23 fevereiro, 2014

De Junho a Junho: rumo ao pleno estado de exceção

Cláudio R. Duarte
 
Após a morte acidental do cinegrafista em fevereiro de 2014, a mídia burguesa rotinizou o que sempre foi sua especialidade, desde junho de 2013, data do início de todos os protestos: incriminou, julgou e convocou a polícia para descer o sarrafo em quem quer que estivesse na rua. Alckimin e sua polícia entenderam muito bem o recado e passaram à ação. Apareceu na rua, pronto, é black bloc, é baderneiro, vândalo, vagabundo comunista ou - que ironia sem graça - "petralha".
 
O que se seguiu ontem então, sábado 22 de fevereiro, uma data que sem dúvida vai entrar para a história, é mais uma vez o velho "estado de exceção preventivo". Uma espécie de ensaio contra as manifestações durante a Copa de Junho de 2014 - ensaio de uma suspensão do direito de se reunir e de se manifestar nas ruas, seja qual for o motivo ou forma da ação. Não só manifestantes, mas também jornalistas e advogados foram presos ou coagidos pela polícia - pois a ideia é claramente aterrorizar a todos para expulsar toda "desordem" das ruas.  Enquanto isso, o cinismo midiático vai glorificando as manifestações que ocorrem lá fora, na Ucrânia e na Venezuela, como se reformas democráticas radicais estivessem realmente em curso, armadilha em que parte da esquerda brasileira mais cega ou mais brucutu também cai, como se houvesse algum lado realmente positivo para aderir. (1*)
 
Segundo um jornal, a polícia confirma cinicamente que irá continuar a agir da mesma forma daqui para diante. Com o que se conclui que o estado de exceção só não foi decretado e declarado abertamente - porém rege na surdina todo o corpo social. Na mídia, nas redes sociais, a vigilância ostensiva continua a suprimir qualquer conteúdo virtualmente subversivo. Quarenta lideranças foram convocadas no Deic, exatamente no dia e na hora dessa última manifestação.
 
Ontem, 22 de fevereiro, mais de 200 pessoas, ao que se sabe, foram presas no centro de São Paulo, sem motivo justificável. Em junho de 2013, como se sabe, a polícia foi arbitrária e violenta, socando o pau antes de ver ou perguntar qualquer coisa. Ontem, a mesma coisa se repetiu, de forma ainda mais clara. E dessa vez havia mais polícia do que manifestantes nas ruas. Conhecemos muito bem este filme da tela quente...


 
 
O que pensar e fazer a partir disso? Para onde vamos? Cenas assim, iguais ou piores que as de junho de 2013, vão virando rotina e se naturalizando. Infelizmente. É preciso reconhecer que o movimento insurgente, sem apoio da massa da classe trabalhadora nas ruas, vai inexoravelmente perdendo a legitimidade, sendo confundido irracionalmente com o desatino de moleques sem nenhuma  pauta concreta, senão o estilingue, a bola de gude e a paçoca inflamável. A tática black bloc, espontaneísta e voluntarista, parece que finalmente se esgotou, porque sem dúvida o inimigo de classe tem muito mais força. A estratégia estatal de desmonte dos movimentos sociais é clara: prender e autuar qualquer um de agora em diante para acuar a massa e afugentar qualquer oposição, pelo menos até junho de 2014. Enquanto na esfera federal, vale lembrar, vai sendo tecido o novo AI-5 que transformará manifestantes em terroristas.

 

Também é preciso reconhecer que o estado de exceção facilmente se justificará em termos ideológicos para as classes conservadoras da ordem - o que inclui o grosso da classe média e boa parte da classe trabalhadora despolitizada - enquanto não criarmos uma verdadeira alternativa política ao PT e à reaçada restante no poder. Noutras palavras, eles vencerão através da prática violenta, mas também através do discurso deles, mobilizado pela imprensa conservadora, que preenche sozinha a nossa ausência de discurso e de práxis política coerentes.

 
O começo dessa virada poderá ser aproveitada se a esquerda souber estudar as consequências e as reações possíveis à nova rodada de crise global que vai se afirmando no cenário internacional. União Europeia, Estados Unidos, Japão  - nenhum país ou região "vencedora" está seguro(a) de sair realmente da recessão, principalmente quando os próprios "emergentes" - e o megaendividamento chinês (mais de 220 trilhões de dólares!) é o barril de pólvora mais explosivo para o futuro - já dão sinais de desaceleração e de patinação no gelo da nova fase da crise estrutural. A crise ambiental, além do mais, ainda vai bater à nossa porta, mais cedo ou mais tarde. Nesse contexto, o modelo neokeynesiano de Dilma, assentado em gastos com obras públicas e crédito popular, irá fatalmente se esgotar, assim que as exportações caírem.

Para a esquerda, resta retomar as pautas radicais ligadas às necessidades da área social, da saúde, da educação, do transporte e da moradia e a retificação da carga tributária regressiva e injusta, que penaliza os mais pobres. O que demanda renovarmos a política partidária articulada aos movimentos sociais radicais, através da criação de um projeto claro e inventivo. Esta, a meu ver, a verdadeira pauta para a esquerda que ainda resta, que traria novamente a classe trabalhadora para as ruas, criando um novo consenso radical socialista, ou antes, "comunista" - pois o termo precisa realmente ser reinventado, para além de toda a mácula antidemocrática e antilibertária produzida pelo "socialismo real". O passo seguro para a crítica da sangria da dívida pública e a ruptura com o capital internacional, como estratégia de transição para além do capital.

O mais lamentável é constatar que o estado de exceção vem à tona com a condescendência ou mesmo pelas mãos das forças da velha esquerda decrépita, exatamente no aniversário de 50 anos do golpe de 64.

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Nota
(*1) Ver o texto de Joelton Nascimento, "Há saídas em disputa?", fev. de 2014, http://diariodocolapso.blogspot.com.br/2014/02/ha-saidas-em-disputa.html