12 junho, 2005

A ACUMULAÇÃO PRIMITIVA DO SUJEITO MODERNO - Novas chaves para uma releitura crítica da "Dialética do Iluminismo"

A acumulação primitiva do sujeito moderno
Novas chaves para uma releitura crítica da "Dialética do Iluminismo"


Cláudio R. Duarte


"Na sociedade burguesa, o trabalhador está lá de uma maneira puramente não-objetiva, subjetiva; mas a coisa que está diante dele [a relação-capital] se tornou agora a verdadeira comunidade que ele tenta devorar, mas que o devora. (...) O produto fundamental do processo de valorização do capital é a produção de capitalistas e trabalhadores assalariados. No conceito de capital está posto que as condições objetivas do trabalho (...) adquirem uma personalidade diante do trabalho, ou ainda, o que é a mesma coisa, que elas sejam postas como propriedade de uma personalidade estranha ao trabalhador. No conceito de capital, está contido o capitalista." Marx, Grundrisse, p.396 e 412.

"Com a negação da natureza no homem, não somente o telos do controle externo sobre a natureza como o telos da própria vida torna-se confuso e opaco. No instante em que o homem elide a consciência de si mesmo como natureza, todos os fins para os quais ele se mantém vivo – o progresso social, o aumento de suas forças materiais e espirituais, até mesmo a própria consciência – tornam-se nulos, e a entronização do meio como fim, que assume no capitalismo tardio o caráter de um manifesto desvario, já é perceptível na proto-história da subjetividade" (Adorno e Horkheimer, Dialética do Iluminismo, p.61).

"Assim, o povo do campo, tendo sua base fundiária expropriada à força e dela sendo expulso e transformado em vagabundos, foi enquadrado por leis grotescas e trerroristas numa disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado, por meio do açoite, do ferro em brasa e da tortura" (Marx, Capital, livro I, p.267)


1- Becos com saída: alguns esquemas e caminhos em meio às aporias do Iluminismo

Esquemas da apresentação narrativa da obra

Entre outras leituras, a Dialética do Iluminismo de Adorno e Horkheimer pode ser interpretada como um ensaio de gênese lógica e histórica da forma do sujeito burguês, compreendendo-se este como uma forma social historicamente determinada de subjetividade que se completa somente hoje, na moderna sociedade mundial produtora de mercadorias. Na emancipação do sujeito da troca, o homem torna-se sujeitado (objeto) de dominação de suas próprias relações cegamente pressupostas; o trabalho e as forças de produção social, elevados à enésima potência, tornam-se absurdos fins em si mesmos, enquanto capital privado ou estatal. O mundo "totalmente esclarecido" torna-se um "contexto universal de ofuscamento". Neste processo, porém, o sujeito não é simplesmente passivo, pois para dominar e instrumentalizar a natureza externa e os outros homens, teve ele próprio que se cindir metodicamente em sujeito e objeto, mente e corpo, para dominar sua natureza interna: somente aquele que se separa, recalca e esquece a natureza dentro de si pode dominá-la e coisificá-la dentro e fora de si. O progresso da dominação, então, aparece como simples autoconservação regressiva e adaptação à segunda natureza social: a história se converte em "história natural", em destino mítico. Enfim, a exposição dialética está justamente em percorrer estes processos contraditórios de constituição formal do sujeito moderno, indo de seu Não-Ser até seu Ser realizado. É preciso não confundir esse ser pleno do sujeito com um humanismo realizado: sua posição completa, ao contrário, seria a negação total do Homem (universal concreto).

No entanto, os "fragmentos filosóficos" do livro não procedem de forma linear e sistemática. Este movimento de ascensão e declínio do sujeito, vai de suas pré-condições (sua pré-história no mito e na Grécia Antiga) às suas condições efetivas (destruição da experiência social através do trabalho abstrato à indústria cultural), até seus resultados e limites históricos mais funestos (o anti-semitismo, o nazi-fascismo e Auschwitz), passando, enfim, pela sua crise e a ameaça de destruição da própria subjetividade humana. Daí o evidente, mas também aparente, tom pessimista do livro.

