23 agosto, 2007

O SOCIALISMO EM DEVIR - A difícil dialetização de uma idéia fixa

O SOCIALISMO EM DEVIR

A difícil dialetização de uma idéia fixa
Claudio R. Duarte

O socialismo foi pensado no âmbito do marxismo como uma fase intermediária para alcançar o comunismo, este último antevisto como a forma plena da emancipação social. Cada vez mais torna-se necessário repensar uma estratégia socialista a partir de nosso presente histórico, e não a partir da realidade histórica das revoluções do passado e de seu imaginário. Para isso, só se pode partir da análise concreta do contexto mundial das tecnologias da 3.a revolução industrial, da crise estrutural do capital incluindo os limites ecológicos de sua valorização, do contexto da globalização neoliberal, do capital fictício mundial, das estratégias de ofensiva de classe e hegemonia militar e ideológica dos EUA e OTAN, da situação de subdesenvolvimento industrializado no Brasil, na América, na Ásia e na Áfica, e enfim das lutas de classe em âmbito internacional, nacional e regional. Essa análise está muito longe de ser feita e é aí que o marxismo brasileiro é mais capenga, cultuando os ídolos do passado sem conhecer realmente o presente em toda a sua densidade histórico-geográfica. Por outro lado, se as pesquisas avançam em grande medida ficam fragmentadas e engavetadas nas bibliotecas, revistas e bancos de tese inacessíveis. E, assim, geralmente resta repetir mais uma vez a história e as tradições "heróicas" das revoluções do passado. O marxismo se enrijece em ativismo imediatista, em teoria militar de conquista do poder central.
Se abstrairmos a dificílima questão do estopim para a mudança, ou seja, a da "transição para os regimes de transição", que dependem enormemente das conjunturas (Que movimentos e classes apontam para um futuro para além do Capital ? Luta democrática institucional, contra-institucional, anti-institucional ? Pacífica ou violenta ? Revolução ou "marcha através das instituições" ? Qual tipo de relação com o Estado ? etc.etc.), temos de pensar, em linhas gerais, que tipo de programa prático poderia engendrar um processo de ruptura com a lógica de reprodução do Capital.
Mas então alguns dogmas "materialistas" vêm logo à cabeça e tornam-se obstáculos práticos. É necessário criticar, portanto, um conjunto de idéias fixas do chamado "socialismo científico". A primeira e mais fundamental delas é a do socialismo como uma fase de "desenvolvimento das forças produtivas", que teria sido emperrado pelo capitalismo. Ora, tudo depende de como se concebem as forças produtivas e a economia: geralmente confundiu-se "produção material" como uma esfera separada do resto do social, como economia capitalista propriamente dita; e forças produtivas como forças de produção de capital, de riqueza abstrata. As idéias fixas em que isso tudo é traduzido, transformado em palavra de ordem, é, assim, a a industrialização a todo vapor, o pleno emprego, o crescimento exponencial do PIB etc.
A ruptura socialista passa no oposto disso: se há algo que o socialismo já não pode ser é um modelo desenvolvimentista e modernizante, postos os limites estruturais atingidos pelo capital (internos e externos), sob pena de cairmos na barbárie e na autodestruição sócio-ambiental do planeta. Pois o que ficou demonstrado no decorrer do século XX é que o capitalismo, como sistema de trabalho sans phrase, trabalho em abstrato, pode conviver muito bem com o progresso desenfreado das forças produtivas "em geral", abstratas, e esse desenvolvimento tornou-se, ao contrário do esperado, o pivô de sua sustentação, através da produção capitalista de novos produtos (supérfluos ou programados para o obsoletismo), novos ramos de produção, com a geração do consumo em massa e, assim, uma forma de autolegitimação prático-ideológica de si como sistema, pseudo-integrador, mas realmente sistema mundial hegemônico. No terreno dos "métodos econômicos", da maximização da produtividade abstrata, da produção quantitativa de dinheiro e excedentes o capitalismo talvez seja imbatível. Mas isso não tem sentido algum para quem se coloca no campo da ruptura socialista, pois só é conseguido ao preço da máxima coerção e desplante, o máximo grau de dominação, exploração e insensibilidade perante homens e natureza.
Se assim é, em contraposição, só poderemos pensar uma forma socialista que seja uma transformação estrutural do modo de vida anterior, que implique numa grande desaceleração e paralisação na produção de bens supérfluos ou destrutivos. Esses ídolos seriam os primeiros a cair. Um socialismo de acumulação burocrática - como "ditadura do proletariado" (que pressupõe uma espécie de generalização de condições negativas: uma proletarização geral da sociedade, com a expropriação de todos os produtores e a concentração dos meios de produção num Estado burocrático) - perdeu todo o sentido como etapa intermediária para o comunismo. Outras dessas idéias é a de uma "acumulação primitiva socialista": uma contradição nos próprios termos. Ao contrário, trata-se de pensar e praticar uma espécie de "desacumulação socialista das forças produtivas", com uma reconfiguração total das tecnologias e processos de produção do capitalismo, incluindo aí sua divisão social e técnica do trabalho. "Desacumulação" no sentido de uma distribuição radicalmente mais igualitária e "consensual" dos recursos produtivos entre as pessoas e os lugares , com a prevalência das necessidades e desejos da sociedade sobre a produção, preponderância do gasto qualitativo da riqueza em vez da poupança coercitiva de meios e de tempo, usados para a produção e o consumo produtivo insano de mais mercadorias ad infinitum (como simples meios eternos para criar mais dinheiro). Trata-se de destruir a lógica da empresa e do Estado capitalistas através de uma "fundação subjetiva" da produção, mas universalmente concreta, propriamente social (daí o nome do próprio conceito de socialismo) não mais num "sujeito automático", cego, descarnado e descentrado, isto é, plasmado em "sujeitos privados" e "monológicos" de classe, como suportes de relações fetichistas, que produzem para mercados anônimos sob a guarda de um Estado burocrático. Não se trata de emular o desenvolvimento norte-americano, europeu ou japonês, mas de romper o sistema por uma alteração radical da "qualidade de vida". O critério da produção não pode ser mais a criação de riqueza abstrata (dinheiro), mas riqueza concreta, orientada pelo consumo "racional" (a racionalidade imanente, enraizada na produção dialógica dos produtores e consumidores reais) de "valores de uso" não-capitalistas: alimentação, saúde, habitação, educação e cultura, espaços rurais e urbanos qualitativos e diversificados, opções de atividade livre e tempo social disponível para usufruir individualmente etc. Se é impossível abolir completamente o dinheiro e a troca de mercadorias num primeiro momento de transição, esses precisam ser neutralizados como simples meios, através do controle social consciente contra a lógica da acumulação de capital (medidas contra uma hierarquia rígida da divisão do trabalho, distribuição mais equitativa dos recursos, impedimentos legais à acumulação privada, à exploração do trabalho alheio etc.).
Ponto importante dessa transição é sua concretização geográfica. Se o novo modo de vida não penetrar no quotidiano e no espaço social da vida (como apontaram pioneiramente Henri Lefebvre, Guy Debord e os situacionistas) - explodindo por dentro as relações de produção capitalistas plasmadas na rotina semanal das grandes cidades, na organização despótica das fábricas e escritórios, na programação burocrática da semana de 5-6 dias de trabalho - então, nenhum socialismo terá chance de vingar, e entrará mais cedo ou mais tarde na velha pista do produtivismo e do consumismo mundiais, ou seja, seguirá as mesmas leis da concorrência mundial e regredirá ao capitalismo. O devir socialista só terá chance no embate teórico e prático - qualitativo - com o modo de vida capitalista. As novas forças produtivas a serem desenvolvidas pautam-se pela qualidade diversa em relação à idolatria da quantidade de meios da sociedade moderna.
