A nova música de subsolodo punk ao ex-punkamento do punk,
do pós-punk a algumas novas derivações
do pós-punk a algumas novas derivações
Cláudio R. Duarte
1- A miséria musical a partir dos 90: do punk ao ex-punkamento do punk
Histórias mal contadas
Muitíssimo mal contada é a história do rock de subsolo (´underground'). Por baixo do subsolo há mil outros pisos, por cima dele, antes da superfície, mais uns quinhentos. Mas ele mesmo pode se converter numa forma de corrente principal ("mainstream") da música - tudo depende do ponto de vista, ou melhor, da oportunidade de negócios do mundo. Business, sacaggement. O underground não é tão inocente quanto parece. Sem mistificações, ele deve ser avaliado sempre, desde o princípio, do ponto de vista da divisão do trabalho e das chances no mercado. Ele não está isento das marés de investimento, crise e recuperação. Como seus chefes, um "rockeiro" é também um (micro)empresário. Se for bom tentará ficar no ramo, se for ruim, logo perceberá, terá de trocar de ramo. Nem sempre os que ficam mereceriam ficar, mas é assim que a "coisa" capitalizada funciona.
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O estômago hardcore de avestruz do mercado
Na verdade, desde o início, o underground dava sinais de poder tornar-se um ramo econômico - certamente secundário, mas não desprezível - do ponto de vista do mercado capitalista. É daí que surgem as mercadorias e mais tarde os rótulos: punk, hardcore, grindcore, skacore, straight edge, crossover, emocore... A princípio, o que não tem altas vendagens é considerado "underground" - até que os ventos mudem e algum negociante esperto invente a onda que faltava e tudo vire "mainstream". Não foi exatamente isso que aconteceu com o punk e com o hardcore? O supostamente inclassificável - o sujo, duro, áspero, intratável - logo foi classificado e absorvido, corrompendo sua estrutura simbólica de resistência. A história, desde Ramones e Sex Pistols, Clash e Buzzcoks, não tem sido outra. O pretenso anormal virou enfim o que talvez sempre fora: o mais normal dos normais. "Normal", é assim mesmo que funciona o capital: como mera forma vazia que pode colonizar qualquer conteúdo, contanto que ele seja rentável. Tudo isso se complica ainda mais nos anos 1990 e 2000. O punk e o hardcore de hoje serão o lixo de amanhã, que ninguém mais se lembrará. Isso já se transformou em lenda: como se já estivesse escrito, como num mito, todo mundo sabe.
Na verdade, desde o início, o underground dava sinais de poder tornar-se um ramo econômico - certamente secundário, mas não desprezível - do ponto de vista do mercado capitalista. É daí que surgem as mercadorias e mais tarde os rótulos: punk, hardcore, grindcore, skacore, straight edge, crossover, emocore... A princípio, o que não tem altas vendagens é considerado "underground" - até que os ventos mudem e algum negociante esperto invente a onda que faltava e tudo vire "mainstream". Não foi exatamente isso que aconteceu com o punk e com o hardcore? O supostamente inclassificável - o sujo, duro, áspero, intratável - logo foi classificado e absorvido, corrompendo sua estrutura simbólica de resistência. A história, desde Ramones e Sex Pistols, Clash e Buzzcoks, não tem sido outra. O pretenso anormal virou enfim o que talvez sempre fora: o mais normal dos normais. "Normal", é assim mesmo que funciona o capital: como mera forma vazia que pode colonizar qualquer conteúdo, contanto que ele seja rentável. Tudo isso se complica ainda mais nos anos 1990 e 2000. O punk e o hardcore de hoje serão o lixo de amanhã, que ninguém mais se lembrará. Isso já se transformou em lenda: como se já estivesse escrito, como num mito, todo mundo sabe.