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Lógica, história, "ontologia" : negação determinada


A chave fundamental do livro, no entanto, é a mobilização da noção de "negação determinada" (Dialética do Esclarecimento. Rio, Zahar, 1985, p.36): na mitologia ou na razão astuciosa de Ulisses o sujeito burguês iluminista está apenas pressuposto, ou menos que isso: isto é, está determinado historicamente mas ainda não-posto, não-realizado e não-consumado enquanto forma social efetiva. O que significa também que o curso histórico, aparentemente fatal, poderia ter sido outro. É por isso que os autores se colocam a tarefa de crítica imanente ao Iluminismo, mesmo sabendo que na prática ela tem sido abortada. Pois a possibilidade da crítica do presente, inerente à marcha real da desmitologização – a crítica do real e suas ilusões do ponto de vista das potencialidades imanentes à história social, ou seja, a procura racional da negatividade interna à sociedade existente – faz parte, em medidas históricas variáveis, do próprio Conceito do Iluminismo (apesar também o seu contrário).

"A aporia com que defrontamo-nos em nosso trabalho revela-se como o primeiro objeto a investigar: a autodestruição do Iluminismo. Não alimentamos dúvida nenhuma – e nisso reside nossa petitio principii – de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contêm o germe para a regressão que hoje tem lugar em toda parte (...). Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade" (p.13, grifos meus).

A identidade de Iluminismo e catástrofe social não é uma essência metafísica. Seu "conceito", como diz o texto, é histórico e não um fundamento ontológico a priori. Sem que para isso caiamos na pura contingência historicista; como dizem os autores no novo prefácio de 69:

"Os conflitos no Terceiro Mundo, o crescimento renovado do totalitarismo não são meros incidentes históricos, assim como tampouco o foi, segundo a ‘Dialética’, o fascismo em sua época" (p.11).

Neste sentido, o livro guarda a objetividade lógica do conceito frente à história empírica, sem reduzir e dissolver, portanto, tudo à pura história vivida: o "conceito" aqui é indicação de sentido lógico e tendência histórica do funcionamento cotidiano do mundo social esclarecido. Um pouco como Marx não pode identificar a lógica da forma-mercadoria à história imediata em O Capital, mas persegue a dialética de lógica e história, subordinando teoricamente, por fim, esta própria dialética à história, a uma possível superação. A lei do valor é "ontológica" apenas sob um pano de fundo histórico.

Da mesma forma, não se pode afirmar, a não ser dentro de uma posição mitológico-metafísica – o que é o sumo do "próprio Iluminismo paralisado pelo temor da verdade" (p.13) –, que o curso iluminista do mundo em si mesmo possua leis ontológicas a priori que o conduzam à destruição ou à "redenção" (p.36). Contudo, seu "caráter superador" tem se perdido historicamente: o progresso iluminista mesmo torna-se uma negação indeterminada, arrasadora, não-dialética, pois não acumula a experiência passada, não apreende com suas cicatrizes e derrotas:

"a dominação universal da natureza volta-se contra o próprio sujeito pensante; nada sobra dele senão justamente esse eu penso eternamente igual que tem que poder acompanhar todas a minhas representações. Sujeito e objeto tornam-se ambos nulos" (p.38).

Esse é o ponto-chave da crítica, portanto: é preciso separar a apreensão lógico-conceitual da história do Iluminismo (no sentido quase literal do termo em alemão Begriff) de uma "essência" destrutiva a-histórica. O livro persegue, assim, a dialética de conceito e realidade social:

"Acreditamos contribuir com estes fragmentos para essa compreensão [a autodestruição do iluminismo], mostrando que a causa da recaída do esclarecimento na mitologia não deve ser buscada tanto nas mitologias nacionalistas, pagãs e em outras mitologias modernas especificamente idealizadas em vista dessa recaída, mas no próprio Iluminismo paralisado pelo temor da verdade. Neste respeito, os dois conceitos devem ser compreendidos não apenas como histórico-culturais, mas como reais. Assim como o Iluminismo exprime o movimento real da sociedade burguesa como um todo sob o aspecto da encarnação de sua idéia em pessoas e instituições, assim também a verdade não significa meramente a consciência racional mas, do mesmo modo, a figura que esta assume na realidade efetiva." (p.14, grifo meu).

