29 dezembro, 2008

Sobre ROBERT MUSIL

AS QUALIDADES D´O HOMEM SEM QUALIDADES
Notas incipientes sobre o romance de Robert Musil
Cláudio R. Duarte *

Quem é o Homem sem qualidades de Robert Musil? A princípio, trata-se de um romance sobre o "homem indefinido"(1), sem atributos ou propriedades, isto é, sem substância, identidade, essência ou verdade. Um homem difícil de identificar, ao mesmo tempo exigindo uma forma complexa, difícil de caracterizar como romance, já por seu prolongamento pelas suas duas mil páginas, com seu inacabamento e fragmentação final, não fosse ainda um misto complexo de longa narrativa, conto, ensaio filosófico, anedotas e digressões morais.
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Seria o homem como pura forma vazia e instrumental de uma certa razão, sobrevivendo num cotidiano opaco, alienado e sem sentido ? O "homem qualquer das grandes cidades, o homem intercambiável, que não é nada ou não tem o ar de nada, o ´se´ cotidiano, o indivíduo que não é mais um particular, mas se confunde com a verdade glacial da existência impessoal", como o caracteriza Blanchot (2)? Um frio intelecto, a pura encarnação do espírito da teoria e da análise num mundo prático alienado, que escapa à concretização de suas próprias referências em crise? Um homem etéreo e experimental, mais aberto às possibilidades que às realidades e à realização de possibilidades? Um homem indeciso, dividido entre projetos irrealizáveis? Um homem deslimitado, transgressor de qualquer finitude ou fronteira dada a priori? Um homem cuja unidade seria a reflexão e a participação em inúmeras qualidades, sem cristalização num caráter rígido e mortificante? Ou um puro "nada" irônico, que procura ser tudo ao mesmo tempo, na busca de um "gozo qualquer", ao ponto de se tornar homem "volúvel", um parente longínquo da nossa conhecida família machadiana? Salvo erro de perspectiva, a obra de Musil é a oscilação contínua entre alguns ou mesmo todos esses aspectos, perpassando personagens, estilo, fios do enredo e finalmente o próprio ponto de vista narrativo.

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Sua definição só é possível quando delimitamos o tempo e o espaço de sua experiência. Onde e quando esses homens sem qualidades? Estamos na "Kakânia", no Império Austro-Húngaro, às portas da Primeira Guerra Mundial - tempo de crise social, ética, política. Ulrich, o protagonista, tem as características do "homem supérfluo" na divisão do trabalho: engenheiro, matemático, secretário da Ação Paralela, intelectual raciocinador engajado em coisa alguma, dividido mentalmente entre exatidão e indeterminação.

(continua...)
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Notas
(1) Der Mann ohne Eigenschaften me parece ser melhor vertido por "O homem indefinido", tal como sugerido por Otto Maria Carpeaux (Tendências contemporâneas da literatura, São Paulo, Ediouro, 1968, p.278), embora o título O homem sem qualidades (na tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth pela editora Nova Fronteira, 1989) esteja já consagrado e não traga muitos inconvenientes, senão talvez a confusão com qualidades simplesmente degradadas. Maurice Blanchot (Le livre à venir. Paris, Gallimard, 1959, p.203) relaciona a tradução gideana "O homem disponível" e a da revista Mesures "O homem sem caracteres", mas propõe uma mais simples e mais próxima do alemão: "O homem sem particularidades". A questão para nós, no entanto, será mostrar que mesmo assim tal homem suporta a particularidade de uma certa época histórica.
(2) Blanchot, op.cit., p. 207.