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Desqualificação do já desprovido de qualidade
Nesse percurso quase irresistível de lixiviação, ou melhor dizendo - lixificação - da música "sub", alguma coisa da antiga "qualidade" é perdida. A antiga rusticidade do punk é estandardizada, perdendo o outro lado do punk, que era a possibilidade da experimentação. No turbilhão de bandas algumas são selecionadas para se tornarem a mercadoria da vez. Nesse filtro da mercadoria a "qualidade" que, nos melhores casos, ainda restava será totalmente rebaixada. Muita coisa se adocica, se domestica. Algo disso é facilitado pela própria estrutura do punk. A estrutura singela do punk-hardcore é muito facilmente transformável, domesticável e assimilável. Aquilo que quase desde sempre nasceu "meia-boca" vai virar boquinha e meia na porta das gravadoras. De The Clash ou The Jam fomos para Green Day ou Offspring, de Minor Threat ou Descendents para Blink 182 e Millecolin, de Ratos de Porão e Safari Hamburguers para Raimundos e Fresno. Não que os primeiros sejam muito melhores "tecnicamente" ou mesmo musicalmente, mas é muito sintomático o movimento de simplificação, dulcificação, assimilação domesticadora e, finalmente, lixificação. O punk é dobrado e embrulhado em papel de presente, até perder o seu conceito.
Nesse percurso quase irresistível de lixiviação, ou melhor dizendo - lixificação - da música "sub", alguma coisa da antiga "qualidade" é perdida. A antiga rusticidade do punk é estandardizada, perdendo o outro lado do punk, que era a possibilidade da experimentação. No turbilhão de bandas algumas são selecionadas para se tornarem a mercadoria da vez. Nesse filtro da mercadoria a "qualidade" que, nos melhores casos, ainda restava será totalmente rebaixada. Muita coisa se adocica, se domestica. Algo disso é facilitado pela própria estrutura do punk. A estrutura singela do punk-hardcore é muito facilmente transformável, domesticável e assimilável. Aquilo que quase desde sempre nasceu "meia-boca" vai virar boquinha e meia na porta das gravadoras. De The Clash ou The Jam fomos para Green Day ou Offspring, de Minor Threat ou Descendents para Blink 182 e Millecolin, de Ratos de Porão e Safari Hamburguers para Raimundos e Fresno. Não que os primeiros sejam muito melhores "tecnicamente" ou mesmo musicalmente, mas é muito sintomático o movimento de simplificação, dulcificação, assimilação domesticadora e, finalmente, lixificação. O punk é dobrado e embrulhado em papel de presente, até perder o seu conceito.
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Apelando pro emocional
Há muito, porém, os renitentes tentaram criar algumas saídas para o subsolo do subsolo, tentando criar música, discos e shows de forma independente e, de modo um pouco mais radical, constituindo algo como uma forma estética autônoma, que exige para si um pouco mais de qualidade. Mas mesmo aqui o mercado tem o poder de devorar e deglutir. Há alguns anos atrás surgiu uma história de "hardcore melódico". O Bad Religion (que na sua época inovou introduzindo o vocal cantado do melhor punk a la Buzzcocks) gerou uma horda de seguidores fanáticos, como uma procissão de bandas zumbis, nascidas do estrume da boa religião defecada. O processo virou fórmula, uma banda copiando a outra. E surgem assim as gravadoras especializadas em "hc melódico". Outro dia ainda, tinha surgido bandas "viscerais" como Rites of Spring, Embrace, Sunny Day Real Estate, Samian etc. Músicas um pouco mais complexas, exigindo um pouco mais do ouvinte, uma assimilação mais lenta, com melodias mais bem elaboradas. Mas o que é mais fácil transformar-se em ideologia que o apelo ao emocional? Logo isso seria taxado retrospectivamente como os primórdios do "emo" (sinal de que as emoções da nova geração são de borracha, pois podem ser classificadas virarem facilmente um novo nicho de mercado). Talvez por isso todas essas bandas, honestas como eram, tenham terminado.
