis do Rio de Janeiro, após uma longa jornada de lutas difíceis sob a coação da prefeitura (apelando até mesmo para o uso vergonhoso de milicianos como novos capitães do mato) e da grande mídia, deram uma grande lição para as esquerdas neófitas na rua e para as velhas lideranças sindicais pelegas, totalmente arcaicas, alienadas e comprometidas apenas com o seu próprio umbigo.

Na boa análise de Idelber Avelar:

"Eles enfrentaram: um sindicato pelego, um prefeito truculento, uma das polícias que mais mata no mundo, o maior império de comunicação da América do Sul (que hoje dedicou três páginas inteiras de seu jornal a desqualificar a greve e puxar saco do prefeito) e as tradicionais milícias governistas, que disseminaram mentiras de todo tipo, como a de que a greve era ação de uma minoria de 300 pessoas.
...
E venceram! Obrigado, garis do Rio de Janeiro, por ensinar de novo o mapa da luta! Pelegos em todo o Brasil estão, neste momento, tremendo, porque sabem a enormidade do precedente que se abriu nesta semana. Notem que a derrota do governo foi tão retumbante que a reunião que selou a vitória dos garis aconteceu no TRT. Paes jamais os recebeu.

Que aqueles que desqualificaram luta tão justa se recolham agora à sua vergonha. E vem mais por aí!"


Gostaria ainda de somar a esta bela análise de Avelar a questão da força "ética" e "política" do trabalho proletário dos garis. Sim, o trabalho proletário - pois é disso mesmo que se trata e que infelizmente quase não ousa mais dizer o seu nome. Como sempre foi, esse trabalho é o inferno do negativo, e que se colocou de novo como negação em praça pública. Não se trata de moral privada, nem de amor a uma tarefa alienada, muito menos da vocação protestante para "servir". E com esse elemento decisivo que entra em jogo e que a esquerda tem esquecido. Trata-se do plano da ética, pois todos que os apoiaram sabem ou intuem muito bem o que se trata: uma luta autônoma, madura, independente. Segundo ponto: um trabalho público, necessário, árduo, sujeito à total invisibilidade e a condições e salários vis; enfim, terceiro ponto, um movimento vindo de gente "humilde", de baixo, que soube se articular contra o peleguismo. E venceu a sua vitória apertada, jamais redentora. Antes que os amigos kurzianos reclamem, diga-se que não é de modo algum a emancipação do mercado e do trabalho, mas uma ruptura intempestiva do continuum de servidão e coisificação. Algo que lembra a "Grande Recusa" marcuseana.

 

A emancipação social pressupõe essa formação, que o sistema existente suprime. E assim o faz começando pela supressão da memória social. Para nós, deve ela ficar na lembrança, tal como o MPL em junho e o enquadramento policial arbitrário de fevereiro passado.

 
Em tempos sombrios, à teoria que se perdeu, ou foi suprimida, só resta mergulhar na práxis alienada, negativa, escura. É lá que está a fonte da negatividade, é de lá que pode emergir em ato a negação determinada.
 
(Março de 2014)