Esse ponto material é o mais decisivo para assegurar uma transição para a plena emancipação. Só nessa nova identidade de produção e consumo, concretizada em novas práticas de vida, se oferece, ao mesmo tempo, uma sustentação ética e estética para um movimento anticapitalista global. Provavelmente não haverá mais socialismo sem uma luta iconoclasta dentro do campo imaginário capitalista. E este campo de luta está incluso na transformação da vida material, não é agregado artificialmente como um apêndice. O socialismo em devir precisa afirmar-se tanto material como simbolicamente. Castoriadis anteviu isso como poucos. Uma pequena célula de reprodução socialista desenvolvida poderia ser, assim, contraposta material e culturalmente ao país capitalista mais desenvolvido, não para vencê-lo em números de produtividade, mas para deslegitimá-lo no campo do desenvolvimento social em termos qualitativos, talvez enchendo-o de vergonha e má-consciência, provocando um profundo mal-estar, trazendo à tona as irracionalidades e monstruosidades desse sistema usurpador.
Não há mais socialismo sem "democracia" radical da produção, sem a destruição da lógica do trabalho abstrato, sem superação do crescimento fetichista das forças produtivas capitalistas. Enfim, sem a produção de um novo modo de vida. E só um tal modo de vida plural criaria a força ético-estética que se imporia com força para vencer mundialmente a economia capitalista desvinculada do todo, alienada do social. Para isso, as forças produtivas que estão aí já são suficientes, embora tenham de ser totalmente reconfiguradas por novas relações sociais de produção.
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Alguns pontos de controvérsia
Faíscas do processo ? Teriam de ser várias até pegar fogo de verdade. Começando pelas disputas teóricas dentro da esquerda produtivista (social-democrata, cristã, liberal, estalinista etc.) até a conquista da hegemonia cultural, sustentando-se argumentativamente, a começar pela indicação dos problemas da devastação ambiental evidente, passando pelos movimentos que estão aí e precisam ser de alguma forma unificados em torno da luta anticapitalista. Tarefa gigantesca onde faíscas isoladas não fazem grande efeito e podem ser logo apagadas. O fato objetivo de onde se extraem as possibilidades é: de um ponto de vista brasileiro, como décima economia do mundo, já estaríamos suficientemente maduros (pelo menos em termos de forças produtivas). O que não está maduro são as forças autônomas da chamada "sociedade civil", incluindo partidos e associações de esquerda, que são fracos, enquanto o povo dessindicalizado e despolitizado é esmagado e manobrado como massa. É nesse ponto que incidiria o devir socialista, juntando o que aparece separado.
"Socialismo num só país" ? Será possível ainda pensá-lo, em pleno desenvolvimento globalizado da produção ? Os problemas a serem enfrentados são o atraso das forças produtivas, a questão da defesa contra os ataques contra-revolucionários, a dependência estrutural do comércio exterior etc. - e assim chega-se a mais um conjunto de "idéias fixas" do socialismo, tidas como fruto de "necessidades objetivas": armamentismo, industrialização galopante, regime de terror totalitário. O estalinismo nadou nessas águas sangrentas. Como não desembocar nelas novamente, se o socialismo não chegar sincronicamente ao poder globalmente, senão em algumas partes dele, num processo diacrônico um pouco mais lento do que o esperado ? Ora, o socialismo num conjunto limitado de países passa a ser possível quando não se pressupõe como "fato natural", isto é, de modo ideológico, atrasos enormes nas forças produtivas (se estas forem vistas em grande medida como aparatos configurados pelo capital), atrasos que supostamente precisariam ser superados primeiramente, para só então ser gerado um desenvolvimento igual ou superior ao padrão de crescimento (principalmente bélico e tecnológico) mais alto do centro capitalista. É a famosa lógica etapista: "desenvolver o capitalismo primeiro" - eis um programa de auto-tortura. Hoje essa corrida pela produtividade mais alta não tem sentido algum e será, para nós da periferia, uma mera utopia ensandecida. Claro que as regiões mais subdesenvolvidas da África ou Ásia passariam por processos de industrialização planejada, em moldes diversos da acumulação capitalista. O resto é efeito estrutural da lógica fetichista da produção de mercadorias. O risco é o de se manter um olhar petrificado no padrão de vida ocidental, em boa parte seduzido pelas conquistas do trabalho abstrato, do produtivismo e do consumismo alienados, altamente repressores, do turbo-capitalismo. Não me parece ser o caso de repetir-se o mesmo hoje, com todas as possibilidades de descentralização de tecnologias produtivas avançadas e re-orientação da produção pela lógica do uso, em vez da troca. A violência revolucionária pura e simples não tem mais eficácia alguma se não tiver as armas da crítica mais aprofundada, a racionalidade argumentativa e o desejo radical das maiorias de seu lado, concretizados num novo modo de vida. Sem isso, sem o melhor argumento e o desejo radical de mudança da vida cotidiana, não há socialismo que agüente 1 dia no poder. Estamos muito longe de 1917. O cidadão capitalista do mundo não teria atração alguma por um aventureirismo que prometesse mudar somente o nome do patrão, ou seja, alterar, como fizeram os estalinistas, a "propriedade privada dos meios de produção" e impor uma ditadura do trabalho abstrato - pois isso não afetaria em nada seu modo de vida e as pessoas prefeririam ficar com a sedução consumista de sempre. Com as forças produtivas que aí estão ninguém seria mais obrigado, e isso em plano mundial, a trabalhar 40 horas semanais sem que ninguém mais iria passar graves necessidades com a redução enorme desse tempo de trabalho, que serve em grande parte para produzir coisas supérfluas e destrutivas e para fazer girar a acumulação de riqueza abstrata. Se conseguirmos reconfigurar as forças produtivas no sentido do atendimento das reais necessidades da vida cotidiana dos envolvidos, ecologicamente responsável e humanamente racional, criando um novo espaço de vida e sociabilidade desalienados, onde a autonomia seja preservada, quebrando a semana de 5-6 dias (erigindo, por exemplo, a festa e a criação como "valores centrais"), haveria a chance de ultrapassar, e sem chance de retorno, o padrão de desenvolvimento alienado e destrutivo do capitalismo global. É só a partir de um novo padrão ético e estético, inseridos na própria produção e nas relações sociais num âmbito mais geral, que o socialismo tem alguma chance de concorrer, por fora, contra o capitalismo, transcendendo o padrão tecnológico, econômico e militar do Centro. Claro que a contra-revolução viria em seguida a qualquer movimento que simplesmente declare isso a sério, mas esse é um risco que qualquer transformação radical passará. E é por isso que as relações socialistas, não burocráticas, têm de estar em germe e em consolidação há tempos num país para que se possa finalmente revolucionar e superar o sistema. Neste sentido, talvez o Estado seja ainda um campo de lutas necessário, um elo intermediário transitório. O golpismo revolucionário, porém, não tem mais sentido algum. Um simples ataque norte-amaricano ou aperto de botão num míssil nuclear seria o fim de qualquer socialismo. Por isso: sem base social nunca mais. Ainda assim, evidentemente não se chega ao socialismo ao mesmo tempo no mundo todo. Um fato positivo, porém, é que o isolamento nunca seria completo, como nunca foi em Cuba, China ou URSS.
Crítica imanente e transcendência. A única crítica imanente ao capitalismo atual corre por fora dele, por fora do hiperdesenvolvimento das forças produtivas tecnológicas ensandecidas, por fora das necessidades de trabalho insensato, destruidor, por fora da rotina cotidiana estupidificante - embora tenha de correr processualmente por dentro da imanência do sistema para corroê-lo e pô-lo abaixo. No terreno econômico, como esfera abstrata e separada do deus-capital, o liberalismo produtivista e consumista empilha vitórias e enterrará sempre todos os sonhos de socialismo estatista e burocrático. No terreno do sensível e do concreto, o socialismo anti-valor seria a única chance de superar o capitalismo, reconectando novamente os homens (ruptura de sua forma de sujeito burguês moderno) no plano de imanência da vida e da Terra.

