16 junho, 2005

A ESPERANÇA NAS RUÍNAS - dialética de esperança e pessimismo nos frankfurtianos

A ESPERANÇA NAS RUÍNAS
Dialética de esperança e pessimismo nos frankfurtianos
Cláudio R. Duarte


1- Pessimismo-Otimismo: prisão na imanência
O que fazer frente a um mundo que proíbe sistematicamente qualquer pensamento radical, utópico, transcendente ? Segundo muitos foi esse o paradeiro final da chamada Escola de Frankfurt, de Adorno, Horkheimer, Benjamin e Marcuse: o pessimismo, o impasse, a aporia. Somente Habermas teria ido além, reencontrando caminhos de realização do "projeto moderno". Ora, Habermas foi aquele que, distinguindo teoricamente uma esfera dos sistemas e uma do mundo da vida, desvinculando razão instrumental e razão comunicativa como dois continentes abstratamente separados, restaura a "positividade" no interior do sistema moderno do terror econômico, almejando completar o seu projeto político. Neste sentido regride em relação à Teoria Crítica mais antiga, fundada na crítica radical à sociedade da mercadoria e da total administração, mesmo que as contradições contidas nesta estivessem como que "congeladas" pela ação recuperadora do Estado de "Bem-Estar Social". Daí a sua radicalidade crítica firmemente sustentada: manter a crítica categorial ao sistema mesmo num momento de aparente paz social "democrática".

Segundo Habermas, a crise do capital, deixando de ser econômica, agora era somente de "legitimação". Trocando em miúdos, mais ou menos isso: se a lei do valor-trabalho "explode", então, interessa agora arrumar outras justificativas para a sociedade moderna continuar se modernizando, só que resguardando espaços comunicativos não-reificados donde possa-se respirar tranqüilamente. Tratava-se de fundar um "novo consenso", criar uma nova razão ideológica para o fetiche do dinheiro, desprovido da substância de trabalho, continuar sujeitando a todos mais suavemente. É claro que nunca se fala isso tão às claras, é só num trecho ou outro que vem à tona os pressupostos sistêmico-funcionalistas conservadores da teoria habermasiana:

"O enfoque da filosofia da práxis [marxismo] sugere que o contexto sistêmico da economia organizada de modo capitalista e seu complemento estatal é mera aparência que se reduzirá a nada com a extinção das relações de produção. Nem sequer se coloca a questão de saber se os subsistemas regidos pelos media [Poder e Dinheiro] apresentam propriedades com valor funcional independente da estrutura de classes." (Habermas, Jürgen - O discurso filosófico da modernidade. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p.95).
Realmente, diria o bom burguês, os mecanismos cegos e supercomplexos da divisão do trabalho, em grande parte apenas "técnicos" (!), a cadeia infinita de mediações capitalistas e burocráticas do mercado e do Estado etc., além de insuperáveis, nos facilitam a vida, têm ótimo "valor funcional independente" ! Realmente, basta pensarmos no desastre que acontece com a vida dos povos e com o meio ambiente, sob a tutela desse reino do capital !
Tratava-se, assim, de fazer uma "renovação" do contrato social – à rigor uma agenda política setecentista, puro Rousseau com Kant, atualizados pelo new approach lingüístico-pragmático e os métodos sociológicos funcionalistas. Agora com a novidade, portanto, da atualização do vocabulário filosófico: os interesses dos cidadãos de mercado, "livres e iguais", passam pelos diferentes "jogos de linguagem", pela "situação ideal de fala", pela "razão comunicativa", numa fabricação do "consenso" pela "comunicação sem distorção", uma "realização dialogada" dos ideais humanistas da Revolução Francesa. O monólogo coisificado e enlouquecido do "logos prático" do trabalho abstrato teria agora como que passar "pela argumentação racional" de cada um, para decidir-se, afinal, quem encosta a barriga no balcão e paga a conta. Enfim, mero distributivismo e politicismo requentado kantiano-hegeliano. A noção de um novo paradigma pragmático-linguístico, de uma nova "razão comunicativa", dito mais abrangente que o paradigma da produção e da suposta "razão instrumental" que o engole e determina de ponta a ponta - como se a crítica do fetichismo em Marx não contivesse em si mesmo uma crítica da razão subjetiva e instrumental -, no fundo não é só uma noção de transformação social muito mais "modesta" (como diz o próprio Habermas), mas essencialmente conformista. O politicismo comunicativo pode, assim, abandonar a crítica da "razão instrumental" aos socialistas utópicos e aos românticos em geral. Só assim se chega ao continente otimista - mas no fundo pessimista - da nova razão comunicativa, restrita aos nichos políticos que não ferem o capital em nada, antes o legitimam com mais força.


