Neodesenvolvimentismo como catástrofe
Cláudio R. Duarte
O sistema capitalista mundial está em profunda crise. Mais do que isso, creio que devemos trabalhar com a hipótese marxiana fundamental, retomada por grupos alemães de crítica do valor (Krisis e Exit), de que esta não se trata mais de uma crise passageira, mas de uma crise estrutural, uma crise radical, que mais cedo ou mais tarde, muito provavelmente nas próximas décadas, levará ao colapso do sistema mundial. Sem dúvida, a sociedade de acumulação “pacificada” dos assim chamados “30 anos gloriosos” chegou ao fim. O Welfare State, a estrutura que havia sido montada no centro sob o guarda chuva nuclear do Warfare State e da mobilização total fordista (Marcuse), vai sendo desmanchado. O consenso de classes construído pelo keynesianismo de guerra chegou ao seu limite no final dos anos 70, mediante a hegemonia do neoliberalismo, da flexibilização do trabalho, da desregulamentação do mercado financeiro e do fim do socialismo de caserna. Isso levou a crises sucessivas nos anos 80 e 90 (na periferia do capitalismo: Brasil, México, Rússia, Leste europeu), e atingiu o seu ápice na crise de 2008 e 2010.
-Crise econômica e financeira: na base do processo vigente, temos a desvalorização do valor. A crise do fundamento social moderno, a crise do dinheiro, a crise do trabalho abstrato. A 3ª revolução industrial desvalorizou o trabalho de maneira radical e já só pode descartar o trabalho de uma imensa massa de trabalho. O trabalho se complexificou, se virtualizou, passa por cadeias de serviços imateriais, mas por isso mesmo já não pode ser um trabalho produtivo no sentido preciso de que seus custos de produção e reprodução explodem e só podem ser resgatados por mais incorporação de trabalho, mais produção e ampliação de mercados, o que exigiria longos períodos de tempo, tudo isso numa economia que se moderniza e se tecnifica fortemente e portanto tende a economizar trabalho vivo. Não há massa salarial nem mercado consumidor efetivo para realizar essa gigantesca avalanche de mercadorias, exigindo por um lado imensas quantidades de capital fixo (infraestrutura) para sua produção e enorme crédito para continuar expandindo a produção e o consumo. Todos estão endividados: famílias, empresas e países, como os EUA, o Japão, a União Europeia, a China e todos os "emergentes".
Assim, a acumulação real de mais-valia tende a se reduzir ao mínimo necessário para manter o sistema crível, concebível e aparentemente rentável. Por um lado, o sistema funciona à base de crédito público e de especulação (financeira e rentista), por outro, da conquista de mais territórios de mercantilização da força de trabalho de custos miseráveis na periferia, realizando-se a articulação da extração de mais-valia absoluta e relativa. Em terceiro lugar, apela-se para a obsolescência planejada e perceptiva (moda), acelerando a destruição ambiental. Por fim, a acumulação real – descontada as dívidas trilionárias mundiais a serem pagas nos próximos anos --- atinge assim o seu limite absoluto --- ou quase absoluto, sendo sua expansão cada vez menos possível. No fundo, só passa a ocorrer sob a força coercitiva do Estado, como fuga para a frente, do modo mais selvagem possível: pela conquista territorial e produção do espaço (meio de absorção de trabalho vivo), ao mesmo tempo em que ocorrem cortes nos gastos estatais na área social, o que impõe a generalização do trabalho precarizado, da terceirização, do auto-empresariamento, da autoexploração, do retorno à escravidão, e principalmente de privatizações de fundos públicos ou recursos naturais comuns (água, solos, florestas), no limite, atingindo guerras civis de pilhagem, como já ocorre um pouco por toda a periferia do sistema (África, Ásia e América Latina) etc. "Não há mais planos de integração para grandes maiorias" (Robert Kurz). O capitalismo é um espetáculo para poucos. A concentração da renda atinge níveis "indecentes" (segundo o termo de Obama). O chamado neoliberalismo é nada mais do que uma estratégia de classe para ampliar a valorização do capital à fórceps, em grande parte de maneira fictícia, nesse momento de crise (com taxas de lucro em declínio), avançando sobre os direitos dos trabalhadores e sobre os bens comuns. A partir dessa crise, e de maneira sincrônica a ela, temos processos de catástrofe encadeados:
-Crise social: Essa crise econômica deflagra conflitos sociais no campo e na cidade: enorme proletarização, expulsão de populações do campo, avanço sobre recursos naturais, ampliação de favelas etc.
