10 setembro, 2013

O fetichismo na mídia virtual e a regressão da leitura


O fetichismo na mídia virtual e a regressão da leitura



por Cláudio R. Duarte




Quem utiliza a internet todo dia, em especial as redes sociais, já percebeu o modelo de percepção e de capacidade intelectual solicitado, incentivado, exigido e imposto pelo meio. Os traços básicos são conhecidos: predomínio da imagem sobre o texto, grande fragmentação da informação, proliferação de publicidade e de mensagens diretas do tipo “memes”, “palavras de ordem” ou "hashtags", redução de mensagens a poucos caracteres, resultando em: atenção fluída ou baixo nível de concentração, baixa retenção espontânea do que foi lido, ouvido ou visto, grande isolamento do espectador ou leitor. Quem entra em sala de aula todo dia também já percebeu que algo ainda muito mais complicado parece estar ocorrendo a partir disso: essa mesma forma de percepção e consciência fragmentada domina a consciência e a sensibilidade de crianças e jovens, aparentemente os moldando desde a primeira infância.

Na literatura de negócios vão aparecendo títulos como: “3 minutos para o sucesso”, “Como apresentar as suas ideias em 30 segundos – ou menos”, “Por que as pessoas de negócios falam como idiotas”, “Apresentações eletrizantes”, “Ideias que colam: por que algumas ideias pegam e outras não”, “Como fazer apresentações espetaculares”, “Detalhes que são mágicos para o sucesso da comunicação”...

Quando Theodor W. Adorno escreveu "O fetichismo na música e a regressão da audição" na década de 30, ele descortinava uma tendência universal de regressão dos sentidos e da experiência social, que esboçava de modo certeiro as linhas de uma grande mudança antropológica. A música se fetichizava como mercadoria do entretenimento e do marketing e os homens perdiam a capacidade de ouvir composições complexas. O material de Adorno era a música no rádio e no cinema, ambos correspondendo, em termos de estruturas sociais mais fundas, à vivência apropriada e arruinada pelo trabalho alienado nas fábricas e nos serviços desqualificados.[1]

 

Na verdade, o ensaio adorniano compartilhava do diagnóstico elaborado pelas pesquisas de Walter Benjamin sobre a Paris do Segundo Império napoleônico: o diagnóstico da "atrofia da experiência”, tal como formalizada pela lírica de Baudelaire. Nesta cidade sitiada, bombardeada pela propaganda, esquartejada pelas reformas urbanas do barão de Haussman, sob o domínio da censura da imprensa e da pura informação, a experiência coletiva se reduzia cada vez mais à mera "sensação" e à "recepção de choques”.[2]

 

Nos anos 60, Herbert Marcuse aprofundava ainda mais esse diagnóstico frankfurtiano observando, nas tendências do capitalismo avançado, o novo papel da tecnologia como racionalidade administrativa:
“a dominação se transfigura em administração” (...) Com o progresso técnico como seu instrumento, a não-liberdade – no sentido da sujeição humana ao seu aparelho produtivo – é perpetuada e intensificada na forma de várias liberdades e confortos. A nova característica é a racionalidade irresistível nessa empresa irracional, e a profundidade do precondicionamento que modela as pulsões e as aspirações dos indivíduos e obscurece a diferença entre a falsa e a verdadeira consciência.”[3]

 

O diagnóstico dos pensadores de Frankfurt estaria ultrapassado? Para alguns ideólogos de nosso tempo, o mundo “pós-industrial” teria instaurado uma nova “era das redes” e uma nova “sociedade do conhecimento”, estando em vias de superar a problemática da alienação e dessa espécie de mutação antropológica regressiva. Após o apogeu do jornal impresso e da televisão, as mídias virtuais prometeriam, por meio da radical descentralização de sua produção e consumo, a sonhada emancipação do seu espectador como produtor de cultura. No entanto, é possível questionar se aquela tendência regressiva não se completa ainda mais gravemente, em muitos pontos, através desse novo meio técnico.

 

Isto menos por causa da nova técnica, que certamente contém boas possibilidades de comunicação e aprendizagem, e muito mais pela hegemonia das relações sociais coisificadas e espetacularizadas no coração da sociedade capitalista mundial. Essas relações ainda geram muito provavelmente a alienação cognitiva e psíquica, a partir do alto das hierarquias empresariais e do controle sobre a forma de organização do novo meio, isto é, moldando o formato das redes sociais e condicionando estruturalmente a percepção e a formação do juízo crítico. Isso sem falar na alienação dos trabalhadores da sociedade da informação e das redes, que impera do mesmo jeito que na sociedade industrial. A despolitização das recentes manifestações de junho de 2013 é somente a ponta desse iceberg da pseudoformação.
 

Como apontou Adorno, o fetichismo musical consiste na perda da experiência da música como síntese compositiva. A totalidade de uma peça rebaixa-se à mera coisa isolada, fragmentada, desconectada das ligações complexas da chamada música séria. Esta mesma pode se degradar em adaptações e arranjos palatáveis para o grande público. A música popular perde também o seu caráter artesanal, rústico, resistente. Uma música que, no final das contas, nem mais é usufruída e consumida como tal, mas simplesmente celebrada por seu valor de face, seu valor publicitário. No limite, consome-se o valor de troca do ingresso e o status social de ter presenciado um concerto clássico. Na internet, a difusão de mensagens que podem ser “curtidas” e “compartilhadas” à vontade, segundo a lógica do status e do simples sinal de positivo (o like ou  curtir) tem um forte ar de semelhança com esse processo de degradação da música.
 

Quanto ao momento da produção, conforme Adorno, a construção musical qualitativa é substituída pelo "emudecimento dos homens", pela "morte da linguagem como expressão", pela "incapacidade de comunicação", reduzindo-se a esquemas repetitivos, a linhas melódicas adocicadas, encantatórias e ofuscantes, levando à liquidação da dissonância e da tensão entre as partes da composição, em suma, à predominância do efeito, exemplificado pelo refrão de fácil absorção. Aqui, a comparação da internet com a indústria cultural há muito degradada, por exemplo, o meio jornalístico, é arrasadora: a internet passa à fetichização de segundo grau, ao reencantamento do coisificado pela mera informação ou pelo empirismo e o positivismo científicos, no início do século XX.

Pelo lado do consumidor, ainda segundo Adorno, a música nem mais conseguia “entreter”; antes virava mero fundo musical para uma audição atomística e desconcentrada, que rejeitava tudo o que saía do costumeiro:
 
“se é verdade que, em se tratando da música superior, a audição atomística significa decomposição progressiva, também é inquestionável que no caso da música inferior já nada mais existe que seja suscetível de decomposição. Com efeito, as formas dos sucessos musicais são tão rigidamente normalizadas e padronizadas, até quanto ao número de compassos e à sua duração, que em uma determinada peça isolada nem sequer aparece uma forma específica. A emancipação das partes em relação ao todo e em relação a todos os momentos que ultrapassam a sua presença imediata inaugura o deslocamento do interesse musical para o atrativo particular, sensual. É significativa a atenção que os ouvintes dispensam não somente a determinadas habilidades acrobáticas instrumentais, mas também aos diversos coloridos dos instrumentos enquanto tais”.[4]

Como na internet, há quase nada mais a decompor ou, com perdão da ironia, ler en abyme: as partes de um “meme” se tornam via de regra imediatamente inteligíveis, padronizadas por uma verdadeira indústria de rótulos, frases feitas e gracinhas, remetendo às vezes a velhos ícones da indústria cultural, variando somente detalhes insignificantes, destacando-se a técnica ou o traço isolado em si mesmo. A grande incomunicação cotidiana sai “tecnicamente enobrecida" por essa comunicação aviltada, com o plus prazeroso do “véu tecnológico” para as mesmas relações de dominação de sempre. Por meio do “fetichismo tecnológico”, Marcuse dirá mais tarde, os homens perpetuam o reino da necessidade, dos meios, do trabalho alienado, do capital.[5]

Por outro lado, o ouvinte “regressivo”, tentando fugir à pura coisificação do espírito, contido no bem cultural, se caracterizaria segundo Adorno pela “pseudoatividade” e pela identificação masoquista com o poder ou com as estrelas do espetáculo. Na internet, o meio sugere uma nova democracia do estrelato: tornando-se aficionados, experts ou amadores, alguns sonham com o sucesso repentino de uma megacompartilhamento ou megacurtida – o sucesso por definição de uma “estrela cadente” do veloz espetáculo da desleitura ou da leitura "em diagonal", que se sucede diariamente.  

Na música ligeira, coisificada, o espaço abstrato predomina sobre o tempo qualitativo da música séria. A questão para o crítico é sempre objetiva, contudo, pois a música serial teve de internalizar essa experiência social do choque e fragmentar-se no espaço, abrindo tensões e cicatrizes na composição tradicional. O mesmo parece se pôr para Adorno com a forma do ensaio, que já não pode ter nem a forma positiva do tratado ou do sistema acabado. Não obstante, o ensaio visa ainda ao todo antagônico, por meio da visão hiperconcentrada do particular. As redes sociais levam ao paroxismo a vivência de choque como vivência do espaço e da imagem – mas desconectadas, descontraídas, relaxadas pela recepção basicamente isolada (mas não individualística).