Derrotar o american way - Para aqueles que acham o american way of life algo insuperável, crêem que carros, roupas, moda, lanches, refrigerantes, Hollywood, internet e gadgets são o máximo que a cultura da humanidade pode chegar, ou que Japão, Suécia ou Austrália são o melhor dos mundos possíveis, pode-se jogar com um argumento simples, o último fio de razão que ainda resta: contra estas opções políticas, éticas e estéticas imanentes ao sistema quase já não há argumentos senão dizer que elas mesmas se declaram como lixo e adaptação conformista e cínica a um mundo que há muito, e mais ainda agora, está ficando invivível (aquecimento global, desemprego estrutural, violência em todos os níveis etc.). O desvario produtivista e consumista, a insanidade de uma rotina de trabalho incessante que não leva a lugar algum a não ser ao suicídio coletivo, ao ressecamento das relações humanas, à violência, às drogas, a uma cultura insensível, ao sadomasoquismo implícito e explícito, ao machismo, racismo etc., enfim, à perda de liberdade na maior parte do tempo, na vida tragada pelo trabalho competitivo, - tudo isso são pontos de crítica para uma sociedade que não tenha perdido o núcleo de real dentro da imaginação, desejos radicalmente opostos aos das sociedades coisificadas pelo capital. Mas a coisificação não é um processo natural e irreversível.
Estratégia bolchevista ? O leninismo em seu tempo foi a atenção concentrada ao objetivamente possível. Em muitos pontos Lenin foi lúcido quanto à estratégia modernizante da Rússia, que instauraria um "Capitalismo de Estado" como forma de transição para o gigantesco atraso de um país agrário-feudal. Para isso, os métodos tayloristas, tidos como "neutros", serviriam como a medida de terror necessária para lançar-se para além de um estado calamitoso. O atual bolchevismo requentado, porém, não tem mais essa lucidez alguma. Tornou-se mera caricatura. Não passa de uma forma de ativismo irresponsável e voluntarismo autoritário. Em primeiro lugar, não descartemos a destruição revolucionária do Estado abstratamente. Por outro lado, o questionável são as próprias raízes profundamente mercantis-modernizantes do bolchevismo, que não passa historicamente de produtivismo e imposição da mesma hierarquia do trabalho alienado da fábrica e do escritório. Desenvolver um país atrasado implicou desde o início em um socialismo de caserna, pautado na disciplina do trabalho abstrato. Isso reproduz não exatamente o capitalismo, mas a lógica do Capital, como mostraram de formas diferentes Castoriadis, Kurz e Mészáros.
Socialismo como pregação ética abstrata ? É claro que não me referi acima a uma pregação "ética" (anticapitalista) para empresários, muito menos isso tudo desvinculado de um movimento emancipatório mais amplo. Isso é óbvio. O que está em discussão é como estruturar a coisa com chão sólido: a reconstrução de um socialismo de base muito mais ampliada, e que só poderá renascer a partir da luta cotidiana dos trabalhadores e de todos aqueles que desejam sair radicalmente desse modo de vida altamente repressor e irracional (nos sindicatos, movimentos feministas, ecologistas, negros, etc.). Sem essa frente ampliada, sem uma teoria muito mais crítica, argumentada e liberta de dogmas (sem os chavões estalinistas, produtivistas, estatistas e obreiristas do marxismo tosco), a mídia burguesa tomará conta e a população será seduzida facilmente pelas promessas individualistas do antigo sistema. A discussão ética e o processo de constituição e educação da classe anticapitalista vêm em primeiro plano num movimento alargado como esse. Mas ele só se traduz em práxis se atingir realmente a organização da produção. Só isso é capaz de fazer secar a semente "capitalista" que há no corpo (e no "cérebro") de cada trabalhador e consumidor inveterados desse sistema, sob pena de reproduzir-se os mesmíssimos erros do socialismo burocrático de caserna: a passividade forçada das massas convertidas em exército e trabalhadores forçados, o autoritarismo e a ditadura de uma elite partidária de pseudo-iluminados que não representam ninguém senão as cartilhas empoeiradas da modernização retardatária sino-soviética.
(Texto elaborado a partir de discussões na Comunidade Karl Marx) - setembro de 2007