-Crise ambiental: nos anos 80, o agravamento de questões como o aquecimento global, a destruição de recursos hídricos e dos solos (desertificação, salinização), com a grave destruição, sem retorno, de ecossistemas etc.
-Crise política: a guerra civil camuflada torna a política cada vez mais oligárquica, dominada por grandes grupos de poder e influência, e, no momento de crise, aparece claramente como um estado de emergência global real, enquanto virtualidade sempre prestes a se realizar.
A crise permanente da formação brasileira
Na base do processo social brasileiro, temos uma estrutura eternamente em crise. Um país moldado pela precariedade, a volubilidade, a falta de perspectiva. O que os clássicos sempre tiveram dificuldade para nomear: subdesenvolvimento industrializado, modernização conservadora, formação eternamente inconclusa, em que se conjugam o mais arcaico ao mais adiantado (o país-ornitorrinco) em todos os níveis e dimensões. Tudo o que aqui se forma tem a marca da violência, da alienação e da morte. Vivemos sob o compasso de uma “dialética rarefeita entre o não-ser e o ser-outro” (Paulo Emílio S. Gomes). Na base de tudo, temos uma fraca ou falsa distinção entre Sujeito e Objeto, o eu e o outro, o público e o privado, a ordem e a desordem, o real e a ideologia ou o real e a mais brutal irrealidade, que surge a partir do esquema escravista básico de casa-grande e senzala e da economia de plantations. Eis o que destrói todo limite, toda análise, todo ser propriamente configurado, todo projeto de desenvolvimento social de grande fôlego. Na realidade, no Brasil, temos economia, temos território, mas não temos povo, sociedade, vida urbana e vida política democrática propriamente ditas. O povo é um apêndice do território econômico, as instituições públicas são uma extensão do poder oligárquico "eleito" pelo grande capital. A ideia de civilização torna-se aqui menos um conjunto de formas de desenvolvimento cultural ampliado e criação do sujeito autônomo e emancipado do que o louco império do mundo dos negócios – o reino absoluto da forma celular da alienação: a forma-mercadoria, que demole todo limite civilizatório.
O neodesenvolvimentismo como catástrofe
O desenvolvimentismo brasileiro foi uma forma social de tentar resolver a questão da acumulação por meio de uma modernização conservadora, numa palavra: uma religião do crescimento sem contrapartidas sociais equivalentes; um processo que une o getulismo, o trabalhismo aos militares e ao lulismo. O neodesenvolvimentismo petista aliou mais uma vez investimento estatal e privado na produção de grandes espaços (estradas, hidrelétricas, estádios, transporte etc.), grande expansão da mineração e do agronegócio, da indústria de bens de consumo duráveis, obtendo assim, num círculo inédito, mais incorporação das massas no trabalho, na educação e em programas emergenciais mínimos (que não devem ser confundidos com "conquistas sociais"). O preço a pagar imediatamente é um violento processo de degradação ambiental (Cerrado e Amazônia) e de reprodução da população como mera força de trabalho -- diante da possibilidade soterrada de superação do trabalho e de pacificação da existência.