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O emocore, ou a astúcia da razão musical mercantilizada
Se a onda é estrangeira, no Brasil a coisa é ainda pior. O ouvido viciado em melodias pop e estruturas simplificadas das Fm´s se humilha até se arrastar no chão. Em alguns shows isso é literal. As bandas ruins formam futuras bandas péssimas. O público fanático, com dinheiro e possibilidade de comprar mais e melhores guitarras, baterias, camisetas etc. cria e recria a sua própria escória musical independente. Não basta a MTV e as rádios reproduzirem as bandas "da vez", como réplicas do rock internacional do momento. O próprio público classe média cria a sua própria "indústria cultural" particular, o seu "mundo subcultural industrializado", com a ajuda de meios como a internet. Surge algo que já não é mais underground, mas também não é exatamente "mainstream", pois é muito tosco para arrebanhar o povão. O esquema da mesmice se repete por inércia. Mas o clichê sonoro não é sentido como tal, a não ser com o tempo, com o tédio inescapável. Várias bandas que copiam a ralé do hardcore-punk americano se reproduzem aos montes, uma influenciando a outra, dando origem a coisas mais feias e desastradas ainda. O gesto básico, num ambiente tão socialmente regredido, é a imitação. A memória de uma certa "tradição punk e hardcore", nas bandas que herdam a "pose punk" ou metidinha a alternativo, desaparece completamente, até chegar o momento em que falar de Descendents ou Bad Religion é falar de ilustres dinossauros desconhecidos.
Hoje está na moda esse diabo cheio de cosmético chamado "emocore", uma mistura absurda de gritaria e choradeira histéricas, totalmente teatralizadas, algumas guitarrinhas chatas cheias de oitavados e um monte de atitudes esteriotipadas, alguns até com vestimentas "poser" a la Poison e Mötley Crue. É quase inacreditável: a espetacularização capitalista do próprio sujeito, à procura de sua vez no mercado, é escancarada, perdeu toda a vergonha de si. Os "especialistas em emoção" tornam-se, muito friamente, mercadorias integrais. Tudo isso somado a letras que parecem mais pagodes românticos que letras da antiga estética "punk". Mas a "musicalidade" aqui é menos que aparência. O charlatanismo musical, por demais evidente, é transformado e sublimado em "atitude". Hoje, o "emo" é sobretudo um estilo de se vestir e de se comportar, prontinho, como remédio, para adolescentes em "crise de identidade". Até essa pode ser simulada, pois a necessidade, no fundo, é a de "estar-junto", perder a identidade, fundir-se nos grupos infantilizados e no narcisismo coletivo. Como se intui, um filão enorme promovido pelo gigantesco aparato midiático de grandes empresários e gravadoras. Nada a ver com a tradição simbolicamente construída da música underground, com a qualidade da música em si. Procura-se desesperadamente, de alto a baixo, do produtor ao consumidor de música "emo", uma identidade: qualquer coisa serve, daí a sucessão ininterrupta de modismos exteriores, meramente imaginários, isto é, calcados na imagem e na aura de uma sonoridade irrisória e evanescente, para suprir esta necessidade de "estar-junto". Se alguns vão pro jogo com a torcida uniformizada, outros pro show de emocore. A moçadinha (hoje o público "punk" é cada vez mais adolescente), presa em seu narcisismo coletivo defensivo, como a média da população das grandes cidades selvagens, só pode então se identificar coletivamente, adorar a si mesma, a seu corpo, a seu "estilo", gerando uma vibração meio "homo" (a do homogêneo), infantilmente regredida e mesmo religiosa, no ar. Trata-se aqui, sobretudo, de um "eu débil", tal como descrito pela psicanálise clássica, com sua fenomenologia característica: a adesão fanática às bandas e aos seus líderes-pastores, aos amiguinhos e panelinhas, sempre com rivais cheios de semelhantes bem penteados e vestidinhos do outro lado. Se isso sempre esteve presente no universo punk, a coisa se concretiza e cristaliza ainda mais nos anos 2000, em que as tradições simbolicamente construídas da resistência são minadas e destruídas pela quase absoluta falta de interesse e falta de possibilidade de reprodução das bandas por meio da música underground (a internet praticamente eliminou as condições de vendagem de discos). As bandas que querem sobreviver abrem a mão da independência e se comercializam ou então permanecem num grau baixo de atividade, vivendo basicamente de shows. No mundo emo, ao contrário, temos uma dinâmica exclusivamente moldada por relações imaginárias (no sentido lacaniano), basicamente duais, girando em torno de amor e ódio, atração e agressão. Essas, afinal, as únicas "emoções" no ar. No limite, histeria em massa. Um conjunto de características que nos aproximam do fenômeno das massas fascistas, só que de forma mais atenuada e inocente. Entre os carecas abertamente nazi-fascistas e as massas hemorróidicas há diferenças de grau, não de qualidade. O "emocore" é a hemorróida nervosa do sujeitinho "sem o core" do antigo hardcore, que já tinha, por certo, uma qualidade duvidosa.