15 julho, 2007

O NÃO-LUGAR DE HABERMAS NO DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

O não-lugar de Habermas no "Discurso Filosófico da Modernidade"
Cláudio R. Duarte
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Qual seria o lugar de Habermas se escrevêssemos, em seu lugar, o nosso Discurso Filosófico da Modernidade ? Mantendo o argumento básico habermasiano - as contradições performativas de quem desanda a falar monologicamente - chegaríamos nos seguintes resultados protocolares:
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$ Imaginar uma emancipação humana mantendo como base o sistema do trabalho capitalista - anti-humano, "automático", por definição. Nesse mesmo sentido, intentar ultrapassar os antihumanistas Nietzsche, Heidegger, Bataille ou Derrida com argumentos que dependem deste outro antihumanismo como base material.
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$ Querer superar Hegel, mas mantendo a mesma solução estatista (embora publicizada, dialogicizada) para o contorno e a paralisação do antagonismo, refrigerando as tensões e contradições sociais latentes, mas nunca as resolvendo, o que pelo menos o velho Hegel sabia dialeticamente onde iam parar: sempre no deslocamento ou exportação do conflito para a periferia (onde elas explodem em guerras selvagens, sem normatividade alguma). Daí a eterna luta habermasiana para continuar "modernizando a modernidade" do capital, numa "guerra infinita" pela "paz perpétua", sempre inalcançável.
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$ Desejar promover um discurso normativo anti-ideológico (sem coerções comunicativas) mas pressupondo que o capital irá aceitá-lo pacificamente ou que isso será realmente possível, já que as regras fundamentais do lucro não são postas em xeque. Já que tudo depende de um "consenso pragmático" sobre a verdade dos fatos e processos reais, contraditórios, tal discurso anti-ideológico serve apenas como mais uma ideologia legitimadora do sistema antagônico.
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$ Almejar ultrapassar o paradigma da produção (ou do trabalho) mas deslocando-o e mantendo-o a salvo, como centro ontológico material pressuposto, como fundamento sistêmico da experiência social, sob o discurso de ser mais "funcional" para a uma boa vida, apenas a ser "descolonizado" e "despatologizado" pela "razão comunicativa": "antes de me roubar, vamos bater um papo ?" Nesse mesmo sentido, intencionar a superação do princípio da identidade mas pressupor que o sistema alienado de identidades do capital, da forma da troca de equivalentes à forma identitária dos sujeitos monológicos e instrumentais da mercadoria, não poderá realmente ser superado, senão serpentear um pouco no cotidiano comunicativo no mundo da vida. É a vida: $ .
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Alguém se lembra de alguma performatividade filosófica moderna tão estranha ? Talvez só a desse grande adversário utópico do discurso filosófico da modernidade:
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"Esse pensador não tem necessidade de nada para ser refutado: ele mesmo se incumbe da tarefa" (Nietzsche, O andarilho e sua sombra, § 249).
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(Julho de 2007)

22 junho, 2007

10 junho, 2007

UM SCHOENBERG KITSCH-GROTESCO

UM SCHOENBERG KITSCH-GROTESCO
Expressionismo alemão e bandalheira geral brasileira
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Para Carlos e Lara,
que dividiram sua dor em comentários ou mutismo sábios
Cláudio R. Duarte

