01 abril, 2007

"TUDO É MENTIRA NESTE MUNDO"

"TUDO É MENTIRA NESTE MUNDO "
Ciência e sociedade em tempos de simulação especulativa de mercados

"Mentira lo que dice / Mentira lo que da / Mentira lo que hace / Mentira lo que va / (...)Todo es mentira en este mundo" (Manu Chao, Mentira)

Cláudio R. Duarte

Em suas múltiplas versões as ciências sociais acolheram o fato social como garantia de objetividade e validade. De Comte a Durkheim, de Parsons a Luhman, de Bourdieu a Habermas, passando por todo o marxismo positivista e estruturalista, a ciência se fez da descrição e validação de leis e sistemas sociais coercitivos que se impõem aos sujeitos, além de seu controle e consciência. Para além do psicologismo e do historicismo, levou-se a sério o poder objetivo das estruturas.

Na crítica da economia política de Marx a mentira tem pernas longas, longuíssimas. Tudo é virtualmente mentira no mundo fetichista das mercadorias, mas cada mentira abona outra, confirmando o sistema de valorização do capital como um sistema de ilusões e abstrações reais, que convivem lado a lado no paradoxo e raramente se resolvem na contradição dialética. A mentira, o fragmento autonomizado do todo, aqui, pesa muito mais que a mão de uma criança. É eficaz, cerca, constrange, molda, abala, destrói.
Quanto mais a ciência se prende ao mero fato mais ela recai na mentira que supostamente teria superado junto com a metafísica; sem se atentar para o negativo desses fatos, que nunca são dados primários nem últimos – sem aprendê-los conceitualmente em sua costura numa certa totalidade histórica há muito obsoleta – fatalmente ela se perde e legitima uma ordem falsa e podre da cabeça aos pés. Já dizia Marx que as posições no sistema, incluindo as classes e suas lutas, se fazia através de "máscaras de caráter" e "personificações" do capital. Da grande farsa da igualdade social e da troca de equivalentes no mercado de trabalho (a ideologia do "salário justo", desmentida a cada segundo pela espoliação descarada da mão-de-obra) ao engodo da liberdade e fraternidade (desmentido todos os dias pelas imposições de um trabalho insano e pela violência de todos os tipos), passando pelos trâmites sujos da política, pela empulhação da propaganda e da cultura industrializada monopolistas, pela "obsolescência planejada" de produtos e pelas práticas cotidianas de micro-embaçamentos e malandragens do "cada um por si" na concorrência global, finalmente, como um enorme castelo de cartas, o sistema se apóia, hoje sob uma forma econômica cuja substância tende a se perder: a forma de valor das coisas no mercado.
O valor, conforme a economia política clássica, funda-se no trabalho produtivo, medido em tempo de trabalho socialmente necessário para se produzir uma mercadoria. Ora, se cada vez é menor esse tempo socialmente necessário, dadas as tecnologias da 3ª Revolução Industrial, também deve ser tendencialmente cada vez menor, em proporção, a quantidade de mais-valia real acumulada pelo sistema global. Todo o edifício social armado sob essa economia é cada vez mais a ficção de uma hiper-acumulação especulativa, girando na superestrutura creditícia nas bolsas de valores, que antecipam em décadas o desenvolvimento futuro que ainda não existe. No âmbito social, é a bolha especulativa que mantém ainda em pé o poder de nações inteiras, das macro-estruturas estatais e empresariais até o fluxo comercial do sistema de objetos de consumo, das viagens às casas e carros da classe média, etc. Na universidade, seu sinal é o pragmatismo extremo dos cursos que só visam ao lucro e as falsas promessas de inserção no mercado de trabalho ou, por outro lado, a moda pós-modernista nas ciências humanas, que termina por estetizar ideologicamente as seqüelas simulativas desta grande mentira de base, nas mais diversas práticas cotidianas.
Mas o sistema mentiroso chega a um nível de esclarecimento e de desilusão, como anteviram Adorno e Horkheimer na Dialética do Iluminismo, que a mentira aberta não é mais levada a sério, mas aceita como mero fato bruto, como a naturalidade do poder existente. Por isso a ideologia hoje pode até ser descartada e tender a zero. O nazismo foi o precursor desta decadência da razão: pouco se escondia, tudo era visto através dum véu delgado e transparente. Entre nós, bem antes Machado de Assis anteviu algo dessa fusão de realidade, farsa e arbítrio na figura literária do “senhor de escravos liberal”, a subjetividade que goza perversamente na mentira, na máscara, no puro discurso e no capricho, sem as graves conseqüências que o efeito de realidade traria. Mas a realidade da mentira neste caso não pesava – não desta perspectiva de nossa classe dominante. A cara de pau sempre foi a condição de nossas elites.
Hoje, no auge do fetichismo dos mercados especulativos, o convívio diário com a simulação ou a franca aceitação da mentira em todos os níveis e âmbitos do cotidiano moderno, apenas escancara que a sociedade do “espetáculo integrado”, como dizia Debord nos Comentários da Sociedade do Espetáculo, é absurdamente irracional e debochadamente cínica. Neste momento se expande o "segredo generalizado" junto à "mentira sem contestação". É assim que a sociedade se reproduz em bloco, mesmo cheio de rachaduras, num "presente perpétuo": quando, por exemplo, a própria mentira desvendada é celebrada como fato estético ou humorístico. Todos riem das falcatruas de um Paulo Maluf ou dos balanços falsos de empresas como a Enron, mas esse riso é completamente apologético. Rir e ferir, "zombar da filosofia" diria Pascal, hoje é confraternizar-se com o embuste do poder.
(1º/ABRIL/2007).