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A indústria subcultural do mainstream emorock pseudo-underground brasileiro
Se a onda é estrangeira, no Brasil a coisa é ainda pior. O ouvido viciado em melodias pop e estruturas simplificadas das Fm´s se humilha até se arrastar no chão. Em alguns shows isso é literal. As bandas ruins formam futuras bandas péssimas. O público fanático, com dinheiro e possibilidade de comprar mais e melhores guitarras, baterias, camisetas etc. cria e recria a sua própria escória musical independente. Não basta a MTV e as rádios reproduzirem as bandas "da vez", como réplicas do rock internacional do momento. O próprio público classe média cria a sua própria "indústria cultural" particular, o seu "mundo subcultural industrializado", com a ajuda de meios como a internet. Surge algo que já não é mais underground, mas também não é exatamente "mainstream", pois é muito tosco para arrebanhar o povão. O esquema da mesmice se repete por inércia. Mas o clichê sonoro não é sentido como tal, a não ser com o tempo, com o tédio inescapável. Várias bandas que copiam a ralé do hardcore-punk americano se reproduzem aos montes, uma influenciando a outra, dando origem a coisas mais feias e desastradas ainda. O gesto básico, num ambiente tão socialmente regredido, é a imitação. A memória de uma certa "tradição punk e hardcore", nas bandas que herdam a "pose punk" ou metidinha a alternativo, desaparece completamente, até chegar o momento em que falar de Descendents ou Bad Religion é falar de ilustres dinossauros desconhecidos.
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O ouvido do sujeito hemo-rróidico nervoso sem core
Bobagem exigir de um público como este a concentração para a música. O que vem morrendo, junto com a forma artística, é o ouvinte minimamente exigente. Muitas vezes cantar em português é menos uma questão de forma que uma estratégia de mercado para fazer o público se concentrar e lembrar mais facilmente as músicas. Sim, cantar em inglês é sinal de "alienação", mas também de imitação de uma certa forma - o rock - que surgiu no exterior. Nem sempre a alienação é perversa se o imitado tiver algum valor ou necessidade intrínseca. Mas hoje cantar os que cantam em português redobram ainda mais a alienação - agora diretamente ao mercado e não mais a uma forma musical. A alienação, a abertura ao outro, virou pura adesão, não ao outro, mas ao mesmo, à fórmula esteriotipada capaz de vender e ser facilmente assobiável. Por isso, na mesmice reinante, pode-se esquecer de uma banda em meses como pode-se aplaudir e cabecear por horas num show, que tornou-se mero espetáculo imagético, apenas porque o vocal é lindo, o guitarrista é bonitinho, tem uma guitarra poderosa ou faz um barulho infernal, como uma espora na coxa do animal. Para ouvidos de consumidores tão feridos um ferimento a mais não é nada. Seus ouvidos "perderam a capacidade de ouvir", como já dizia Adorno no seu texto de 1938 sobre o "Fetichismo e a regressão da audição". O potencial de despolitização e empobrecimento cultural, face ao anteriormente conquistado pelo universo resistente do punk, é elevado à escala industrial. Pelo menos até que o tédio, inadiável, venha à galope.
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A estrutura histérica da cena des-corada
A parte instrumental é em si mesma qualquer coisa de insignificante. Os derrames "líricos" do emocore são o pancake da criação tosca, a cerejinha do bolo indigesto. Mas a alegada emoção do emocore é praticamente nula. Com uma forma estética destruída, expressa-se brutalmente o material recalcado no sujeito. O ódio visceral vêm à tona, "como no punk", mas tudo de forma muito mais teatralizada, no mais puro intelectualismo calculista. A emoção do emocore é pura ideologia. No esquema musical pré-fabricado do relaxamento-revolta-relaxamento, isto é, do cantar mansinho e choroso do bom moço penteado à gritaria e distorção infernais do refrão rockeiro descabelado, temos a mais pura astúcia da Razão Mercantil. Nada mais racionalizado que essa instrumentalização da emoção coletiva. Dizem que nalguns shows o choro coletivo é sistematicamente explorado. O esquema catártico e carismático é semelhante ao da dominação religiosa. Esta estrutura musical invariável, petrificada, é muito pior do que a dos filmes de Hollywood. A indústria subcultural do emocore é mais monolítica e terrível que a velha e "boa" indústria cultural (que ainda continha poros por onde se infiltram alguns conflitos produtivos). A tristeza melodramática de certas passagens é uma fachada para o mais puro otimismo conformista. Os usados (The used, aliás é o nome de uma dessas bandas) esquemas da indústria punk são abusados ao extremo. A independência do punk virou agora a mais pura dependência, a desglamourização transformou-se na mais pura glamourização e teatralização espetacular, encobrindo o inferno da indiferença e da tosquice.