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O que esperar, Schoenberg no Brasil !?... com músicos e produtores renomados na organização (Gerald Thomas, Lívio Tragtenberg, Adélia Issa como solista, Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro de Porto Alegre-RS), na boa infraestrutura do Sesc Pinheiros... assim vai-se confiante em ver uma boa apresentação... algo de interesse, em especial para quem vive num país culturalmente empobrecido como o nosso... o país do "jeitinho" e do funk carioca - e assim aproveitando o pretexto da peça expressionista - Pierrot Lunaire (1912) - com seu clima feérico e de absurdo organizados, os lunáticos brazucas aproveitaram para simular um hiper-desvario pós-moderno e forçar a coisa a sair dos eixos num desfile carnavalesco de monstruosidades kitsch. A cenografia exagerada de Gerald Thomas ironizava tudo a partir de uma apropriação usurpadora da obra, "transcriadora" no mau sentido -, desde a tomada da lua pela bandeira brasileira, uma bailarina dançando despropositalmente sem equilíbrio sobre o cenário lunar ou alguns pobres no chão lendo jornal ou fazendo macaquices - o que traía a atenção concentrada exigida pelo compositor mestre máximo dos contrapontos, atraindo o ouvinte para "cenas" terrivelmente banais e sem sentido -, até a presença irônica maior de Elke Maravilha na peça (uma espécie de síntese do kitsch dos gadgets anos 70 e dos programas de tv a ela associados), tudo moldado pelo discurso iluminado abre-alas/fim de linha de que simplesmente o mundo se tornou enfim pura mercadoria, ou um "país de ladrões" e "palhaços" enganados todos nós, como se diz no início, constatando-se cinicamente, ao gosto da ideologia sem estofo de hoje - ao menos o sentido como um todo dessa apresentação diz mais que seu suposto discurso crítico, inclusive folder explicativo -, enfim, a constatação de que não existe realmente mais ética e nem qualquer saída, nem mesmo, obviamente, na produção séria de música que um dia se quis séria...
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Com o injustificado apoio de Lívio Tragtenberg conseguiu-se desarmar completamente o impacto da música de Schoenberg, principalmente através do recurso de mau-gosto de intercalar a dissonância de Pierrot com composições eletrônicas vulgarmente esquisitas: musicando-se horrivelmente trechos dos poemas originais do francês Albert Giraud não-usados por Schoenberg na ocasião da composição; por outro lado, até mesmo pela tradução de Augusto Campos para o português, que apesar de cuidadosa e "transcriativa", é diminuidora da estranheza do alemão cantado (principalmente para nossos ouvidos), tal como cuidado por Schoenberg, aliás, nos mínimos detalhes da partitura... tudo ainda corroborado pela péssima mixagem do som do teatro, que engoliu completamente o instrumental (numa execução fiel, diga-se de passagem, mas abafada) colocando a cantora lírica em primeiro plano, com tiques involuntários de ópera bufa. Em suma, uma palhaçada digna dos Trapalhões - já que a intenção parcial talvez era trazer o atual mundo brasileiro, sobretudo o transfigurado pela tv e todos os sistemas e subsistemas da indústria cultural, para dialogar com o atonalismo do início do século ... com direito ainda a piorar do meio para o final, com a convidada de honra, "Deize Tigrona", a mais esdrúxula representante atual do funk carioca (!), cantando as baixarias da pior espécie dessa "música" nos intervalos que restavam (que soavam obviamente a título de piada, mas contada duas vezes, sem graça, iam ou deveriam ir até enjôo)... uma grande liqüidação, com efeitos calculados de circo grotesco, gargalhadas e aplausos obedientes de um público distraído, que já não sabia a que veio...
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Numa tal apresentação, um "happening" segundo justificativa de Gerald Thomas no final do espetáculo, a obra supostamente autônoma de Schoenberg é assaltada e se rende totalmente aos influxos vindos de fora... e foi isso que se teve muito bem encenado, com a proeza de converter música atonal em show trash de calouros, desde o signo bárbaro de abertura, a da apropriação brasileira da lua, até a intrusão proposital do barulho eletrônico, Elke dando sua palhinha no "canto" ou o funk carioca em constraste com o atonalismo de um minuto atrás. No palco, os "civilizados" atonais à esquerda, os bárbaros, brasileiros sem tom algum, à direita. Na próxima deveriam superpor as duas coisas, misturar tudo, liberar geral: talvez o resultado seria mais digno, se o objetivo dos produtores era significar que não se pode mais ter a experiência fiel da obra schoenberguiana num mundo completamente desolado e fim de feira como o nosso - assim a esculhambação seria total, não um mero gesto teatral inofensivo. Nalguma medida, porém, a ironia e o kitsch pertencem à própria obra intencionada por Schoenberg. Como diz Adorno,
"Não apenas o texto escolhido faz com que a obra-prima de Schoenberg possua a ameaçadora afinidade com o kitsch, situação paradoxal que atinge todas as obras-primas, mas a própria música, em sua tendência para a fluidez linear e efeitos surpreendentes, sacrifica algo daquilo que Schoenberg conseguiu desde a Erwartung. Apesar de toda a virtuosa espiritualidade do Pierrot, e ainda que nele se achem algumas de suas composições mais complexas, o propósito musical de produzir nexos de superfície faz com que ele imperceptivelmente se afaste de sua posição mais avançada" (Prismas, "Arnold Schoenberg, 1874-1951", S.Paulo, Ática, p.162).
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Tal posição mais avançada, segundo Adorno, seria uma espécie de "música sem imagens", uma música do absolutamente novo e não-idêntico, na compulsão autoral de "purificar a música de elementos previamente concebidos", que levava "não apenas a novas tonalidades, como os famosos acordes de quartas, mas também a uma nova esfera de expressão, distante da cópia de sentimentos humanos", - expressão mimética possível do Outro, do exterior, não totalmente subjetivo no sujeito, enfim, a uma ruptura com "um estrato fundamental da música", a recusa da "adaptação da linguagem musical à linguagem significativa dos homens"(ib., p.156). Os poemas expressionistas do ciclo escolhidos por Schoenberg são propositalmente obscuros, como a música, complexa, áspera, atonalmente livre, não obstante as remarcas já citadas de Adorno. Nesta apresentação, entretanto, nada mais vulgarmente clarificado e hiper-significado de sentimentos e sentidos vulgares - daí o monstro kitsch.
"A arte tornou-se vulgar pela condescendência: quando, sobretudo através do humor, invocou a consciência deformada e a confirmou (...). Do ponto de vista social, o vulgar é, na arte a identificação subjetiva com o envilecimento objetivamente reproduzido" (Adorno, Teoria Estética, Ed. 70, p.268).
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O Pierrot assim transfigurado torna-se a imagem fatal da impotência, a neutralização total do trágico em auto-ironia e niilismo cínico. A denúncia ética da reificação, como mera intenção, na prática tornou-se seu contrário, recaindo no mesmo. Partiu-se talvez do seguinte raciocínio de boteco fim de noite: se essa música já não significa mais nada para nós em geral, só um caminhão de imagens de choque (literalmente apresentado no final do espetáculo, aliás), arbitrárias e surpreendentes (tal como provavelmente soava a música do Pierrot em 1912), lhe traria novo alento. É como se a inteligência auditiva não existisse mais em nossas terras, só o olhar blasé do consumidor televisivo. Utilizando-se dos mesmos meios psicotécnicos da indústria cultural, não podia-se chegar senão na diversão vulgar. Monta-se então a ironia da ironia da ironia, que desarma completamente a peça, já que nada mais é para ser acreditado, nada tem mais força (des)estruturadora, nem mesmo o atonalismo - e o que sobra de Schoenberg nisso tudo ? Um espetáculo de massas grotesco que reintegra, com o gesto irônico hiper-sabichão mas moralmente tolo e completamente vulgarizador, aquilo que queria-se desintegração, ruptura da mônada-sujeito, libertação da dissonância e da dor do singular.
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(Espetáculo "Luar Trovado" a partir de Pierrot Lunaire de Arnold Schoenberg - Sesc Pinheiros, São Paulo, 09/06/2007).