A tarefa do crítico, do ensaísta, do prosador, do professor, do educador talvez seja, como no gesto lírico heroico de Baudelaire, transformar esse espaço de voragem do leitor crítico, sob a coação dessas vivências de choque, ainda uma vez numa experiência do negativo, a começar pela crítica do meio tecnológico como um fim em si, seu desvelamento como meio efetivo atual de dominação social e adiamento da “pacificação da existência”[6].



Notas:




[1] Theodor W. Adorno, “O fetichismo na música e a regressão da audição” [1938] in:___. Textos

 escolhidos (Os pensadores). 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

[2] Walter Benjamin, “Sobre alguns temas em Baudelaire” [1938] in: Textos escolhidos, op. cit., p. 31 e 33.


[3] Herbert Marcuse, One-Dimensional Man – Studies in the ideology of advanced industrial society [1964]. London/New York: Routledge, 2002, p. 35.


[4] ADORNO, ibidem, p. 184.


[5] MARCUSE, ibidem, p. 239.

[6] Idem, ibidem.


20 agosto, 2013

Leandro Narloch - O "guia correto" do Idiota burguês neoliberal do Brasil

Leandro Narloch - O "guia correto" do Idiota* burguês neoliberal do Brasil



por Cláudio R. Duarte

                                        "Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo." (Walter Benjamin,  Sobre o conceito da história, Tese 7, 1940).


A direita liberal -- protofascista desde as suas mais profundas raízes -- vem renascendo com vigor no mundo todo nas últimas décadas, principalmente após a derrocada do socialismo de caserna no Leste e do triunfo da ideologia neoliberal.



Como é de se esperar em tempos sombrios e regressivos como esses, o livro do jornalista Leandro Narloch -- Guia politicamente incorreto da história do Brasil [1] -- tem todos os ingredientes para se tornar, como vem se tornando, um best-seller do marketing reacionário. Com a força de outros “intelectuais” da direita militante (Reinaldo de Azevedo, Augusto Nunes, Marco Antônio Villa, Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Diogo Mainardi, Luiz F. Pondé, Eliane Catanhêde), ele vem gerando muitos entusiastas e sequazes, encorajando-os a mostrar a sua careta incivil, apolítica, individualista e concorrencial sem freios.



Nada de novo no front se contarmos o liberalismo como a forma mais natural e mais pura da consciência coisificada do sujeito burguês moderno, aprisionado ao caráter fetichista das relações sociais mercantilizadas. O que é novo no neoliberalismo, talvez, é a sua fé cretina incondicional na selvageria do mercado como a única alternativa de vida possível. É esse o pano de fundo mais ou menos confesso do livro, reduzindo a esquerda à burrice e ao pesadelo totalitário.

 


No livro de Narloch, os homens são e serão o que sempre foram na sociedade burguesa: acumuladores de dinheiro e poder -- tudo sem muita angústia, muito menos drama --, embora sempre com alguns laivos de um tênue espírito de cidadania ou mesmo de nacionalismo, confundido com a admiração pelos feitos da elite nacional. Com o que estamos muito próximos do ideal da nação grandiosa (o gigante verde-amarelo) há muito desbotado pela globalização, e que a introdução da obra prometia engavetar. Apesar do título do livro, afinal, o que pode haver de incorreto em tudo isso? A pretensão de ser politicamente incorreto é puro marketing. O que há é a propaganda ostensiva do conservadorismo e da normalidade capitalista, isto é, a glorificação dos velhos temas da história oficial positivista retomados de maneira polêmica, em chave revisionista, contra a crítica social da esquerda.
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Assim, o que haveria de incorreto com os bons colonizadores portugueses, que mesmo sendo escravistas nem sempre “levavam a melhor” sobre os seus escravos?!; ou com os valentes bandeirantes paulistas, que, miscigenados e muita vez maltrapilhos, ajudaram a formar a grande terra brasilis e a civilizar os índios (estes sim, derrubadores de floresta); ou ainda com a Inglaterra, a maior interessada no fim do tráfico negreiro por motivos humanitários!? Aliás, ficamos sabendo por meio de Narloch que os portugueses aprenderam e desenvolveram efetivamente o tráfico de escravos com os africanos, além do fato que no longo processo de sua abolição estes lutaram contra o fim da escravidão... O que isso significa em termos de reversão do sentido funesto do escravismo colonial? Em que isso desmentiria a dominação europeia sobre a África? Para o autor isso tudo não vem ao caso, o que importa é trazer dados supostamente novos e desconsiderados pelas correntes críticas das ciências sociais (que na verdade são bem conhecidos, sim, desde pelos menos os anos 1960). E o que haveria de incorreto com o nosso Segundo Reinado, com D. Pedro II e com a elite liberal-conservadora, que evitou "revoluções e reformas radicais", garantiu as "liberdades individuais"(p.274) e a "liberdade gradual dos escravos" (p. 288)?! Sim, por que não, a liberdade de senhores patriarcais, os donos de capital humano, sem vergonha de pertencerem à sua classe... O que pode haver de indigno, enfim, com a "ditabranda" (sic, p. 324), segundo as versões altamente suspeitas da Folha, do Coronel Brilhante Ustra, chefe do Doi-Códi, ou de Marco Antônio Villa (o historiador predileto da Veja), todos citados como fontes fidedignas – um regime militar que torturou “apenas” uns 2 mil bandidos e desocupados, matando só mais uns 380 membros da esquerda “violenta” e “autoritária” de vocação stalinista e polpotiana, uma ditadura que "foi uma das menos atrozes de todo o século 20"(!, p. 324), e que enrijeceu somente após 68, como mera reação à guerrilha revolucionária, enfim, um regime modernizador e portanto progressista, que teria feito aumentar e redistribuir a renda nacional na época do milagre brasileiro!?[2]

Desse modo, muito pouco há de politicamente incorreto em tudo o que essa versão requentada da História Oficial, escrita pelos vencedores de sempre, sempre nos contou. Daí a conclusão do livro há muito deduzida e esperada pelo leitor crítico: "Viva o Brasil capitalista" (p. 336).
O pressuposto cego desse livro que se quer “tão sábio” e “tão esperto” (com algo mesmo da cegueira nietzscheana) é que as relações sociais fundamentais só podem existir de fato como relações entre as coisas no mercado, como troca coisificada entre pessoas privadas, entre mônadas funcionais que despendem e fazem circular trabalho humano homogêneo, igual, abstrato. Assim, tudo e todos praticamente se equivalem somente na medida em que são seres que trabalham, embora uns valham mais e tenham justamente mais liberdade do que outros. A elite conservadora do país seria então exemplar, mesmo sendo o paradigma máximo do privilégio da vida ociosa fundada na dominação de classe e do capital. Por isso, ainda, para o jornalista, o tráfico negreiro parece ser no fundo uma troca justa entre potentados europeus e reinos africanos, que preservavam interesses autônomos iguais – ou pior, é como se a gênese do processo de acumulação capitalista tivesse realmente mais a ver com a vontade de lucro e de luxo dos reis africanos do que com as leis capitalistas da acumulação e as imposições do sistema de plantations, ou seja, é como se a África fosse um parceiro comercial soberano, não submetido à Europa e ao controle do Capital, enfim, como se o trato negreiro não constituísse parte fundamental da lógica alienada da valorização, que no limite inverteu os termos entre produção colonial e o comércio altamente lucrativo de escravos.[3] Tudo se passa como se a colonização não fosse um processo de exploração e pilhagem do Brasil e da África regido por decretos e leis administrativas, aliás, o tempo todo suspensas e sujeitas ao arbítrio e ao capricho dos proprietários, um laboratório do atual estado de exceção normativo do capitalismo mundializado. Como se aqui, então, os índios e os negros transformados em escravos fossem, via de regra, bons "amigos"(sic!) de seus senhores e não tivessem resistido e lutado contra o seu cativeiro, um raciocínio esdrúxulo, na pior tradição freyriana reabilitação da escravidão.
 