A parte instrumental é em si mesma qualquer coisa de insignificante. Os derrames "líricos" do emocore são o pancake da criação tosca, a cerejinha do bolo indigesto. Mas a alegada emoção do emocore é praticamente nula. Com uma forma estética destruída, expressa-se brutalmente o material recalcado no sujeito. O ódio visceral vêm à tona, "como no punk", mas tudo de forma muito mais teatralizada, no mais puro intelectualismo calculista. A emoção do emocore é pura ideologia. No esquema musical pré-fabricado do relaxamento-revolta-relaxamento, isto é, do cantar mansinho e choroso do bom moço penteado à gritaria e distorção infernais do refrão rockeiro descabelado, temos a mais pura astúcia da Razão Mercantil. Nada mais racionalizado que essa instrumentalização da emoção coletiva. Dizem que nalguns shows o choro coletivo é sistematicamente explorado. O esquema catártico e carismático é semelhante ao da dominação religiosa. Esta estrutura musical invariável, petrificada, é muito pior do que a dos filmes de Hollywood. A indústria subcultural do emocore é mais monolítica e terrível que a velha e "boa" indústria cultural (que ainda continha poros por onde se infiltram alguns conflitos produtivos). A tristeza melodramática de certas passagens é uma fachada para o mais puro otimismo conformista. Os usados (The used, aliás é o nome de uma dessas bandas) esquemas da indústria punk são abusados ao extremo. A independência do punk virou agora a mais pura dependência, a desglamourização transformou-se na mais pura glamourização e teatralização espetacular, encobrindo o inferno da indiferença e da tosquice.
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2- Do pós-punk ao pós-rock. Algumas resistências e contradições
Histórias pouco contadas
Ainda pouca gente conhece a história das bandas que, na aurora do punk, já podiam ser consideradas "pós-punk". O que as caracteriza é a experimentação real, isto é, a imaginação formal, a realização da independência relativa que o punk tinha supostamente em seu conceito, pelo menos na parte respeitável de sua "lógica". Pois na verdade, o punk nasceu podre, com sua história lógica mais ou menos prevista desde o início, visível desde a farsa do Sex Pistols, que agora se consolida na ralé internacional do emocore ou do pós-emocore (sabe-se lá até onde vai a onda). Sua estrutura simplificada tinha finalmente de se coisificar e se enrijecer como mero clichê mercantil. O que vemos nos anos 90 e 2000 é a conseqüência lógica desta podreira, a foto final do chiqueiro embolorado. E assim ela se esgota. Se assim é, então bandas como The Clash, Minutemen ou Dead Kennedys eram já outra coisa que o mero punk ou hardcore. Em quantos detalhes da composição os Dead Kennedys transformam a música numa verdadeira pintura para as letras extremamente irônicas e politizadas de Jello Biafra? Dead Kennedys fez álbums excelentes, inigualáveis dentro do estilo. Em quantas músicas do Clash temos a mistura radical de tendências, expelidas por alguns, naquele tempo, por ignorância musical? Quantas com a força do ritmo dançante mas não menos cortante? A que leva as diabruras do Minutemen senão à destruição da estrutura petrificada, do clichezão do hardcore? Tais bandas têm o mérito de serem as criadoras de alguns novos valores, novas formas, de uma estética realmente mais livre e independente dentro do estilo rock.