O "avanço" econômico se dá, como no passado, ao preço de retrocessos sociais e ambientais e de acúmulo de novas contradições. Houve a ascensão de uma massa proletária anteriormente marginal -- mas sem trabalho de base: portanto despolitizada -- ao mercado de trabalho e de consumo, que assim foi facilmente seduzida pelo mundo das mercadorias, enquanto a classe média vai sendo possuída pelos valores individualistas e "meritocráticos" do neoliberalismo -- a forma natural de afirmação selvagem de distinções imaginárias, no limite, entrelaçadas ao racismo e ao etnocentrismo, em meio à larga padronização promovida pela esfera do consumo. Por outro lado, ampliou-se assim o circuito das dívidas públicas e privadas, que aguardam mais um ciclo de desenvolvimento econômico acelerado para serem pagas. Uma catástrofe é assim anunciada: nessas condições, o modelo cava o seu próprio fim, mais ou menos previsível para os próximos anos, que deve ser o mesmo das sociedades do centro mais avançado do capitalismo mundial. Fenômeno que pode já ser observado na Europa e no Japão e, por outras mediações, em emergentes como a China. A superacumulação mundial, em condições de avanço da produção poupadora de mão de obra e desemprego estrutural, não pode ser mais desfeita, a não ser por meio de mais cortes nos gastos do Estado, de mais privatizações, de desregulamentação dos mercados e das leis ambientais, ou de mais créditos, cada vez mais inacreditáveis. A sociedade torna-se mais rica e produtiva, mas atola-se em dívidas, na miséria e na destruição. O oposto aconteceria se o valor de uso tivesse a prioridade e superasse o valor e a lógica do lucro. Enquanto discutimos algumas perfumarias eleitorais, alguns tópicos graves e gravíssimos vão se acumulando como contradições do "neodesenvolvimentismo", que certamente surgem das coerções do próprio processo econômico mundial em curso:
a) A crise da água em São Paulo, resultado do crescimento da metrópole nas últimas décadas e da falta de investimentos hídricos adequados, uma crise que provavelmente não terá solução nos próximos anos e irá praticamente paralisar a principal região metropolitana (e produtiva) do país, com dez ou vinte milhões de pessoas envolvidas.
b) A crise do setor elétrico, que acumula dívidas bilionárias e parece que vai exigir socorro em breve, desviando recursos do orçamento.
c) A crise do orçamento de mais de R$ 1 trilhão, em 2015, comprometido a pagar juros e amortizações da dívida pública, e consequentemente a provável redução de recursos para as áreas sociais, numa sociedade em guerra civil não declarada.
d) A balança comercial negativa e a desindustrialização relativa em pleno curso, balança que tenderá ainda mais ao déficit com medidas de ajuste ultraneoliberais de Marina e Aécio (possíveis vencedores da eleição presidencial), com a consequente reprimarização da economia, a paralisação da reforma agrária e mais impactos ambientais sobre os principais biomas brasileiros e as populações mais frágeis (indígenas, quilombolas, ribeirinhos etc.). [Vide o mapa da destruição do cerrado até 2009]:
e) A crise habitacional e a bolha especulativa imobiliária nas grandes metrópoles, que aumentará a pressão social nas cidades e as questões de "segurança pública", o que significa, nas mãos de Alckimin e Pezão, por exemplo, mais massacres policiais -- a base para a ascensão de ideologias protofascistas na classe média e nos setores ultraconservadores (Datena e cia.).
f) O contexto de crise mundial do capital, com Europa, EUA, Japão e China passando para aprofundamento da recessão ou, talvez, à bancarrota conjunta nos próximos anos ou décadas.
Diante desse cataclisma social já à vista, nacional e global, é urgente pensar num modelo de superação do capital global. Para a esquerda viva, teórica ou prática, real e atuante, sem dogmatismos e tendo a paciência do conceito e do tempo em mente (que só é tempo da urgência para as forças reacionárias ou espontaneístas a la Negri), vejo duas ou três alternativas não excludentes:
a) lutar pela formação política da massa não-organizada de Junho (não falamos obviamente dos movimentos sociais reais, já organizados, que foram às ruas) e das periferias, em todos os âmbitos (sindicatos, escolas, movimentos sociais, redes, opinião pública);
b) crítica do modelo neodesenvolvimentista petista pela esquerda (com todas as suas implicações: crítica ecológica, do trabalho, do Estado e da economia capitalista como alienações), que precisa, quando eventual governo, ser pressionado a enfrentar sem medo a mídia corporativa e os setores conservadores, politizando essas questões fundamentais de modelo econômico;
c) luta pela formação de uma ampla frente de esquerda para superar o PT a curto ou médio prazo, com os movimentos sociais mais fortes e partidos de esquerda à frente (pelo que percebo nos últimos meses o PSOL teria grande chance de criar um caminho e formar lideranças entre a massa jovem).