Aos trocadores de mercadorias, como mostrou Marx, o valor aparece como uma propriedade natural das coisas (incluindo aí a própria força de trabalho), assim como o mercado aparece como um sistema que serve verdadeiramente aos homens de maneira totalmente justa, conforme o que cada um exige e tem a oferecer ao mercado. O neoliberal radicaliza a crença idiota nessa justiça (supra)terrena, praticamente excluindo o campo dos ideais e a aura burguesa dos direitos e da civilidade, o que Narloch e a mídia em geral entendem pelo que é socialmente justo ou politicamente correto, que nada mais é que um ressentimento dos pobres, que adotam o falso "papel de vítimas ou bons mocinhos"(p.26). Narloch suaviza o terror capitalista, tendendo a tomar a exceção pela regra, o caso contingente e singular pela essência. Se o neoliberalismo é o pensamento e a prática que afirmam secamente a concorrência, reduplicando de modo cínico a ideologia materializada pelas relações sociais naturais do sistema produtor de mercadorias, o jornalista cria uma série de álibis para ele, com vários graus de hipocrisia e cinismo, para justificar uma hegemonia de classe e um novo conformismo histórico.
Não há nada de politicamente errado com o sistema existente. Para o neoliberal não pode haver injustiça no mercado ou nos empreendimentos comerciais em si, que geram a acumulação social de riqueza (-- como capital privado, é verdade). O injusto é sempre um justo resultado das ações livres de cada um: o resultado do empenho diferencial e naturalmente desigual de cada competidor no mercado. Eis o que o converte em um neodarwinista social radical ou potencialmente radical e, assim, em um protofascista. Para tal caráter autoritário, como escreveram os frankfurtianos, “a celebração do poder e a irresistibilidade do mero existir são as condições que levam ao desencanto. A ideologia já não é um envoltório mas a imagem ameaçadora do mundo”, restando então “o pensamento estereotipado, o sadismo encoberto, a adoração da força, o reconhecimento cego de tudo o que é eficaz”.[4] Os portugueses e os bandeirantes foram muito eficazes em sua empresa, mais que os índios nativos, isso é o que importa. Também os índios buscavam vantagens o tempo todo, e “o extermínio e a escravidão indígenas”, segundo o autor, “não seriam possíveis sem o apoio dos próprios índios, de tribos inimigas” (p. 39), com o que praticamente desaparece a sua coisificação e sujeição aos interesses capitalistas dos colonizadores.


Também o golpe militar e até a tortura rotinizada tornam-se mais ou menos justificáveis porque foram eficazes em preservar o mercado e a propriedade privada: “Alguém poderá dizer que a reação dos militares ao terrorismo foi exagerada. (...) Isso pode ser verdade, mas não era seguro pensar assim naquela época. Qualquer notícia de movimentação comunista era um motivo razoável de preocupação” (p. 321). O “trator” da ditadura sai legitimado: “Se o governo e a sociedade brasileira mantiveram o país longe dos comunistas, existe aí um motivo para nos sentirmos aliviados: o país pôde avançar livre dos perigosos profetas da salvação terrena” (p. 336-7). A injustiça social surge apenas quando o Estado ou as estratégias políticas intervêm no mercado ou este último é regulamentado por normas sociais universais – em suma, por algum tipo de relação social totalizante exterior ao mercado, que pode bloquear ou impedir os negócios. A injustiça seria apenas o que interfere na livre iniciativa -- ou antes, no capricho dos proprietários. (E por que não?, aquilo que interfere no capricho dos jornalistas que podem também retrabalhar e remendar à vontade os processos históricos, a fim de criar, como fofocas da vida privada, as suas próprias versões da história).
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Não é que o livro de Narloch trabalhe com fatos mentirosos ou fantasiosos. Sua interpretação é que é uma lástima. Ocorre que a verdade objetiva e contraditória do processo não conta: o que vale é a narrativa apimentada a partir de fatos isolados, retirados de seu contexto e do sentido geral do processo, que é profundamente negativo. O que merece crédito é a provocação, o dado sensacional e de fácil digestão no mercado, já sem o pau chutado da barraca das estruturas históricas fundamentais. Tudo seria uma questão relativa de ponto de vista -- e já não há qualquer visão de totalidade possível, qualquer distinção entre essência e aparência, regra e exceção, que permita revelar processos sociais contraditórios, que confirmam os fenômenos e as aparências diversas, mas não os toma como a essência ou como capazes de dissolver o sentido mais geral do processo capitalista de acumulação. De resto, o livro é bom em levantar falsas polêmicas como as do jovem Machado de Assis como “censor do Império” (como se este não fosse o maior crítico dos costumes da burguesia nacional e do próprio Império), ou sobre qual era o “verdadeiro” caráter de Zumbi, Euclides da Cunha ou José de Alencar (como se as suas obras se reduzissem à biografia dos autores), qual a validade estética e a quem atribuir as muitas obras de excelência do escultor Aleijadinho (segundo Rodrigo Naves, um dos maiores artistas plásticos brasileiros), ou qual é a “verdadeira origem" do samba e da feijoada (como se eles não tivessem se desenvolvido e proliferado precisamente entre as camadas populares -- e não a partir de ações da elite ou do fascismo de Vargas).

O livro funciona, assim, como guia de mistificação para os típicos leitores há muito cegos da revista Veja. Como sempre, eles estão sedentos pela justiça da troca de equivalentes. À consciência fetichista segue-se o discurso apologético de que tudo se deu no final das contas de maneira racional e progressista desde a colonização -- a não ser por distúrbios da lógica da equivalência, como no caso do Acre, p.ex., que paga muito menos impostos do que recebe de investimentos do governo federal: "Já o Acre, produtor de uma borracha mais cara, nunca mais daria dinheiro" (p.235). E o mesmo para outros Acres vagabundos, parasitas da nação: “Rondônia, Roraima, Amapá, Tocantins, Alagoas...” (p. 239); com o que o velho desejo separatista do Sul e Sudeste ganha novo alento. Aliás, o exemplo citado dos quilômetros de metrô que poderiam ter sido feitos em São Paulo com esse dinheiro hoje vem bem a calhar no livro de Narloch, que não esconde suas preferências tucanas. 


O mesmo para o caso dos guerrilheiros-terroristas contra a Ditadura, que apenas sangram os cofres públicos com indenizações, sendo verdadeiros heróis os militares, que defenderam a nação contra o espectro do comunismo (claro que distorcendo o processo real em curso, meramente reformista, legitimando assim a contrarrevolução preventiva e silenciando toda a conspiração imperialista arquitetada por Washington no caso). Narloch, como os liberais desde Adam Smith, recalca e esquece, assim, que o que se ergue a partir de suas honoráveis relações coisificadas só pode ser um processo social autonomizado, alheio ao controle de todos -- essa a verdadeira ditadura sanguinária, que ganha a vida própria de um deus-fetiche da acumulação – e que foi recuperado e reempossado manu militari através do golpe de 1964. Um processo objetivo que os neoliberais simplesmente idolatram e transfiguram fantasiosamente como a "mão invisível"... não da escravidão e do infortúnio coletivos, mas da justiça e da democracia...
Para o neoliberalismo, tudo isso tem seu ponto de partida nos atos livres do indivíduo burguês. Eis então um modo relativamente simples de equacionar os processos sociais opacos e hipercomplexos: as estruturas são redutíveis a ações individuais, a atos voluntários, a interesses particulares - ou, na versão de Narloch, a feitos individuais bem-sucedidos ou malogrados (a guerra do Paraguai como culpa de um tirano, p. ex., ou as bandeiras como empreendimentos heroicos de gente chã e pedestre -- dois massacres históricos aliás praticamente inexistentes, segundo sua visão “alternativa” dos fatos etc. A estrutura desaparece sob indivíduos e fatos contingentes ou evanescentes. Como dizia Margareth Thatcher, a sociedade é uma ficção, o que existe são indivíduos isolados e suas ações independentes -- que podem ser interpretados ao bel-prazer do historiador.
 
Da mesma maneira, o fracasso é sempre individual, ou seja, é culpa dos próprios indivíduos que não deram duro o bastante para afirmar a sua liberdade -- nunca é o resultado de um mecanismo social cego, alienado, monstruoso, que corre por trás das costas dos envolvidos. O que se afirma é a eternidade do atual curso do mundo, tido como o melhor dos mundos possíveis. O que se afirma é, como viu Chico de Oliveira, uma "subjetividade antipública" e uma ideologia da "impossibilidade do dissenso"[5] -- aqui, sob as vestes esfarrapadas do jovem rebelde que só aparentemente destrói o grande consenso, já que apenas o simula destruindo a objetividade da história e a universalidade da luta pelos direitos sociais. Num outro texto, aliás, após a eleição de Dilma, o autor exala todo o seu preconceito antipobre: "seria ótimo não precisar conviver com os 30% de eleitores que, segundo o Datafolha, não se lembravam, duas semanas depois da eleição, em quem tinham votado para deputado" ("Sim, eu tenho preconceito", Folha de São Paulo, 11/11/2010). Ocorre que também a classe média idolatrada não sabe em quem vota, quando vota na quadrilha campeã em corrupção de FHC, Serra, Alckimin e Aécio, como vem se revelando nos últimos anos.

A hegemonia cultural da esquerda, segundo Roberto Schwarz operante em determinado momento dos anos 60, foi há muito desfeita.[6] O clima difuso do livro é um profundo sentimento reacionário e antipopular. Um sentimento de um povo, que, vitimizado e heroicizado pela historiografia populista ou crítica -- na verdade teria sido um povo reacionário como seu autor: um povo feito de índios exterminadores de índios, de escravos traficantes de escravos, mais tarde malandros da trapaça e do parasitismo social. Um sentimento, em suma, de que esse povo foi via de regra estúpido e patético. E que formaria hoje um exército disfuncional para o sistema -- aqueles 40 milhões, metade da PEA nacional, que o então presidente FHC chamou de “inempregáveis”.