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novas experiências, novos experimentos
Bandas como Gang of Four, Hüsker Dü, Sonic Youth, Fugazi e The Ex são grandes exemplos do chamado pós-punk e do pós-hardcore. Com elas, entre outras (a lista seria muito grande: The Fall, Pere Ubu, Residents, Stranglers, Contortions, Joy Division, Jawbox, Burning Airlines, Television, tanto o The Cure, o Talking Heads como o B´52 do início...), foi se formando uma nova experiência de rock underground, desta vez idealmente abaixo das correntes principais. Claro que algumas delas tiveram algumas derivas estranhas ou equivocadas em alguns discos, principalmente talvez o Gang of Four, que cai no mais puro plastic pop no final da carreira. Mas é o grande Gang of Four do white funk, da guitarra agudíssima e dos riffs monocordes de Andy Gill, o guitarrista mais copiado pela leva inglesa de bandas indie (como Raptures, Franz Ferdinand, Moving Units e Bloc Party) que será lembrado no futuro - e já está sendo. Mas a alegria dançante de seu ritmo vinha embebida numa ironia cortante, ausente da nova safra. Hüsker Dü e Sonic Youth estão entre as bandas mais copiadas da história. A experimentação formal, com timbres e afinações diversos, porém, não são facilmente copiáveis. Pra isso é preciso bom gosto e muita experiência. Suas guitarras complexas, cheias de harmonias desarmônicas, o vocal diversificado, as rifferamas sem fim, o estilo "garagem" das gravações, cheio do ar da improvisação, trazem uma espontaneidade para as músicas que poucas bandas conseguem ainda hoje obter. Aqui, o clichê era desdobrado para ser na maior parte das vezes negado e destruído por dentro. Talvez estas bandas tenham recriado a noção de acorde no rock underground. Já Fugazi é o sinônimo mais claro de banda independente, em todos os sentidos. Música intensa, cada uma delas diferente da outra, cheia da criatividade e emoção de quatro grandes músicos que, sem técnicas extraordinárias, tiram o máximo necessário de seus instrumentos. Não tocam algo, tocam o "seu algo". Cada disco é único, pleno de energia e indignação. Fugazi talvez seja a banda dos melhores arranjos de guitarra do rock. Idem para os vocais, inconfundíveis, ainda por cima com timbres diversos e privilegiados. The Ex se impôs a criação da música turbilhão e tumulto, a mímese crítica da confusão metropolitana, como se fosse a imitação da complexidade, da velocidade e do obscurecimento das grandes metrópoles. São uma espécie de Kafka do rock. Até mais que o Fugazi, e um pouco como o Sonic Youth, criaram um estilo próprio de tocar seus instrumentos, com guitarras em diálogo, dissonantes e "percussivas", sistematicamente integrada com a baterista, uma verdadeira percussionista (poucas músicas têm bateria com andamento 4x4), além de cantora impressionante. Mas é na voz do vocal principal do The Ex que reside a confirmação do conflito, da confusão, do emparademento do sujeito tentando resistir ao mundo da total alienação. Seu modo de cantar desgovernado, num ritmo falado, livre, quase flutuante, como nos melhores momentos de Jello Biafra, é a exposição a olho nu da forma social do sujeito encurralado entre os poderes do capital e do Estado.
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Uma ética lírica nova
Não por acaso, todas estas bandas, desde o pós-punk, tinham uma ética de esquerda, com temáticas políticas nas letras. Algumas mais, outras menos. A inteligência formal é reforçada pela inteligência lírico-política. Todas essas bandas, mesmo Hüsker Dü ou Sonic Youth, têm algo de desafogante, de um dizer espontâneo, de uma libertação do que fica entalado na garganta, como um desrecalque do inconsciente, de criação de uma lírica pontiaguda e mordaz, mais ou menos inédita no rock. Estamos em geral bem longe do primitivismo. E isso se dá até melhor nas bandas que mais sublimam a música punk, indo além do discurso politicamente direto: essa evolução pode ser vista claramente na trilha do The Ex. Em comparação a outros estilos de composição lírica, o pós-harcore seria uma espécie de revolução. Se no rock progressivo tínhamos a instrumentação bastante desenvolvida (como em Gentle Giant ou King Crimson), nas letras tínhamos geralmente o mais puro retrocesso e escapismo, a bem dizer, a tolice que os metaleiros iriam, mais tarde, desenvolver ao extremo no medievalismo, na simpatia pela bruxaria, os temas endiabrados, até o flerte com o fascismo etc. (O heavy metal, com efeito, é um rock progressivo sem talento, feito por músicos mais toscos ou mais escravos da técnica).
