19 junho, 2006

FUTEBOL, CAPITAL, SADO-MASOQUISMO

Futebol, capital, sado-masoquismo


"Sob o ângulo da coação, a vida quotidiana é regida por um sistema econômico no qual a produção e o consumo da ofensa tende a equilibrar-se" (Raoul Vaneigem, Traité de savoir-vivre à usage des jeunes générations, 1967, chap.II, L´humiliation).
Cláudio R. Duarte
O futebol tornou-se um fenômeno exemplar de como o sistema capitalista pode transformar qualquer matéria em fonte de lucro e legitimação de si. No plano econômico, a chamada transição do "futebol-arte" para o "futebol-empresa", com direito a patrocínios milionários, conjugação com a tv, com times e jogadores valendo como títulos especulativos na bolsa de valores etc. é também sinal dos tempos de crise do capital mundial, que, na sua superacumulação, sobrecarrega-se mais no momento especulativo que no produtivo. Cultura e capital, simulação e negócios, são a mesma coisa hoje.

Naturalmente, nada há de "errado" com o futebol ou outro esporte em si mesmos, assim como nada há de "errado" com a "cultura popular". Trata-se então de fazer uma crítica da sua forma histórica. Nenhum esporte foi tão instrumentalizado, a partir dos anos 50, para servir aos interesses do capital e do Estado. Nesse entretempo ele se tornou uma das formas fundamentais de ideologia do sistema. Enquanto os campos de várzea iam sendo destruídos nas grandes cidades, o futebol ia virando profissão, depois puro negócio de uma elite de empresários, clubes e cartolas que vendem suas mercadorias semanalmente ao povo, duplamente expropriado, não só dos meios de produção mas agora também de seus meios de vida mais amplos (tempo livre, reprodução etc.). É claro que ele se mantém como o esporte coletivo mais popular e neste sentido a ideologia tem um fundo de realidade irredutível.

Seja como for, como ideologia, o futebol tende a se tornar a reunião forjada dos espectadores de um poderoso espetáculo da mercadoria. Atrelado à televisão e à propaganda global, torna-se o mais atual e eficaz "ópio do povo", atendendo, no contexto do mundo totalmente racionalizado, à fome de absoluto e transcendência das massas - fome ela mesma reproduzida por tal mundo racionalizado do capital, quando incessantemente engendra o isolamento individualista e a impotência coletiva. O principal serviço ideológico prestado pelo futebol é criar a ilusão de uma certa potência grupal ou nacional. É daí que o povo miserável extrai o que lhe resta de utopia de um mundo comum, no nacionalismo ou no tribalismo grupal. Este poder, contudo, não é mera ficção, pois senão a ideologia não teria eficácia. Da passividade espetacular passa-se a uma certa atividade: no futebol, a violência e a humilhação sofridas no mundo do trabalho são como que compensadas, numa forma de descarga coletiva de ódios e preconceitos raciais ou nacionais. É a famosa válvula de escape. É assim que o ideólogo pós-moderno Michel Maffesoli tem seu momento de razão quando diz que estamos no "tempo das tribos". O individualismo pós-moderno só sobrevive se desenvolvendo na formação patológica de "tribos" (no esporte, na música, na moda, etc.). Estas tribos impulsivamente "passam ao ato" (o acting out psicanalítico): o auto-sacrifício cotidiano isolado de cada um converte-se em paixão de destruir e de se auto-destruir coletivamente.
Sem dúvida, as torcidas organizadas são grupos proto-fascistas, que em momentos especiais, trazem à tona as tendências sádicas de seu narcisismo coletivo. Ocorre então uma espécie de canalização "produtiva" da violência social inconsciente, deslocada do conjunto das relações de dominação e exploração para bodes-expiatórios casuais. Rubem Alves, numa de suas crônicas, intuiu com clareza a relação entre futebol e prazer sado-masoquista, apesar de apagar sua especificidade histórica. O prazer obtido com o futebol competitivo, o da indústria cultural atual, não tem a ver diretamente com algum tipo de gozo estético. Daí a tendência irremediável à morte do "futebol-arte". Este não leva a nada. O futebol pragmático é um espetáculo de perversão grupal:
"É pra sofrer e fazer sofrer: um espetáculo depravado, perverso, onde o orgasmo acontece sobre o sado-masoquismo. Ninguém assiste a um jogo de futebol por razões estéticas. O tesão do futebol se encontra, precisamente, na possibilidade de fazer o outro sofrer. Pois o que é um gol? Um gol é um estupro. O prazer do gol é o prazer de ter estuprado o adversário, de ter metido a bola da gente no buraco dele contra a vontade dele. Uma partida de futebol é uma tentativa de estupro estilizada. Vai um time levando a bola, a bola tem de estar bem cheia, dura, vai o jogador ludibriando as tentativas de defesa, passando a bola no meio das pernas, o outro time faz tudo para evitar, fecha os buracos, todos lutando, não querem que a bola entre no lugar mais sagrado do seu time, aquele buraco guardado pelo goleiro, vem o chute potente, a bola vai, o goleiro se estira, inutilmente, a bola entra. Gol! O estupro aconteceu" ("O futebol e o estupro", 1998 http://www.releituras.com/rubemalves_futebol.asp ).
O futebol de massas se assemelha muito às touradas ou aos sacrifícios humanos no Coliseu. Há muito tornou-se um espetáculo de hipnose maníaca em massa. No futebol como no desenho de "Tom e Jerry" o riso provém do sofrimento inflingido ao vilão: desde cedo a garotada aprende que desenhos "bonzinhos" demais não têm graça. No futebol como no estupro, segundo o raciocínio genérico de Rubem Alves, o prazer é extraído da vontade de domínio, da sensação de força e controle total sobre o outro:
"A torcida grita de prazer. É o orgasmo. E geme a torcida do estuprado: qualquer penetração violenta dói muito. Mas o prazer do estuprador está precisamente nisso: é o sofrimento do outro que lhe dá uma medida da sua potência. Nada mais broxante para o estuprador que encontrar uma vítima que não ofereça resistência, que se abra toda e até goste. A tentativa de estupro terminaria na hora. O estuprador ficaria broxa. O mesmo com o futebol. É a resistência ao estupro que dá ao estuprador a medida de sua macheza. Cada prazer de gol é prazer de um estupro bem sucedido" (id. ibid.).
Por isso talvez futebol combine tanto com a conduta machista e com a racionalidade instrumental do valor-capital. Numa Copa o que se quer, antes que jogar bonito, é vencer inimigos poderosos como a Argentina, para exprimir um poder que não se tem no dia-a-dia -- e não os times fracos, os "café com leite". Pouco importam os meios estéticos portanto: jogando feio, 1 x 0, é isso que importa, se permitir a descarga social da violência contida.
Mas com o futebol de resultados, espelho perfeito do pragmatismo capitalista, é este último quem revela suas verdadeiras implicações psicológicas quotidianas. Quando a violência explode fora dos jogos, o sistema finge não saber de onde ela vem. A tortura e a renúncia acumuladas diariamente podem vazar a qualquer momento de seu recipiente espetacular: na atividade violentamente fanática das torcidas ou mundo afora, no trânsito, na escola, nos espancamentos racistas, no estupro ou no escapismo do álcool ou das drogas. Neste como noutros casos, como diz Vaneigem em seu Tratado de saber-viver,
"Aquilo que produz o bem geral é sempre terrível."
(jun./2006)