De fato, tão inempregáveis quanto o capital improdutivo, que "vagabundeia" especulativamente de bolsa em bolsa, apartado do mundo, no contexto da crise estrutural do capital -- a verdade "desagradável" maior, que o livro furioso de Narloch desconhece totalmente. A direita, com sua idiotia congênita mais uma vez revelada, louva a si própria como mero Capital personificado, e assim vai consolidando o seu "sonho de um apartheid total"[7].
Notas:



* Do latim idiota, originado do grego antigo ἴδιώτης (idhiótis), "um cidadão privado, individual", derivado de ἴδιος (ídhios) , "privado". Usado depreciativamente na antiga Atenas para se referir a quem se apartasse da vida pública.

[1] NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. 2.ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Leya, 2011. Doravante, cito as páginas no corpo do próprio texto.
[2] Há momentos no livro de franco disparate no uso e na interpretação de números estatísticos. Como no exemplo do milagre brasileiro (p.332-3). Em 1970, os melhores críticos já viam que, apesar dos progressos urbano-industriais qualitativos, o processo autoritário de modernização era desigual e conservador, combinando “altas taxas de incorporação [de trabalho], expulsão e marginalização [social]”, concentrando a renda e “visando implícita ou explicitamente ampliar o mercado das classes médias, intensificar a capitalização e promover uma nova onda de expansão” fundada necessariamente nessa desigualdade (TAVARES, Maria da Conceição. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 194). Ou ainda, como apontava Paul Singer: “Não há como desconhecer que a política trabalhista posta em prática após 1964 foi um importante fator para que a economia alcançasse elevadas taxas de crescimento de 1968 em diante. Os autores da proeza – os trabalhadores – sofreram sensível piora em suas condições de vida”, vale lembrar, assentadas no “arrocho salarial”, na “intensificação da exploração”, no “avultado número de acidentes de trabalho”, enfim, na “maior subordinação e controle do trabalhador à disciplina da empresa e da polícia”, e que ao longo das décadas levou à superconcentração do capital, à superinflação e ao megaendividamento do país. (Singer, Paul. A crise do ‘milagre’. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, 77-88). Para Narloch, o milagre brasileiro teria muitos “números saborosos” e seu mérito “não é tanto dos militares e sim dos empresários, dos trabalhadores e da multinacionais” (p. 333). Ou seja, aqui, os trabalhadores são apenas mais um elemento da equação montada por verdadeiros parceiros sociais, postos em igualdade abstrata com o capital e a classe dominante, agentes que teriam sido beneficiados amplamente – sim, pode-se rebater, basicamente a classe média e o empresariado, que constituem hoje o público alvo de seu livro, as classes ainda hoje saudosas do regime que fez crescer os seus privilégios.
[3] Cf. Novais, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo: Hucitec, 1979. Cf. Alencastro, Luiz Felipe. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul – séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

[4] Adorno, Thedor W. & Horkheimer, Max. “XI-Preconceito” e “XII-Ideologia” in:__. (org.). Temas básicos da Sociologia. São Paulo: Cultrix, 1973, pp. 203 e 176, respectivamente.

[5] OLIVEIRA, Francisco de. Os direitos do antivalor. (A economia política da hegemonia imperfeita). Petrópolis: Vozes, 1998, pp. 220-1.
[6] SCHWARZ, Roberto. "Cultura e política - 1964-1969" (n:__. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
[7] OLIVEIRA, op. cit., p. 203.

30 março, 2013

O CAPITALISMO GLOBALIZADO E SUAS CRISES ESTRUTURAIS

Este texto didático foi destinado aos meus alunos do 3º ano do Ensino Médio. Talvez ele seja útil para outros professores e pesquisadores.




O CAPITALISMO GLOBALIZADO E AS SUAS CRISES ESTRUTURAIS

Cláudio R. Duarte

O fim da história: a derrota do socialismo real, o triunfo do capitalismo global

Após o fim do socialismo real na Europa oriental e na URSS (1989-1991), o filósofo estadunidense Francis Fukuyama argumentou que a História tal como entendida até ali havia simplesmente terminado (no livro famoso desde então: “O Fim da História e o Último Homem”). Seguindo os passos da filosofia idealista de Kant e Hegel, ele dizia que o capitalismo liberal havia finalmente derrotado os seus inimigos históricos nos campos da economia, da política, da sociedade e da cultura. A partir desse “fim da história” haveria um único caminho a ser trilhado: a rota de acumulação infinita de capital, que prometeria gerar a paz, a harmonia, o progresso e a prosperidade social mundial, por meio do livre mercado, da competição, do avanço tecnológico e da democracia liberal ocidental.



De fato, o capitalismo – como sistema mundial produtor de mercadorias visando ao lucro – talvez seja imbatível. Nenhum sistema social conseguiu produzir tanta riqueza em tão pouco tempo, dinamizando e entrelaçando as diversas nações num mundo unificado.


O novo “capitalismo real” na região ex-socialista do Leste europeu

O difícil é manter a expansão dessa integração pelo mercado. Pois o que se seguiu no Leste europeu e na ex-URSS não foi exatamente essa tão sonhada prosperidade. A abertura para o livre mercado e a concorrência – já plenamente mundializados naquele momento –, gerou uma onda de novas “modernizações retardatárias” e de acumulação primitiva de capital (semelhante aos “cercamentos” ingleses do início do capitalismo), baseadas em privatizações selvagens e no reforço da dependência e do endividamento externo dos países (em processos semelhantes ao dos países latino-americanos), que agravaram a concentração do capital e da renda, aprofundando o desemprego, a violência e a criminalidade (a Rússia hoje tem uma população carcerária de 700 mil presos).

Hoje, no momento em que alguns consideram a Rússia um país “emergente”, o que há de fato é a franca desindustrialização e a perda do poder aquisitivo das massas, apenas sustentado através de crédito internacional, com a conversão dessa imensa região, na Divisão Internacional do Trabalho, numa área satélite da Europa Ocidental, com a função de lhe fornecer petróleo e gás (junto com os países da Ásia centro-norte: Cazaquistão, Turcomenistão etc.) e alguns bens industriais, restritos ao setor militar e aeroespacial (aviação e armamentos). O que o novo “capitalismo real” russo gerou foi o aumento dos lucros privados de uma certa elite política e empresarial (na verdade, como denunciam os críticos, quase uma quadrilha de gângsters provindos dos antigos “Partidos Comunistas”), dependente e associada ao capital multinacional da Europa ocidental e do resto do mundo. A democracia também tem falhado na medida em que não há mais nenhum plano social para as grandes maiorias (como na época do já saudoso, para alguns, “socialismo real”), mas tão-somente o “vale-tudo” da concorrência acirrada e da pilhagem do patrimônio público-estatal, através das grandes privatizações e da conversão da política num simples meio instrumental de administrar as crises econômicas e sociais. De forma semelhante, entre os países da Europa oriental, houve a real integração à União Europeia apenas das áreas mais ricas, dinâmicas ou com maior potencialidade capitalista (Eslovênia, Polônia, Hungria e Rep. Tcheca), beneficiando praticamente só os setores das classes médias mais bem educadas, enquanto os países mais pobres se tornam periferias de trabalho mais barato e de recursos naturais abundantes (Romênia, Bulgária, Eslováquia, Países Bálticos). Isso sem falar na desintegração da antiga Iugoslávia (1991-1998-2006) numa guerra étnico-religiosa sangrenta (bósnios muçulmanos x sérvios cristãos ortodoxos x croatas católicos) que matou mais de 200 mil e gerou cerca de 2,5 milhões de refugiados, em que se escondem motivos econômicos latentes (separatismo das regiões mais urbano-industriais da Eslovênia e Croácia x regiões agroindustriais e atrasadas da Sérvia, Montenegro e Bósnia-Herzegovina). O Leste europeu como um todo ameaça se tornar uma fonte de instabilidade e de emigração de população para a Europa ocidental.


O programa modernizador do “socialismo” chinês – ou o capitalismo de Estado ditatorial

Esse fim do socialismo real foi há muito previsto e antecipado pela China de Deng Xiaoping, quando da criação da “política de portas abertas” (a partir de 1978-80), com a descoletivização do trabalho agrícola, privatizações e a abertura das ZEEs (Zonas Econômicas Especiais) na orla do Pacífico, oferecendo ao capital multinacional vantagens inéditas em termos de lucratividade. Só na aparência, ou antes, só na cúpula política burocrática, a China é ainda um país “socialista”. Trata-se antes de um “capitalismo de Estado”, isto é, um capitalismo ditatorialmente dirigido, baseado numa política pragmática e agressiva de aceleração do crescimento a qualquer custo (depredação da natureza e altas taxas de exploração dos trabalhadores). O “fim da história”, aqui, se tornou o eterno pesadelo do trabalho barato estendido de sol a sol, com altíssimos níveis de poluição e destruição ambiental. Na realidade, a força do “Dragão Asiático” assenta-se nesse Estado ditatorial, capaz de contrabalançar o seu atraso histórico e a sua fraqueza de capital (tecnologia e infraestrutura social e produtiva) por meio dos planos quinquenais, do protecionismo e da dominação brutal dos trabalhadores, o que vêm resultando em fortes taxas de crescimento do PIB (de 8 a 15% ao ano).