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Alguns passos depois do rock
Bandas como the ex, fugazi, hüsker dü ou sonic youth envelhecem, algumas acabam, se transformam em outras. Ou lentamente vão experimentando novas formas, até chegar em termos mais suaves, menos pontiagudos, mais introspectivos. Mas nunca se sabe se é o próprio rock que foi se esgotando em fórmulas e clichês. Uma das novas tendências recentes de repulsa à decadência do punk-hardcore tem sido, na seqüência direta ou indireta destas bandas, o chamado "pós-rock". Esta tendência surge nos anos 90 com Tortoise, Slint, Godspeed You Black Emperor!, Sigur Ros, Up On In, Isotope 217, Mogwai, Explosions in the Sky, From Monument to Masses, Volta do Mar, Pelé, Hurtmold etc. O pós-rock desenvolve o instrumental acima de tudo, a ponto de quase abolir os vocais. A um mundo estandardizado prefere-se o silêncio, ou a voz a-significante dos instrumentos. Estas bandas tentam incorporar aspectos do antigo rock progressivo e da música eletrônica, que não envelheceram. Seu som é deliberadamente mais calmo e devagar. Há um retorno portanto ao passado, desenvolvido agora, porém, pelas novas tecnologias eletrônicas, de instrumentação e de gravação. Trabalha-se intensamente sobre os três ou quatro elementos básicos de qualquer composição: timbre, harmonia, ritmo e tensão. A criatividade consiste na mescla singular disso tudo. Os timbres são cuidadosamente mais suaves e limpos, passando às vezes por um efeito de estranhamento deliberado. Algumas bandas afirmam simplesmente o estranho, o sinistro, o fundo musical obscuro, geralmente usando os efeitos eletrônicos modernos. Algo disso já estava no pós-punk de Pere Ubu ou Residents. A mudança de volume, a passagem do alto ao baixo volume, é como um jogo de luz e sombra. Sons de guitarra singulares, opacos, brilhantes etc., desenham frases marcantes. Mas aqui, o efeito buscado é a criação de nítidas e singulares texturas musicais. Por isso, talvez, o baixo (às vezes o teclado) seja quase sempre o grande condutor da música, predominando sobre todos os timbres, já geralmente mais graves, escolhidos para todos os instrumentos. A harmonia aqui é a arte de costurar diversos instrumentos em diálogo, tocados num modo que atinge o conflituoso ou o paradoxal (várias bandas juntam percussão, sax, trompete, violinos etc.). Há algo de "free jazz" nessa forma de costura harmônica embora o papel fundamental seja exercido pelo contrabaixo. O baixo tem papel literal de base, de marcação do tom principal (nada a ver portanto com música atonal). Mas diferente do jazz e mais ainda do free jazz está a repetição deliberada de frases pré-construídas e tocadas várias vezes - às vezes, tais temas são repetidos ad nauseam - como se o jazz passasse por uma redução aos temas principais. A repetição é o elemento básico do pós-rock. Também diferente do free jazz, o ritmo é meticulosamente construído, basicamente sem improvisos. É na tensão planejada entre repetição e diferença, entre harmonia e tensão, que reside a chave da construção, talvez como a melhor herança do elemento punk-hardcore.