01 abril, 2007

"TUDO É MENTIRA NESTE MUNDO"

"TUDO É MENTIRA NESTE MUNDO "
Ciência e sociedade em tempos de simulação especulativa de mercados

"Mentira lo que dice / Mentira lo que da / Mentira lo que hace / Mentira lo que va / (...)Todo es mentira en este mundo" (Manu Chao, Mentira)

Cláudio R. Duarte

Em suas múltiplas versões as ciências sociais acolheram o fato social como garantia de objetividade e validade. De Comte a Durkheim, de Parsons a Luhman, de Bourdieu a Habermas, passando por todo o marxismo positivista e estruturalista, a ciência se fez da descrição e validação de leis e sistemas sociais coercitivos que se impõem aos sujeitos, além de seu controle e consciência. Para além do psicologismo e do historicismo, levou-se a sério o poder objetivo das estruturas.

Na crítica da economia política de Marx a mentira tem pernas longas, longuíssimas. Tudo é virtualmente mentira no mundo fetichista das mercadorias, mas cada mentira abona outra, confirmando o sistema de valorização do capital como um sistema de ilusões e abstrações reais, que convivem lado a lado no paradoxo e raramente se resolvem na contradição dialética. A mentira, o fragmento autonomizado do todo, aqui, pesa muito mais que a mão de uma criança. É eficaz, cerca, constrange, molda, abala, destrói.
Quanto mais a ciência se prende ao mero fato mais ela recai na mentira que supostamente teria superado junto com a metafísica; sem se atentar para o negativo desses fatos, que nunca são dados primários nem últimos – sem aprendê-los conceitualmente em sua costura numa certa totalidade histórica há muito obsoleta – fatalmente ela se perde e legitima uma ordem falsa e podre da cabeça aos pés. Já dizia Marx que as posições no sistema, incluindo as classes e suas lutas, se fazia através de "máscaras de caráter" e "personificações" do capital. Da grande farsa da igualdade social e da troca de equivalentes no mercado de trabalho (a ideologia do "salário justo", desmentida a cada segundo pela espoliação descarada da mão-de-obra) ao engodo da liberdade e fraternidade (desmentido todos os dias pelas imposições de um trabalho insano e pela violência de todos os tipos), passando pelos trâmites sujos da política, pela empulhação da propaganda e da cultura industrializada monopolistas, pela "obsolescência planejada" de produtos e pelas práticas cotidianas de micro-embaçamentos e malandragens do "cada um por si" na concorrência global, finalmente, como um enorme castelo de cartas, o sistema se apóia, hoje sob uma forma econômica cuja substância tende a se perder: a forma de valor das coisas no mercado.
O valor, conforme a economia política clássica, funda-se no trabalho produtivo, medido em tempo de trabalho socialmente necessário para se produzir uma mercadoria. Ora, se cada vez é menor esse tempo socialmente necessário, dadas as tecnologias da 3ª Revolução Industrial, também deve ser tendencialmente cada vez menor, em proporção, a quantidade de mais-valia real acumulada pelo sistema global. Todo o edifício social armado sob essa economia é cada vez mais a ficção de uma hiper-acumulação especulativa, girando na superestrutura creditícia nas bolsas de valores, que antecipam em décadas o desenvolvimento futuro que ainda não existe. No âmbito social, é a bolha especulativa que mantém ainda em pé o poder de nações inteiras, das macro-estruturas estatais e empresariais até o fluxo comercial do sistema de objetos de consumo, das viagens às casas e carros da classe média, etc. Na universidade, seu sinal é o pragmatismo extremo dos cursos que só visam ao lucro e as falsas promessas de inserção no mercado de trabalho ou, por outro lado, a moda pós-modernista nas ciências humanas, que termina por estetizar ideologicamente as seqüelas simulativas desta grande mentira de base, nas mais diversas práticas cotidianas.
Mas o sistema mentiroso chega a um nível de esclarecimento e de desilusão, como anteviram Adorno e Horkheimer na Dialética do Iluminismo, que a mentira aberta não é mais levada a sério, mas aceita como mero fato bruto, como a naturalidade do poder existente. Por isso a ideologia hoje pode até ser descartada e tender a zero. O nazismo foi o precursor desta decadência da razão: pouco se escondia, tudo era visto através dum véu delgado e transparente. Entre nós, bem antes Machado de Assis anteviu algo dessa fusão de realidade, farsa e arbítrio na figura literária do “senhor de escravos liberal”, a subjetividade que goza perversamente na mentira, na máscara, no puro discurso e no capricho, sem as graves conseqüências que o efeito de realidade traria. Mas a realidade da mentira neste caso não pesava – não desta perspectiva de nossa classe dominante. A cara de pau sempre foi a condição de nossas elites.
Hoje, no auge do fetichismo dos mercados especulativos, o convívio diário com a simulação ou a franca aceitação da mentira em todos os níveis e âmbitos do cotidiano moderno, apenas escancara que a sociedade do “espetáculo integrado”, como dizia Debord nos Comentários da Sociedade do Espetáculo, é absurdamente irracional e debochadamente cínica. Neste momento se expande o "segredo generalizado" junto à "mentira sem contestação". É assim que a sociedade se reproduz em bloco, mesmo cheio de rachaduras, num "presente perpétuo": quando, por exemplo, a própria mentira desvendada é celebrada como fato estético ou humorístico. Todos riem das falcatruas de um Paulo Maluf ou dos balanços falsos de empresas como a Enron, mas esse riso é completamente apologético. Rir e ferir, "zombar da filosofia" diria Pascal, hoje é confraternizar-se com o embuste do poder.
(1º/ABRIL/2007).