A força chinesa, no fundo, revela-se como o fruto de uma fraqueza do desenvolvimento social mais amplo – vale dizer, assenta-se na concorrência predatória e canibal, isto é, autoimolação de sua população no altar da acumulação de capital. Pois a única forma de “integrar” uma massa gigantesca de pessoas pobres como trabalhadores na economia capitalista globalizada (exigente de elevados níveis de produtividade técnico-científica) é essa forma ditatorial altamente exploradora do trabalho barato e ambientalmente suicida – além do mais, baseada na dependência do capital e da tecnologia estrangeiros (americanos, europeus etc.). O que deveria nos fazer desconfiar do seu real poder político e econômico, ou pelo menos de sua estabilidade a longo prazo. David Harvey chama-nos a atenção para os gigantescos investimentos em infraestrutura social e produtiva: eles não podem ser pagos senão gerando dívidas de longo prazo (e sabemos como estas devem ser maquiadas pela burocracia chinesa), o que pressupõe a manutenção do ritmo de exportações - caso contrário, teremos mais um megafoco de especulação e colapso financeiro no mundo! E de fato, a produtividade chinesa só se compara à produtividade ocidental nas condições já nomeadas: se houvesse um maior rigor nas leis ambientais, uma maior regulação e limitação da exploração do trabalho (direitos humanos etc.) e uma maior abertura do país à concorrência mundial (o protecionismo chinês está entre os maiores do mundo, ao lado de Argentina,  Rússia e EUA), a China perderia um tanto de seus atrativos de lucratividade (e de fato, hoje, uma parte da indústria vai se deslocando inclusive para países ainda mais “atrativos” e “baratos”, como Bangladesh e Vietnã). A China tem de viver então da saúde de suas exportações, pois não consegue ainda criar uma massa salarial e um mercado interno autônomo para absorver a maior parte de sua própria produção (algo parecido se dá entre os Tigres Asiáticos).  

As modernizações dependentes/endividadas e superficiais/restritas da periferia

No mesmo sentido, o que ocorreu na periferia subdesenvolvida do mundo globalizado até agora também não foi nenhum promissor “fim da história” das antigas feridas coloniais e neocoloniais. O que se deu aqui foi, sim, um aumento exponencial do comércio e da riqueza regional e dos níveis de vida de setores das pequenas classes médias, consolidando o poder das grandes corporações nacionais e multinacionais, principalmente após a ascensão quase milagrosa de alguns poucos “países emergentes” (Brasil, México, Argentina, Índia, Turquia, África do Sul, Tigres Asiáticos). Eis um fenômeno em geral mal analisado, em que sempre há uma parte de realidade e uma outra de propaganda ideológica ou de pura e simples aparência, principalmente quando levamos em conta a sua forte tendência econômica primário-exportadora ou ligada a produtos manufaturados de baixa ou média tecnologia e de menor valor agregado (com notáveis exceções para a Coreia do Sul e a Índia), mantendo fortes níveis de pobreza e miséria, sem falar no autoritarismo político. Uma participação econômica ainda bastante endividada, dependente e subordinada aos grandes capitais multinacionais e às políticas dos Estados centrais e organismos de controle econômico e financeiro mundial (FMI, Banco Mundial, OMC, G-8).

A globalização como realidade e como ilusão

É de se notar portanto que os grandes fluxos comerciais mundiais concentram-se no eixo América do Norte – Europa – China/Japão/Tigres Asiáticos. (Vide o mapa dos fluxos em 2006.)  

A tão elogiada e mistificada globalização resulta, assim, no desemprego tecnológico ou estrutural de massas (cerca de 7% da população economicamente ativa mundial, ou 204 milhões de desempregados “oficialmente previstos” para 2013, pela OIT), além da na exclusão e da marginalização de regiões e continentes quase inteiros.

Pois se contarmos ainda o número de trabalhadores subempregados, informais e precarizados no mundo, segundo dados da OCDE, teremos mais da metade da população economicamente ativa mundial, cerca de 1,8 bilhão de trabalhadores! (para um total da PEA em torno de 3 bilhões). Assim, pode-se raciocinar que cerca de 2/3 da PEA mundial são quase praticamente supérfluos ou subprodutivos para o capitalismo global, turbinado pela 3ª Revolução Industrial, ou só se tornam “úteis” quando rebaixados ao subemprego e ao desemprego (que ajuda a rebaixar os salários em geral). Subentende-se, então, que a riqueza acumulada nas mãos das grandes corporações e Estados só pôde ser gerada sob este preço dolorosíssimo, pago pelas multidões radicalmente expropriadas e empobrecidas. Elas pagam com as suas vidas, com horas e mais horas de trabalho precário, e os seus recursos, que há muito foram monopolizados pelo capital. A OIT estima ainda que, em 2010, 397 milhões de trabalhadores viviam em situação de pobreza extrema (menos de US$ 1,25 por dia), enquanto outros 472 milhões não podiam satisfazer suas necessidades básicas com regularidade (renda entre US$ 1,25 e US$ 2 por dia).

É isso que se expressa nas enormes cidades miseráveis do mundo. Em 2005, segundo dados da ONU retomados e analisados por Mike Davis (em Planet of Slums, - Planeta Favela), havia mais de 1 bilhão de pessoas sobrevivendo em “slums”, ou seja, em habitações precárias e informais (favelas, cortiços, pontes, tendas, cemitérios, sótãos, ruas e sarjetas etc.), constituindo “apenas” 6% da população urbana dos países desenvolvidos, mas espantosos 78,2% dos países subdesenvolvidos! As favelas crescem mais rápido na África, na Ásia e nas repúblicas ex-socialistas soviéticas (Rússia, Armênia e Arzebaijão).

Obviamente, há muitos pobres que, não sendo miseráveis, vivem fora dos slums. Mas os pobres urbanos já são, segundo Mike Davis, a metade da população urbana mundial. Lembrando que esses números são “oficiais”, e como tais sujeitos à “maquiagem” feita pelos governos.

Contraditoriamente, assim, o incremento da riqueza mundial proporcionado pelas novas tecnologias da 2ª e da 3ª revoluções industriais, a partir dos anos 1950, se realizou a custa do grande aumento das desigualdades sociais em várias regiões – pois estas se revelam “supérfluas” ou “incapazes” de concorrer e acompanhar o nível tecnológico altíssimo imposto pela produtividade dessas novas tecnologias –, seguido por uma série de novos problemas e conflitos sociais em escala local ou regional (epidemias, fomes e guerras civis na África, guerrilhas urbanas e rurais na América Latina e na Ásia, violência urbana generalizada, tráfico internacional de drogas e armamentos, terrorismo, ondas racistas e neonazistas na Europa, guerras do Golfo, do Iraque e do Afeganistão etc.). É assim que a globalização se torna também a globalização do caos social. E que precisa ser “administrado” por um Estado de Exceção para não arrebentar.

Globalização e Estado de Exceção

O capitalismo triunfante, após o fim da Guerra Fria, é um sucesso – ao menos para as minorias “vencedoras” na concorrência global. Isso sem falar no agravamento dos impactos sobre a natureza e sobre a vida dos trabalhadores “incluídos” no sistema produtivo, hoje cada vez mais intensamente espoliados, alienados e socialmente precarizados – como produto das políticas neoliberais de flexibilização, terceirização e cortes nos gastos sociais. Algo que já atinge, inclusive, o mundo dito “desenvolvido”, através da queda substancial nos salários e no desmonte do chamado Welfare State ou Estado de Bem-Estar social. Assim, no lugar desse Estado e da política democrática, o que assistimos é a consolidação de um Estado de Exceção normativo (ou um estado de emergência) no mundo todo, que administra as crises baseado em medidas provisórias e decretos do Executivo, que tendem a suspender e a ultrapassar muitas vezes o direito constitucional e a regulação democrática, no limite, agindo contra as próprias resoluções da ONU e de outros organismos humanitários internacionais (como no caso da “guerra preventiva” contra o Iraque ou os “esquadrões da morte” e o “Caveirão” nas favelas do Rio de Janeiro). Um Estado que se torna, conforme propõe Paulo Arantes, cada vez mais um estado penal e carcerário, já que o caos, a miséria e a violência parecem não ter mais nenhum fim à vista (2,2 milhões de presos no EUA, 1,6 milhão na China, 700 mil na Rússia, 550 mil no Brasil).

Nessas condições opressivas, as regiões periféricas só não são excluídas e cortadas de vez da reprodução capitalista mundial porque tendem a se especializar nos setores em que ainda podem oferecer “vantagens comparativas” ou certos “atrativos”: a) mão de obra barata, com jornadas extensas, dócil, flexível, precarizada e não-sindicalizada (principalmente mulheres e jovens), quando não semi-escrava; b) muitos solos tropicais, minérios, petróleo e fontes de energia barata; c) taxas de juros atrativas e incentivos fiscais (ou paraísos fiscais da lavagem de dinheiro ilegal); d) legislação ambiental frágil; e) privatizações neoliberais de patrimônios públicos ou patenteamento da fauna, flora e conhecimentos e invenções locais.