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O perigo da volta infinita ao mesmo
É da monotonia da repetição o perigo latente em tudo isso. Todas as bandas de pós-rock vão se tornando iguais, ou no mínimo similares, quando abusam da repetição. A experiência vai se convertendo em clichê. Algumas mais novas parecem um tipo de plágio vergonhoso das mais velhas (os bons Tortoise, Slint etc.). Os deslizes são constantes, caindo na chatice e na mesmice; mesmo a criatividade pode se institucionalizar e se burocratizar. Como num disco de Brian Eno, algumas soam como "music for elevator", ou um tipo de fundo musical para o trabalho duro no escritório, uma espécie de música "no stress". De fato, qualquer abuso da repetição, fundada no timbre grave, na marcação de certo tom, terá esse efeito sedativo sobre o ouvinte. Essa música derivada do pós-punk leva a uma espécie de efeito catártico, contrário ao choque e ao estranhamento proposto em seu conceito. Era exatamente esse o efeito da repetição da melodia punk, principalmente no refrão punk decadente. Hipnose em massa, ou antes, hipnose de classe média massificada, algo ascética e descarnada. Mais a música é leve, mais ela se torna um substituto da ideologia faltante, face à vida danificada nua e crua do capitalismo atual. O fetiche repetitivo do belo fraseado, dobrado, desdobrado e redobrado, é levado ao infinito, como uma espécie de catarse, empatia, hipnose, envultamento, até a perda da consciência autônoma. A ausência de letras contribui para esta mono-tonia, e assim, talvez, para a afirmação da ordem existente, agora estetizada por um "belo" fundo musical. É como o efeito sedativo da bossa-nova, mas pior talvez, porque sem letras, que poderiam sugerir alguma reflexão. O pós-rock convertido em fórmula e sortilégio hipnótico pode sempre se tornar um tipo de ideologia pós-moderna. Somente os elementos de criatividade e tensão podem liberá-lo do conformismo em que o punk caiu.
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Alguns poros e aporias no math rock
Algumas bandas levam a lição do pós-punk e do pós-hardcore a outros caminhos, derivando a partir do pós-rock. Surge assim o chamado "math rock". Também um nome do mercado, colado em gravadoras e selos a quem tenta fazer som diferente, mais cabeçudo que o pós-punk, tanto quanto o dito pós-rock, mas com elementos do pós-hardcore de fugazi, jawbox etc. Bandas como Don Caballero, Shellac, Faraquet, Medications etc. cuidam principalmente do ritmo quebrado, múltiplo, torto, anguloso, geométrico, aparentemente desgovernado, desenhado pelas guitarras tensas a la Hüsker Dü, Minutemen ou Jawbox, pelo desequilíbrio geral harmonicamente costurado, às vezes, somente pelo vocal ou pelo baixo. Música meticulosamente construída. Novamente há muito de experimento em tudo: timbres, estruturas, formas, ritmos. Não se trata porém de ir além do rock, mas levar sua lógica interna a outros desenvolvimentos. Algo disso já estava nas bandas pós-punk e pós-harcore. Aqui predominam os sons agudos, menos distorcidos, chegando ao agudo estridente de um Shellac, um Ex-models ou um Faraquet. É o reinado das telecasters. A velocidade dos fraseados bem desenhados de guitarra é essencial aqui, o que transforma a música em algo de jogo, de raciocínio rápido, diálogo irônico, cheio de astúcia, de enganação e desengano deliberados. As guitarras "espertas" são correspondidas pelos ritmos percussivos da bateria, tal como no pós-rock. O velho balanço de Gang of Four e Minutemen é recuperado. Os elementos de tensão e mudança constante (não-repetição) de texturas, desenvolvendo temas até o limite da dissonância, predominam sobre a estrutura total, evitando, a meu entender, alguns impasses formais do pós-rock. Mas novamente a questão da forma que vira fórmula, da coisa repetível à escala industrial, ronda como uma sombra tal rock underground. São as novas aporias dos pequenos gênios da bateria, da guitarra e do baixo que, como todos os "cabeçudos", podem soar barrocos, chatos e pedantes. O abuso da racionalidade pode gerar, no pólo oposto, a irracionalidade, a fragmentação e o hermetismo sem sentido, a arbitrariedade, próprios de um mau gosto travestido de finura e genialidade. "E a melhor poesia", disse Drummond, "é um sinal de menos".
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A lição que se tira de tudo isso talvez seja a seguinte: quem foge da fórmula e do clichê pode não fazer sucesso no mercado ou nem mesmo sobreviver como banda, mas ao menos garante a boa música mesmo que nos limites irrisórios da subcena do subsolo do rock.
(Texto elaborado para uma "conversa" no "Carnaval-Revolução" em Fev. 2006, em Belo Horizonte).
(Texto elaborado para uma "conversa" no "Carnaval-Revolução" em Fev. 2006, em Belo Horizonte).