03 março, 2007

FERREIRA GULLAR: PALAVRA SOLTA, ATADA À VIDA

Ferreira Gullar:
palavra solta, atada à vida
*
"Ainda há pouco, quando atravessava a toda pressa o bulevar, saltitando na lama, através desse caos movediço onde a morte surge a galope de todos os lados a um só tempo, a minha auréola, num movimento precipitado, escorregou-me da cabeça e caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la." (Charles Baudelaire, "A perda da auréola")
*
Ferreira Gullar foi um dos poetas brasileiros que se deparou primeiro com os becos sem saída da estética neoparnasiana da chamada "Geração 45". Se em A Luta Corporal (livro de 1950-1953) ainda podíamos ouvir alguns ecos de literatice em alguns dos "Sete Poemas Portugueses" - que, segundo o próprio poeta, foi seu "acerto de contas com a tradição da poesia metrificada" -, no mesmo livro (aliás, nesse mesmo conjunto de poemas), e mais à frente, há uma importante ruptura, uma queda dos cumes etéreos da Poesia Monumental ao embate poético corpo-a-corpo com a vida. Já no segundo dos Poemas Portugueses (1), que abre o livro, se lê:
*
Nada vos oferto
além destas mortes
de que me alimento
*
Caminhos não há
mas os pés na grama
os inventarão
*
Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação
*
Fonte, flor em fogo,
que é que nos espera
por detrás da noite ?
*
Nada vos sovino:
com a minha incerteza
vos ilumino
*
O poeta promete-nos assim uma palavra arrancada do vivido, do já não-presente (as "mortes"), uma poesia dúbia, incerta, mas com os pés no chão, no "gramado", uma "fonte" que incendeia, como uma "flor em fogo", com seu lume abrindo caminhos dentro-além da "noite".
Daí em diante no livro, como em Baudelaire, o poeta larga sua "auréola" na lama, precipita o vocabulário no chão duro da vida, pintando suas rimas com versos propositalmente brancos ou com rimas internas, muito mais sutis e tortuosas, procurando palavras e estruturas de choque para elas, chegando ao limite do vocabulário chulo, submergindo no rico conteúdo da vida, na velocidade do movimento negativo do tempo, com seu escoar infinitamente criador e destruidor, se atendo, assim, ao efêmero e ao perecível, como nos poemas tirados das coisas mais cotidianas: o galo, a galinha, as pêras apodrecendo no prato, a avenida da cidade. Seguindo sua matéria, a forma poética também se abre... daí outra tendência de ruptura no livro: o poema em prosa, linha reta, de influência surrealista:
*
"Carta ao inventor da roda
O teu nome está inscrito na parte mais úmida de meus testículos suados; (...) tu inventaste o ressecamento precoce de minhas afinidades sexuais, de minhas probabilidades inorgânicas, de meus apetites pulverulentos; tu, sacana, cuja mão pariu toda a inquietação que hoje absorve o reino da impossibilidade visual, tu, vira-bosta, abana-cu, tu preparavas aquela manhã, diante de árvores e um sol sem aviso, todo este nefasto maquinismo sevicioso, que rói meu fêmur com uma broca que serra meu tórax num alarma nasal de oficinas de madeira.(...)" (A Luta Corporal, p.71).
*
Como em Drummond, tal poesia só se produz no trabalho negativo duma linguagem corrosiva sobre os objetos do mundo, tirando-lhes de sua suposta naturalidade, de sua ilusão de transparência ou ar de inocente poeticidade. Só o objeto quebrado pela linguagem eleva-se à poesia:

"...despreza o mar / que amas, e só assim terás / o exato inviolável /mar autêntico" (ibid., "P.M.S.L.", p.34)
*
ou:
"(...) As frutas sem morte / não as comemos" (ibid., "A fala", p.92).
*
Sua intenção parece já não ser mais a encantação, mas o desenfeitiçamento. Seu método é a colagem da expressão poética na ação materialista do tempo. Exemplar, neste sentido, será a análise de "Carta do morto pobre"(do conjunto "Um programa de homicídio"):
"Bem. Agora que já não me resta qualquer possibilidade de trabalhar-me (oh trabalhar-se! não se concluir nunca!), posso dizer com simpleza a cor da minha morte. Fui sempre o que mastigou a sua língua e a engoliu. O que apagou as manhãs e, à noite, os anúncios luminosos e, no verso, a música, para que apenas a sua carne, sangrenta pisada suja - a sua pobre carne o impusesse ao orgulho dos homens"(p.43).
A imagem predominante aqui é a do poeta em seu trabalho ininterrupto de composição - trabalho sempre vão - inconcluso - em sua tentativa de capturar a realidade. O que resta, negativamente, é a materialidade das coisas e do corpo lá fora.
"(...) Oh não ultrajes a tua carne, que é tudo! Que ela polida, não deixará de ser pobre e efêmera. Oh não ridicularizes a tua carne, a nossa imunda carne! A sua música seria a sua humilhação, pois ela, ao ouvir esse falso cantar, saberia compreender: ´sou tão abjeta que nem dessa abjeção sou digna´. Sim, é no disfarçar que nos banalizamos,
"Vê o diamante: o brilho é banal, ele é eterno. O eterno é vil! é vil! é vil! //
Porque estou morto é que digo: o apodrecer é sublime e terrível. Há porém os que não apodrecem. Os que traem o único acontecimento maravilhoso de sua existência. Os que, súbito, ao se buscarem, não estão... Esses são os assassinos da beleza, os fracos. Os anjos frustrados, papa-bostas! oh como são pálidos!" (ibid., p.43).
*
Daí sua desconfiança da estética institucionalizada:
"Ouçam: a arte é uma traição. Artistas, ah os artistas! Animaizinhos viciados, vermes dos resíduos, caprichosos e pueris. Eu vos odeio! Como sois ridículos na vossa seriedade cosmética!" (ibid., p.43).
*
Daí também seu programa de estranhamento poético, um claro prenúncio da estética posterior de "Poema Sujo":
"Olhemos os pés do homem. As orelhas e os pêlos a crescer nas virilhas. Os jardins do mundo são algo estranho e mortal. O homem é grave. E não canta, senão para morrer"(ibid., p.43).
*
Uma moral da história - a relação intrínseca de poesia, morte e libertação - se dissemina por outros poemas, como em:
"A beleza é mais frágil do que a vida // Esperamos a morte, sem defesa" ("A fera diurna", p.25).
Ou ainda:
"Era preciso que / o canto não cessasse / nunca. Não pelo / canto (canto que os / homens ouvem) mas / porque can- / tando o galo / é sem morte" ("As peras", p.38).
Só no frágil instante do dizer poético, em que cintilam as coisas miúdas da vida, há algo que lembre a verdade. O ato de compor para Gullar só se redime na tentativa do poeta "incendiar-se". Só isso leva também ao desengano de si:
"(...) construo, com os ossos do mundo, uma armadilha; aprenderás, aqui, que o brilho é vil; aprenderás a mastigar o teu coração, tu mesmo" (ibid., "Um programa de homicídio", parte 1, p.45). Ou ainda:
"O que somos é escuro, fechado, e está sempre de borco (...) O que somos não nos ama: quer apenas morrer ferozmente" (ibid., parte 4, pp.48-9)".
*
Gullar se identifica várias vezes com o ponto de vista da morte. Sua visada é a da alegoria, no sentido benjaminiano do termo, mais que do símbolo: o ponto de vista da destruição da aparência de reconciliação. Só assim se reencontra, ecoando simultaneamente Manuel Bandeira e João Cabral, a integração com o ciclo natural:
"Vai o animal no campo; ele é o campo como o capim, que é o campo se dando para que haja sempre boi e campo; que campo e boi é o boi andar no campo e comer do sempre novo chão. Vai o boi, árvore que muge, retalho da paisagem em caminho. Deita-se o boi, e rumina, e olha a erva a crescer em redor de seu corpo, para o seu corpo, que cresce para a erva. Levanta-se o boi, é o campo que se ergue em suas patas para andar sobre o seu dorso. E cada fato é já a fabricação de flores que se erguerão do pó dos ossos que a chuva lavará, /
quando for o tempo." (ibid., parte 5, p.50).
*
Como apontou João L. Lafetá, o poeta tende no final do livro, a um lirismo que beira o "solipsismo" (2), onde a desintegração do verso em palavras soltas, e da própria palavra em a-significantes, submerge mui facilmente a dureza do mundo numa linguagem opaca e hiperfluída, um enxurro demolidor - como no poema "Roçzeiral" ("Au sôflu i luz ta pom -/ pa inova´/ orbita / FUROR / tô bicho / ´scuro fo-/ go / Rra // UILÁN / UILÁN, / lavram z´olhares, flamas! (...)", ou naquele último que se inicia com o verso "negror n´origens" -, resultando em algo que o poeta não deixava de perceber, no poema anteriormente analisado, como um:
"(...) vertiginoso acúmulo de nadas!" (ibid., parte 4, p.48).
... enfim, como na fase intermédia de Drummond (de Claro enigma até A vida passada a limpo), uma diluição do ser no nada ou no amorfo: "O que somos, o ser, que não somos, não ri, não se move, o dorso velhíssimo de poeira (...)".
* * *
A partir de Vil Metal (1954-1960) o poeta retornará cada vez mais em direção ao mundo objetivo. Um dos melhores poemas dessa virada é "O escravo"(p.149):
O escravo
*
Detrás da flor me subjugam,
Atam-me os pés e as mãos.
E um pássaro vem cantar
para que eu me negue.
*
Mas eu sei que a única haste do tempo
é o sulco do riso na terra
- a boca espedaçada que continua falando.
*
Como antes, o objeto hiper-poetizado, a coisa natural - a "flor", o "pássaro" - são tidos como suspeitos, imprestáveis se tomados ingenuamente. Novamente só a desnaturalização dos objetos pode os elevar à poesia. Mas a poesia verdadeira é a que fica atada à vida, ligada ao tempo por uma haste, que é, no belíssimo verso, "o sulco do riso na terra", um riso vindo de uma boca em pedaços, que continua dizendo a negatividade desse mundo.
Gullar irá aguçar cada vez mais uma perspectiva que poderíamos nomear como "poesia atada à vida exterior", abrindo-se para o mundo. Irá passar pelas estações do objetivismo poético, com a fase concretista/neoconcretista e pelo período da poesia diretamente engajada, como nos "romances de cordel". Mas é após o golpe militar de 64, a partir de "Dentro da noite veloz", que iremos ter com a maturidade desse grande poeta.
*****
Notas:
(1) Ferreira Gullar - Toda Poesia (1950/1980). São Paulo, Círculo do Livro, 1983, p.18. Todas as citações virão com o nome do livro ou do poema correspondente, seguido do número da página.
(2) "João Luiz Lafetá - "Traduzir-se. Ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar" in: ___. A dimensão da noite e outros ensaios. Antonio Arnoni Prado (org.). São Paulo. Duas Cidades/Ed.34, 2004.
(Dezembro - Fevereiro - 2007).