A curto prazo, é preciso se preparar para as próximas lutas nas ruas (principalmente se o governo federal cair na mão de PSDB ou "Marina vai com as outras"), pois o Brasilzão conservador e reacionário de 64 está em ascensão no país inteiro e irá lutar pela manutenção de seus privilégios com a força da ideologia e do cinismo da mídia corporativa. Ao lado dessas, algumas forças populares vieram à tona em Junho, mas são praticamente silenciadas e pré-moldadas ideologicamente pela indústria cultural. Criar uma esfera pública paralela aos monopólios, amplamente articulada com os movimentos sociais efetivos, é um dos primeiros passos da esquerda.
O ponto grave, na situação, é que de maneira alguma tais setores estarão dispostos a tolerar a insurgência de junho novamente, principalmente se ela acumular experiências e tiver dessa vez efeito politizador de massas menos organizadas (tomada de assembleias legislativas, pressão sobre prefeituras, universidades, casas, fábricas e terras abandonados etc.).
Contudo, o estado policial está montado e preparado para a contra-insurgência, com o auxílio fundamental do PT. E se este estado policial e de vigilância falhar, sem dúvida a classe média e os evangélicos em ascensão apoiarão novamente um golpe militar a médio prazo. O sr. Merval Pereira, um dos chefões das organizações Globo, falou nesta semana na rádio CBN, em uma provável “crise institucional” nos próximos quatro anos, caso Dilma seja reeleita.
Pós-escrito - Após o 1º turno:
O TEMPO DE JUNTAR OS CACOS QUE RESTAM
Agora que a grande mídia golpista, as forças conservadoras e até as de uma suposta esquerda camaleônica (Marina e PSB, Jorge e PV) se uniram em torno de Aécio, com um congresso horrendamente parecido com o de 64 (com uma maioria absoluta de ruralistas e/ou fundamentalistas), é bom já irmos nos acostumando com o ajuste neoliberal, o desmanche da política social/salarial mínima e com o Estado policial-carcerário que serão instituídos a partir de 2015.
Um modelo perfeito para privatizar muito mais, fazer crescer o PIB a curto prazo (apenas momentaneamente) e rifar o futuro para os setores mais avançados e competitivos do capital e das classes médias. Não adianta esconder o sol com a peneira. No turbocapitalismo da hiperconcorrência e da falência dos projetos coletivos irá vencer quem tem a ideologia e o projeto político mais turbocapitalista e mais violentamente excludente. Irá emergir um Brasil plenamente burguês e neoliberal, amigo das megaempresas, do agronegócio e dos trabalhadores convertidos em microempresários terceirizados. O orçamento público trilionário, até então comandado pela burocracia petista, será rifado, com alguns bilhetes premiados dados de presente para os amigos da propina camarada (Petrobrás, Banco do Brasil, portos, aeroportos e hidrovias, escolas privadas, planos de saúde, USP, Unicamp e Unesp etc.).
Tudo isso numa economia que irá em direção inescapável do desemprego estrutural e da crise social e ambiental de grande envergadura. O caos tucano em São Paulo é só o laboratório do que pode advir em plano nacional.
Vai ser pedagógico para a esquerda, incluindo os que insistem que não há diferença nenhuma entre o que restou do PT e o campo conservador-reacionário, além daqueles que querem apostar apenas na força abstrata da multidão ou de movimentos apartidários ou micropontuais -- e não da organização social de maior fôlego, com formação de bases militantes ativas e de um partido de esquerda realmente viável.
À esquerda teremos o fim da linha: o fim do PT a médio prazo, a demonização da esquerda e de toda pauta popular na grande mídia. É o mesmo curso da Europa. A médio prazo, contudo, a crise econômica, social e ambiental provavelmente irá se transformar numa crise política grave, e o estado de exceção sairá da virtualidade para se tornar uma realidade sangrenta explícita.
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