No entanto, tais condições histórico-sociais negativas há muito aparecem como “coisas naturais” na opinião pública dominante, que já não chocam mais ninguém, sendo neutralizadas ideologicamente por serem “o que resta” a ser e a fazer no contexto desse mundo de concorrência total. “There’s no alternative”, como dizia a Primeira Ministra britânica, Margareth Thatcher, no início da era de desregulamentação neoliberal.


As crises atingem também o Centro

Mas hoje, enfim, o próprio centro geoeconômico e geopolítico do sistema – EUA, União Europeia e Japão – está imerso em graves processos de crise econômica, política e social, que lembram muito os processos de crise e desintegração econômico-social há muito conhecidos na periferia e na semi-periferia do sistema – levando ao “colapso da modernização” mundial, como previu Robert Kurz desde o fim dos anos 1980. Veja-se o gráfico da Bolsa de Nova Iorque entre 1900-2008 (Fonte: Le monde diplomatique).

Na verdade, desde pelo menos o início dos anos 1970 – crise fiscal dos Estados Unidos, choques internacionais do preço do petróleo (1973-79), estagflação galopante –, vêm se sucedendo crises internacionais cada vez mais frequentes em curtos espaços de tempo: a longa crise da dívida externa latino-americana dos anos 80 e 90 (México, Brasil e Argentina), a crise japonesa do início dos anos 90, a crise do sudeste asiático de 1997-98, a fuga de capitais da Rússia (1998), do Brasil (1999), da Argentina (2001-2), a crise da New Economy dos EUA (bolsa Nasdaq de alta tecnologia) de 2001-2, a crise imobiliária e financeira dos EUA de 2007-2010 e a crise europeia das dívidas de 2009-2013. Abalos recorrentes que produziram queimas bilionárias de capitais, fortes níveis de desemprego e subemprego, novos endividamentos estatais e estagnação econômica, estas últimas crises principalmente nos EUA e na Europa.

 Introdução geral à crise global estrutural do capital e as suas saídas provisórias

O que há então de errado com o Capital, o campeão olímpico dessa Ilíada moderna? Como já dito, para os Estados, as firmas e as classes vencedoras da competição mundial, talvez, nada há de errado. Mas todos reconhecem que a economia já não cresce como nos períodos áureos do fordismo e do Welfare State (os “30 anos gloriosos”, os “anos dourados do capitalismo”, em que o capitalismo pareceu ter se “civilizado”, entre mais ou menos 1945-73).

Isto acontece basicamente porque os lucros produtivos, na esfera da economia real (que tem de empregar trabalho e recursos naturais), são cada vez mais arriscados e difíceis de serem realizados, pois os mercados estão saturados e há muitos novos concorrentes agressivos (China, Índia, Coreia do Sul, Brasil etc.). Por isso, os lucros tendem a decrescer nos países e regiões de mercado saturado e de salário mais alto. Os EUA perde assim sua hegemonia econômica, com déficits enormes na balança comercial, falta de poupança interna e endividamento geral (famílias, empresas e Estado).

A saída para o reinvestimento dos superlucros excedentes (D-M-D*-M-D**...) tende a ser basicamente dois:

a) Esfera produtiva: a migração do capital (americano, europeu etc.) para o Sul e a periferia subdesenvolvida (com as suas vantagens destrutivas do trabalho e da natureza); ou a flexibilização, precarização e rebaixamento dos salários internos, com a intensificação da exploração dos trabalhadores nos próprios países centrais, mediante novas tecnologias e processos de gestão ainda mais produtivos e poupadores de força de trabalho. Incluem-se aqui, ainda, as práticas destruidoras da obsolescência planejada e perceptiva, que reduzem a vida útil dos produtos e fomentam um novo consumo, bem como as guerras preventivas (como as do Iraque e Afeganistão) e todo o setor da indústria cultural (que cria necessidades “supérfluas” e associa marcas a estilos de vida e distinção social).

b) Esfera financeira e especulativa: o crédito (para fomentar uma demanda fraca ou inexistente) e a especulação com ações, imóveis e títulos diversos (inclusive de dívidas alheias) – uma fuga maciça de dinheiro excedente para os mercados financeiros e especulativos, que criam um monstruoso “capital fictício” (com a cifra mágica de US$ 600 trilhões), que ajuda o capitalismo em crise a se mover para frente e fazem-no se transformar numa espécie de grande “cassino global”.  
Um ensaio de explicação geral das novas crises estruturais

Por que tantas crises, então, se tudo parece tão avançado, promissor, controlado pela tecnologia, e tudo tão rico, confortável e luxuoso? Ocorre que a maneira como esse sistema fetichista e alienado funciona – por meio de “relações coisificadas entre as pessoas ou relações sociais entre as coisas” produzidas, como mostrou Marx – quase que totalmente impede o controle social de maneira consciente e racional sobre a produção, visando ao atendimento das verdadeiras necessidades humanas e ecológicas das pessoas. É por isso que, impulsionando-se cegamente para a frente, através da interação de inúmeros agentes particulares independentes, que apenas perseguem o seu interesse pessoal de poder e lucro, o sistema produz tantas crises, e também tantas realidades contraditórias: promessas reais de riqueza, cultura, segurança, conforto, educação e avanço tecnológico em meio a um mar de insegurança, precarização, fome, miséria, violência, barbárie e destruição ambiental.

Não é realmente muito fácil compreender as crises atuais, pois há muitas variáveis sociais em jogo, muitas diferenças nacionais e regionais a serem levadas em conta. Como explica o geógrafo David Harvey (O enigma do capital e as crises do capitalismo), regiões em franco crescimento e ascensão contrastam com regiões em recessão e exclusão; estratégias políticas se degladiam, novos produtos e tecnologias são criados todos os dias, prometendo novos mercados, e assim por diante. Contudo, as crises cíclicas são cada vez mais frequentes – após o fim dos “anos dourados do capitalismo” do pós-guerra (1945-1973) – e parecem indicar que, na verdade, entramos numa época de crises econômicas estruturais do sistema capitalista. Não se trata mais de crises passageiras. Também não são crises de legitimação ideológica (ligada aos valores que sustentam a sociedade burguesa, como se deu p.ex. na revolta dos estudantes e operários em Maio de 1968), nem só de crises sociais, políticas e ambientais. Todas essas crises são realmente importantes, como vimos anteriormente, mas elas não parecem ser capazes de trincar e quebrar a estrutura do sistema e colocá-lo abaixo. Talvez, somente a crise ambiental chegue próximo a isso, pois é a base de qualquer economia. A crise se torna realmente estrutural, como previu Marx, quando abala e esgota os fundamentos do sistema, isto é, a base que o sustenta: o trabalho produtivo (elaborado sobre a natureza).

Desde o início, vale lembrar, o capitalismo gera crises cíclicas de superacumulação – crises em que ocorre a paralisação temporária do capital investido, que se revela em excesso, por falta de venda das mercadorias, incluindo aí os trabalhadores, que se tornam desempregados. Foi exatamente isso o que ocorreu em 1929, quando a economia americana (e também a brasileira, com o café) acumulou enormes capacidades produtivas e toneladas de mercadorias, mas deixou de encontrar mercados externos na economia europeia (que se fechou, por meio de tarifas alfandegárias elevadas, para desenvolver a sua própria indústria, preparando-se para a 2ª Guerra). De repente, o preço das ações das empresas se viram superestimados e supervalorizados e tiveram de cair. O que se seguiu foram falências e desemprego de massas, que duraram até o início da 2ª Guerra (que reativou a economia americana – a forma mais terrível, bastante conhecida, de empurrar a economia capitalista adiante).

Essas crises cíclicas, portanto, sempre lançaram o sistema adiante, a níveis cada vez mais elevados de produção, após algum tempo de espera e de resolução dos pontos de estrangulamento ou saturação. Assim, a ampliação do crédito para o consumo, o deslocamento do investimento para novas áreas e setores (com menores salários e mais vantagens locacionais), as guerras (que podem exigir maior produção e destruir excedentes de uma só vez), as políticas keynesianas de investimentos estatais na economia (principalmente através da construção de obras públicas e infraestruturas) – tudo isso sempre pôde criar demanda artificial e fazer retomar o crescimento dos países. Mas não sem gerar dívidas, que precisam ser pagas nos anos posteriores.

Dessa vez parece ser um tanto diferente. O capitalismo globalizado, por meio da 3ª Revolução Industrial, acumulou capacidades produtivas excedentes de mercadorias que já não conseguem ser totalmente vendidas e remunerar o capital investido. Ao contrário, essas capacidades produtivas só alimentam dívidas gigantescas – seja para a sua produção (pois exige enormes gastos com infraestrutura produtiva e social: escolas, universidades, saúde, estradas, portos, energia etc.), seja para o seu consumo (crédito imobiliário, parcelamento de bens duráveis e de produção etc.). Dívidas que vão se acumulando e se tornando insolváveis – a não ser multiplicando novos empréstimos, fazendo incidir juros sobre juros, num esquema do tipo “bola de neve”. Vide o endividamento europeu e estadunidense nos gráficos.