2- Pessimismo-Esperança: fuga na/da imanência

Em Adorno e Benjamin, a esperança só podia ser tirada de uma consciência nua e crua de uma realidade esmagadora: estamos fritos, eis o ponto de inflexão - daí a esperança. Esperança só tem sentido se assumida dialeticamente, em meio à desolação universal do mundo burguês.
"Nas convulsões da economia de mercado, começamos a reconhecer como ruínas os monumentos da burguesia antes mesmo que desmoronem" (Benjamin, Paris, capital do século XIX, "Haussman ou as barricadas").
Só resta algo a esperar para quem não tem mais qualquer esperança de vida justa no interior da ordem estabelecida. Do contrário nutrimos a ilusão de que estamos nadando a favor de alguma corrente do progresso, que não existe, a não ser como o continuum da dominação. Esse o caminho social-democrata de Habermas, combatido preventivamente por Benjamin nas Teses sobre o conceito da história.
"Nosso ponto de partida é a idéia de que a obtusa fé no progresso desses políticos, sua confiança no ´apoio das masssas´ e, finalmente, sua subordinação servil a um aparelho incontrolável são três aspectos da mesma realidade" (Tese 10).
No entanto, ninguém mais que Adorno, Horkheimer, Benjamin e Marcuse sabiam que uma outra sociedade, sem o estigma do trabalho e da mercadoria, já é realmente possível. Pensar o porquê e o como isso é impedido foi sua tarefa intransigente. Num fragmento das Minima Moralia (§ 128), Adorno diz:
"Desde que sou capaz de pensar, que me faz feliz a canção ´entre a montanha e o vale profundo´: a história de duas lebres que se empaturram de grama, foram abatidas pelo caçador, e, ao constatarem que ainda estavam vivas, saíram correndo. Porém, só muito mais tarde eu compreendi a lição aí contida: a razão só pode resistir no desespero e no excesso; é preciso o absurdo para não se sucumbir à loucura objetiva. Deve-se fazer como as duas lebres. Quando o tiro vem, cair fingindo de morto, juntar todas as suas forças e refletir, e, se ainda se tiver fôlego, dar o fora. A capacidade para o medo e a capacidade para a felicidade são o mesmo: a abertura ilimitada, que chega à renúncia de si, para a experiência, na qual o que sucumbe se reencontra. O que seria a felicidade que não se medisse pela incomensurável tristeza com o que existe ? Pois o curso do mundo está transtornado. Quem por precaução a ele se adapta, torna-se por isso mesmo um participante da loucura, enquanto só o excêntrico conseguiria aguentar firme e oferecer resistência à absurdidade. Só ele seria capaz de refletir sobre o ilusório do desastre, a ´irrealidade do desespero´, e de se conscientizar não só de que ele ainda vive, mas de que ainda há vida".

É exatamente isso: só nos extremos - entre a esperança essencial e o desespero aparente - que pode viver a resistência, a luta pela vida verdadeira. Adorno, tal como Benjamin, só pode tirar a esperança da mais forte desolação para com o mundo existente. Somente esse julgamento poderia transformar radicalmente a realidade dada no verdadeiramente outro. Onde há otimismo, como na sabedoria satisfeita de frases como "nem tudo anda tão ruim assim", "a vida continua" - aí reside toda espécie de miopia e obtusidade intelectual, que não leva a lógica do mercado até o seu limite: Auschwitz. Ao contrário, somente quem perde a esperança em se adaptar ao mundo das mercadorias, exigindo a sua superação real - já possível aqui e agora - é fiel à verdadeira vida.