Assim, como propôs Kurz, essas novas crises talvez sejam sinais do fim da fase de ascensão e amadurecimento do sistema. No fundo, talvez sejam o prenúncio do seu envelhecimento e do seu declínio histórico, porque tendem a destruir as duas fontes da riqueza social (trabalho e natureza).

            A causa mais profunda das crises estruturais recentes é então precisamente esta: o desejo infinito de valorização do capital tende a superacumular meios de produção e mercadorias, que, por sua vez, custam a serem vendidas e retornarem como lucro real. O que incita o capital a paralisar o seu crescimento acelerado (típico do fordismo dos anos 1950-70) e a se desvalorizar em massa. Um retorno à produção fordista, absorvedora de força de trabalho em massa, é impossível, pois a humanidade não pode simplesmente esquecer os novos métodos produtivos que poupam força de trabalho.

A crise ocorre porque o sistema tende a reduzir a fonte de todo valor e mais-valia: tende a eliminar maciçamente o trabalho humano do processo produtivo (lembremos da cifra de 2/3 da PEA mundial desempregada e subempregada, isto é, só empregável em condições subvencionadas pelo Estado, mediante complementos estatais de renda,  ou sob terríveis e desumanas condições de exploração).

Mas assim fazendo, reduzindo fortemente o trabalho socialmente necessário (o que, numa sociedade utópica, poderia muito bem servir à redução radical da jornada do trabalho para todos) e desvalorizando sua fonte de valor, o sistema do Capital tende a reduzir a capacidade de compra para as mercadorias que ele superproduziu.  Desse modo, elas tendem a ficar sem escoamento possível – principalmente numa conjuntura neoliberal que gera desemprego e reprime os salários no mundo todo. Nessas condições o capital produtivo tende a diminuir o seu ritmo de acumulação – o que se expressa nas baixas taxas anuais de lucro retido pelas corporações (após pagamento de impostos e juros de dívidas), de acumulação real e de crescimento do PIB mundial, após 2008 (vide gráficos dos EUA).



 Daí a necessidade extrema de globalizar o comércio, criar blocos econômicos regionais para a livre circulação de capitais e mercadorias, criar liquidez e mobilidade total para o capital, desregulamentar, flexibilizar e precarizar os contratos de trabalho, privatizar empresas públicas a preços de banana, enfim, ampliar mais e mais o consumo através da propaganda e do crédito, criando novas necessidades artificiais e supérfluas, novos produtos culturais e tecnológicos, diminuir a vida útil dos produtos. Em suma, eis a necessidade de ampliar a produção e o consumo a qualquer custo. Ter a obrigação de ser feliz pelo consumo, aparentar (mais do que ser) um consumidor satisfeito – eis a nova religião capitalista que complementa a religião protestante do trabalho, desde os anos 1950 e 60. Acontece que robôs e computadores não fazem greves, e também não compram nada, nem têm sentimentos ou necessidade de ostentação de status social.

Isso significa, portanto, que o capitalismo cava o buraco em que ele mesmo está hoje enterrado. As cifras trilionárias do PIB mundial e da especulação são em grande parte (ou quase totalmente) fictícias, fetichistas, imaginárias. Elas dependem basicamente do crédito e da especulação – ou seja, dependem de um valor real que ainda não foi produzido e que talvez jamais o será. Talvez seja este o verdadeiro fim da história de Fukuyama.

O que é o valor de uma mercadoria? O que dá valor ao dinheiro existente? Segundo Marx, o valor de uma mercadoria é nada mais que a cristalização de uma certa média social de tempo de trabalho. Como todos sabem, time is money. Ou seja, o valor depende das horas de trabalho gastas na produção de mercadorias. O dinheiro não vale por si próprio, mas é apenas a expressão simbólica (materializada num pedaço de papel ou metal) que tem de corresponder a uma riqueza real produzida pela economia real, explorando a energia humana dos trabalhadores, cristalizando-a em uma imensa acumulação de mercadorias (que podem ser também serviços prestados).

Ora, quando a 3ª revolução industrial tende a economizar e, no limite, a eliminar em massa o trabalho vivo dos processos produtivos mais importantes, então, diminui a quantidade de novo valor (ou mais-valia) inserida no sistema, bem como as taxas médias de lucro. As mercadorias saem com o custo unitário cada vez mais barato, devido ao aumento da produtividade do trabalho, mas assim também aumenta a quantidade de mercadorias a serem vendidas, a fim de que se possa realizar a mais-valia (ou o lucro) nelas embutido. Vamos imaginar um exemplo hipotético.

Se eu invisto um capital de US$ 200 milhões para produzir 200 lanchas em certo período de tempo, utilizando 100 trabalhadores, gerando um lucro de 50 milhões (D investido: -200 + 50* de lucro, com cada lancha sendo vendida por 1,25 milhão), então, minha taxa de lucro é de 50/200 = 25%. Na próxima rodada da acumulação (digamos, após 5 anos), a concorrência me obriga a investir em novas tecnologias (microeletrônicas e automatizadas). Agora precisarei empregar US$ 290 milhões na produção, incluindo estas tecnologias e apenas 10 trabalhadores de alto nível técnico, que farão 350 lanchas, com o preço unitário de 1 milhão cada, gerando um lucro de 60 milhões. Os preços unitários cairão, mas o meu capital total – se conseguir vender todas as lanchas produzidas – aumentará um pouco: terei no total 350 milhões (D investido:-290 + 60* de lucro). Ou seja, terei futuramente 100 milhões a mais do que há 5 anos atrás quando iniciei a fábrica. Porém, agora, tive de investir muito mais em tecnologias do que em trabalho/salários. O novo maquinário, os novos funcionários etc. me custaram 290 milhões, e não mais 200, como anteriormente. A mais-valia real produzida foi 60 milhões, apenas 10 milhões a mais do que há 10 anos atrás. Assim, a taxa de lucro diminuiu: 60/290 = 20,6%. De fato, o investimento compensará se eu conseguir realmente vender estas lanchas rapidamente, conseguindo cobrir os meus custos e aumentar o meu capital total para 350 milhões. Mas se não conseguir, terei de pedir mais empréstimos para pagar as dívidas passadas com as novas tecnologias e trabalhadores (US$ 40 milhões que me faltavam para realizar o novo investimento). Porém, se eu vender apenas 200 lanchas (US$ 200 milhões), não conseguirei nem mesmo cobrir o custo total do investimento (US$ 290 milhões); assim terei de começar a reduzir os planos de produção, vender máquinas, demitir alguns funcionários ou mesmo, talvez, mudar de ramo e decretar a falência. E, no entanto, muito antes disso, 90 funcionários já haviam sido demitidos.

Consequentemente, haverá menos capacidade aquisitiva no mercado em geral (entre empresas, Estados e trabalhadores). Daí a dificuldade geral de vender e realmente realizar os lucros embutidos nas mercadorias. Não, talvez, para o mercado de lanchas, que é voltado aos altos executivos e aos grandes capitalistas, que podem se endividar e pagar a médio prazo as suas lindas lanchas, além de viagens internacionais, carros luxuosos, bens importados e tudo o mais. Mas os 90 trabalhadores demitidos deixarão de comprar alimentos, roupas, eletrodomésticos, moradias etc. A não ser que eles troquem de setor, expulsem outras pessoas “menos competitivas” do que eles, desempregando-as, numa onda de empurra-empurra geral de alto a baixo na escala social. Serão então 90 futuros migrantes ou, no limite, 90 excluídos, talvez criminosos. Os altos executivos donos de lanchas também poderão perder o emprego, a partir dessa falta de consumo geral, e pôr tudo a perder, deixando de me pagar as prestações de sua maravilhosa lancha. Poderei até reaver a lancha, mas terei de encontrar outro alto executivo disposto a comprar uma lancha usada, numa economia agora em crise.

A não ser, ainda, que a economia mundial cresça num ritmo médio “normal” de 3% ao ano (o número mágico proposto pelos economistas e políticos) e consiga ampliar mercados, gerar mais lucros, mais capital e mais renda do que o capital social total investido (nas infraestruturas produtivas e sociais), e consiga assim absorver mais força de trabalho do que antes, reduzindo drasticamente o desemprego. Porém, é exatamente isso que a economia mundial hoje está cada vez menos conseguindo fazer, a partir dos novos custos de modernização impostos pela 3ª revolução industrial. 

Multipliquemos esse exemplo para os vários setores da economia “tecnicizada e cientificizada” e teremos o atual problema estrutural do desemprego dos trabalhadores. Isso que se torna assim, também, o desemprego estrutural do capital. A desvalorização geral do trabalho (dos salários, dos direitos etc.) se converte, a curto ou médio prazos, na desvalorização geral do capital, já que capital (o dinheiro investido: D-M-D*) nada mais é do que o acúmulo do trabalho explorado e alienado. Nessas condições, o capital desvia-se para o lucro “fácil” das bolsas (embora de alto risco).

É por isso que as bolsas sobem, sobem, sobem como balões de ar quente, até que despencam de uma vez e as empresas perdem os valores estratosféricos que estimavam possuir. Se a minha empresa de lanchas tivesse ações na bolsa, tais ações poderiam estar valendo não apenas 350 milhões no total, conforme a promessa normal de lucros futuros. Os acionistas poderiam começar a comprar e a revender esses títulos, já sem esperar os dividendos futuros. Gerariam uma supercapitalização que faria tais ações valerem algo como 360 ou 400 milhões – enfim, algo como 50 milhões a mais do que a minha empresa valerá futuramente, no momento de distribuir os dividendos entre acionistas. Não que a especulação seja pura ficção. Se a procura por lanchas aumentar muito, realmente as minhas lanchas poderão ser vendidas não por 1 milhão cada, mas por 1,25 milhão, como há 5 anos atrás; nesse caso o capital total da empresa atingirá até mais do que o inicialmente previsto: 437,5 milhões (350 lanchas x 1,25 milhão cada).   

A maioria dos capitalistas faz isso: compra ações e títulos baratos, especula em cima dos altos e baixos repentinos, vendendo-os sempre na hora certa. Há muito tempo, desde pelo menos os anos 1980-90, que os bancos e as grandes corporações têm lucros financeiros muito superiores aos de sua área de atuação real (produção, comércio ou prestação de serviços), nos mercados totalmente desregulamentados. Os lucros se devem menos aos seus trabalhadores ocupados do que à atuação de um departamento financeiro “esperto” e bem “antenado” nos negócios especulativos. Há até um sistema de “bancos sombra” ou “às escuras”, ganhando dinheiro com operações ilegais e arriscadas no mundo (sem qualquer lastro ou depósito monetário real). Os bancos criam “capital fictício” ao emprestarem dinheiro sob a forma de títulos de crédito uns para os outros, criando derivativos e securitização de dívidas, que multiplicam a jogatina global totalmente instável e irresponsável. Isso ocorre porque o mercado financeiro é sempre otimista, "aventureiro" e cego: para ele, toda produção ou toda nova tecnologia promete ganhos futuros gigantescos – pouco lhe importam às vezes os custos reais de produção, as taxas decrescentes de lucro (maquiadas nos balanços empresariais), a saúde geral da economia e os ganhos reais da sociedade mais ampla (baseada fundamentalmente em salários – e não em créditos ou especulação financeira, embora esta última possa alimentar o consumo de famílias de trabalhadores nos países mais desenvolvidos como os EUA e a Alemanha).

Mas se a minha fábrica de lanchas der sinais de falta de vigor comercial e financeiro-especulativo, se eu não apresentar balanços positivos no decorrer dos anos, as ações totais podem repentinamente cair e equivaler somente ao preço das 200 novas lanchas que já consegui vender até o momento (uma queda de US$ 350 para 200 milhões) – ou ainda menos, digamos 150 milhões, pois o mercado começa a desconfiar que o mar dos negócios não está para lanchas – lanchas que estão prestes a ficar encalhadas na lama das vitrines ou nos pátios de minha fábrica. Ou ainda pior, se o “negócio da China”, a “bola da vez”, agora, não forem mais lanchas, mas helicópteros e jatinhos particulares!

Chega assim um momento em que o consumo só pode ser estimulado artificialmente pelo crédito privado e a demanda estatal. Só isso mantém a Grande Máquina funcionando, adiando o acerto de contas com a baixa acumulação real. Portanto, temos um consumo de massas movido artificialmente por meio de dívidas, estendidas no tempo. Daí em diante, a civilização capitalista perde os seus bons modos. Os lucros só são obtidos por meio das estratégias mais selvagens possíveis (dumping social, depredação ambiental, privatizações, expropriação e patenteamento geral do saber e da cultura etc.). Se a acumulação real de capital tende a decrescer porque as taxas de lucro na produção tendem a diminuir, então se pode tentar contrapesar isso pelo aumento das taxas de exploração – isto é, através da espoliação mais radical dos trabalhadores e da natureza. Todos pagarão com a miséria, há muito conhecida na periferia subdesenvolvida. Trata-se de um processo de “africanização” ou “brasilianização” do mundo, segundo alguns sociólogos europeus.

Não é então que o capitalismo não explore ainda muito trabalho ou que deixe de produzir mais-valia e lucros. Mas que o trabalho explorado não gera tanta mais-valia como antes! As taxas de lucro tendem a diminuir por causa do aumento dos enormes custos de investimento em capital fixo (infraestrutura produtiva e social), gerando dívidas que, se tivessem de ser pagas imediatamente, tornariam tais produções totalmente improdutivas e inviáveis, ou seja, não-lucrativas. O total do capital financeiro-especulativo em torno de U$$ 600 trilhões – em que não há só ações e papeis imobiliários, mas títulos da dívida pública dos governos e dívidas privadas, comercializados como qualquer ação – significa que teríamos de produzir, a curto ou médio prazo, cerca de 5 ou 6 vezes o valor do PIB mundial atual, ou seja, adiantar uma produção equivalente à esperada para todo o século XXI ou XXII! Isto, é claro, se as bases sociais, naturais e ecológicas aguentarem uma tal empreitada!

Com taxas muito baixas ou arriscadas de lucro produtivo, o capitalista então se desestimula a investir na economia real – o que faz aumentar ainda mais o desemprego e a recessão. Ele tentam então, como um Mágico, realizar o impossível: tenta simular um lucro que ainda nem foi realizado na produção real de mercadorias. Algumas empresas então possuem ativos financeiros enormes que, em pequeno grau, voltam à produção, são aplicados produtivamente (até para justificar o nome e o valor da empresa no mercado). A bolsa é uma forma rápida de capitalização produtiva das empresas. Mas as somas de dinheiro a ser investidas a cada rodada são tão grandes que a maior parte desse dinheiro se mantém girando, de maneira livre e desregulamentada, na esfera financeira e especulativa. Um dinheiro que copula com dinheiro e gera mais dinheiro automaticamente. Isso pelo menos até que a inadimplência dos consumidores e os negócios reais se revelem claramente como deficitários, negativos ou simplesmente inviáveis, pois no fundo são incapazes de gerar realmente mais valor do que o já acumulado. Esse dinheiro fictício da ações e títulos então vira fumaça – esteja nas mãos de quem estiver – e desaparece tal qual um dia surgiu. Na bolsa sempre há os espertos, como o especulador George Soros (que lucrou US$ 3 bilhões em 2008) e os enganados que ainda não perceberam que tudo não passa de simulação e especulação de lucros fantasiosos e dívidas praticamente impagáveis mesmo a longo prazo.

O que as novas tecnologias da 1ª, da 2ª e da 3ª revolução industriais possibilitam é exatamente isso: um conjunto de bens materiais e imateriais abundantes e quase sem nenhum valor, pois pouco trabalho realmente produtivo é absorvido em sua fabricação e distribuição. Eles deveriam valer nada ou quase nada – mais precisamente, valer só o irrisório número de horas de trabalho que ainda é necessário para produzi-los, divididos pela sua quantidade. O seu alto preço é, assim, em grande parte, uma ficção artificialmente criado por rendas de monopólio, através de: a) marketing das marcas, b) propriedade intelectual do saber cultural e científico (que não deveria valer coisa alguma, pois representa quase nada em termos de horas de trabalho); c) propriedade imobiliária; d) juros e lucros de especulação sobre lucros produtivos futuros irrealizáveis. Continuamos a pagar muito por eles, mas muitos produtos ficam encalhados ou deixam de ser produzidos, justamente porque não há valor real (em lucros e salários) que os possa pagar. Ao invés de serem usados para acabar com o sofrimento e a miséria social mundial, tais bens de produção e consumo são trancafiados a sete chaves por seus proprietários. Nessas condições alienadas, os fantásticos meios de produção, criados pelo conhecimento técnico-científico da humanidade, se tornam meios de destruição coletiva, gerando apenas desemprego e miséria, violência e guerras.

Foi essa paralisia geral que se deu em 2008-2012 (com o mercado imobiliário americano, inglês, irlandês, espanhol e grego). É isso, ainda, que ocorre com os próprios Estados nacionais, altamente endividados, e que hoje parecem prestes a decretar a moratória na União Europeia, com ajustes macroeconômicos antipopulares (na Grécia, Portugal, Irlanda e Itália), ou seja, políticas de austeridade que cortam os gastos sociais de uma vida moderna desenvolvida na época do Welfare State (previdência social, funcionalismo público, corte nos salários, férias, programas sociais diversos, saúde e educação etc.). Cortes que punem os trabalhadores enquanto reservaram trilhões de dólares e euros para sanar os chamados “créditos podres” dos bancos. O Estado transformou a crise econômica e financeira em crise das contas públicas e crise fiscal, que já está se transformando em crises sociais agudas (movimentos como Occupy Wall Street, nos EUA, dezenas de greves em toda Europa etc.). Só estas medidas de emergência salvaram o capitalismo do desastre.  

O fim da história? Parece-nos claro que essas novas crises vieram para ficar. A não ser que a economia capitalista revele milagrosamente um fôlego de sete gatos, com sete vidas, em seis ou sete planetas iguais a este.


Bibliografia


Davis, Mike. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006.

Harvey, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. S. Paulo: Boitempo, 2011.

Kurz, Robert. O colapso da modernização [1991]. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.