Para isso, então, a dialética excessiva de Adorno literalmente exagera, se descentra, leva ao extremo a negatividade: como em Hegel, o caminho crítico, o da dúvida, é o do desespero. Mas para além deste, para conduzir o sistema realmente ao limite, à sua paralisia completa, um modo de nos desindentificar e deslocar infinitamente no seu plano de imanência, fazendo-o explodir como imagem ilusória da vida petrificada, real e necessária hoje, mas completamente obsoleta. Só na transcendência imanente de sua lógica estaria a porta de saída para o outro: o "Pangéia", o locus utópico, que já não aliena meios e fins, razão e corpo, produção e linguagem. Mortos certamente, mas a vida está lá fora: dê o fora. Por isso, como lembrava Marcuse, ainda precisaremos muito da frase de Benjamin, proferida na desolação universal da era fascista:

"É só por causa dos desesperados que a esperança nos foi dada."

3 comentários:

Anônimo disse...

Belo texto!!! Vou sempre dar uma passadinha aqui e comentar daqui pra frente.

Sem dúvida o Adorno é meu filósofo preferido. Textos como o seu só deixam isso cada vez mais claro para mim mesmo!!!!

Abraços camarada. E até o Apocalipse!!!

Roberto Iza Valdés disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...

Palestina: Um silêncio repugnante
por Atilio Boron


Por vezes o silêncio é ensurdecedor. Nestes dias o mutismo dos que se dizem defensores da democracia liberal, do mundo livre e da economia de mercado ressoa com estrépito. O regime genocida de Israel, herdeiro sinistro do seu verdugo nazi, está a perpetrar um crime inqualificável contra o povo palestino. Quando Bush caracterizou o governo do Hamas como "terrorista" a União Europeia avalizou essa infâmia, Tel Aviv sentiu-se respaldada e abriu as portas do inferno. O bombardeamento indiscriminado de populações civis indefesas, os atentados contra autoridades democraticamente eleitas da Palestina e a destruição de tudo o que encontraram na sua passagem foi a palavras de ordem do governo israelense. Os gabinetes dos principais ministérios foram destruídos, ministros, parlamentares e altos funcionários da Autoridade Palestina encarcerados, o abastecimento de electricidade para a metade do milhão e meio de habitantes que se apinham em Gaza foi inutilizado pela aviação israelense, paralisando escolas, hospitais, oficinas e lojas, deixando os lares sem esse recurso vital. Em mais uns poucos dias já não haverá água potável porque as estações de bombagem deixarão de funcionar. Caminhos intransitáveis, campos abandonados, a frágil infraestrutura de Gaza está a ser metodicamente arrasada perante a indiferença do mundo. Noite após noite a aviação israelense sobrevoa esse pequeno território lançando bombas de estrondo, e das outras. A ordem do valente e honrado primeiro-ministro israelense, Ehud Olmert, foi terminante: "Que ninguém durma em Gaza". O pretexto desta barbárie: a captura pela resistência palestina do cabo do exército israelense Gilad Shalit — captura, não sequestro, uma vez que Shalit era membro de um exército invasor e foi capturado em combate pelos seus inimigos. Perante isto, Tel Aviv negou-se a negociar com os seus captores um intercâmbio de prisioneiros políticos — há umas 900 crianças e adolescentes palestinos presos em Israel, e mais de 5000 adultos, todos qualificados como terroristas. Os cárceres de Israel, como os de Guantánamo, não recolhem seres humanos.

Quando o presidente iraniano exortou a "apagar Israel do mapa" o mundo foi comovido por uma onda de justificada indignação. Mas quando o governo de Israel leva à prática essa ameaça e apaga literalmente do mapa a Palestina, os líderes das "nações democráticas" e os seus apaniguados — os Vargas Llosa, Montaner, Zoe Valdéz e companhia — guardam um repugnante silêncio. Sua duplicidade moral é ilimitada. Podem justificar o seu silêncio qualquer coisa: inclusive um genocídio como que está a praticar Israel na Palestina. Naturalmente, não duvidarão nem um instante em qualificar de "terroristas" as imperdoáveis palavras do presidente iraniano. Mas quando o terrorismo de Estado não é declarado num discurso insensato e sim sistematicamente praticado por um peão dos Estados Unidos como Israel, sua consciência moral padece de um súbito adormecimento.

O propósito do governo israelense é bem claro: apoderar-se definitivamente de Gaza. Sitia-os, deixa-os sem água, pão, luz, trabalho. Priva-os de toda esperança e extermina-os pouco a pouco, com a cumplicidade dos grandes defensores da democracia e da liberdade, preocupados como estão pela ameaça que os foguetes nortecoreanos representam para a civilização.

In: http://www.resistir.info/