As supostas leis ontológicas objetivas da práxis, como dirá Adorno, são projeções ideológicas do próprio sujeito aufklärer, do "espírito convertido em coerção", isto é, reprodução afirmativa do que meramente existe, mas que poderia já ser diferente. E se há de fato uma "tendência objetiva" à catástrofe, esta é "verdadeira" ou "idêntica a si mesma" apenas num sentido lógico e histórico "negativo", ou como dirá Adorno mais a frente, numa "ontologia do estado falso". É claro que tal "ontologia negativa" nega-se a falar de uma "essência do homem" ou de um "sujeito-objeto idêntico" da comunidade originária – neste sentido o livro não é "humanista" – mas, como veremos, fala de determinações antropológicas (e psicanalíticas) reais dos homens históricos. Pois a estrutura de dominação se reproduz, desde o início, não como pura e absoluta inconsciência estrutural (como pensaram os antropólogos estruturalistas), mas pela subjetividade dos indivíduos ativos "conscientes" - e ao mesmo tempo inconscientes - de sua forma fetichista. Na sua sujeição social, o "sujeito" toma parte ativa: eis "o sujeito como inimigo do sujeito" (Adorno, Dialética Negativa). Aqui toma corpo, no livro, o esboço de uma crítica da forma do sujeito identitário.

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O problema do método e do sentido da acumulação iluminista do sujeito

O retorno metodológico à Antigüidade (e mesmo à pré-história animista) para abordar a racionalidade moderna pode ser lido como a tentativa de levantar elementos, traços ou meras indicações que, na gênese e desenvolvimento do mundo moderno, se tornaram significações constituídas: a rigor, são pressupostos dos pressupostos internos ao moderno sistema produtor de mercadorias, ou, em outros termos, são pré-condições - isoladas, fragmentárias, descontínuas - das condições efetivas de reprodução do mundo burguês moderno. Entre outras coisas, o livro é também uma crítica do "continuum histórico" (Walter Benjamin) típico da filosofia burguesa do progresso, incluindo aqui a fatalidade panlogicista da dialética hegeliana e de "certo marxismo" (as vertentes mais duras de dogmatismo ontológico), enquanto sublimação ideológica do moderno fetichismo da mercadoria.

Parece claro, novamente, que tal movimento de constituição dialética vai num sentido, muitas vezes, análogo ao que Marx procurou fazer nos Grundrisse e no Capital, na gênese da forma-valor (troca de mercadorias, dinheiro, capital). Também na Dialética do Iluminismo, o mundo presente joga luz nas formas passadas, no sentido do aforisma de Marx: "a anatomia do homem é uma chave da anatomia do macaco". Isso significa ler continuidades na história (sem o que não há dialética), mas também apontar descontinuidades e diferenças possíveis.

Neste sentido, precisamente, a teoria se faz crítica, quando coloca os limites históricos de suas próprias categorias e do próprio método, o procedimento dialético tradicional; a Dialética Negativa de Adorno – a "lógica da desintegração", a exposição do não-idêntico em "constelações" – encontra-se já pressuposta no livro de 44, na sua própria forma fragmentária.

Isso posto, digamos então que a Dialética do Iluminismo pode ser colocada como um subcapítulo da acumulação primitiva do capital, naquilo que diz respeito à constituição da forma de sujeito do homem econômico moderno, sua racionalidade fetichista, seus resultados práticos e seus limites. Perder esse movimento é arriscar a pensar que os autores eram ingênuos diante do método que operavam e mesmo criticavam. Em linhas gerais, esse é o ponto de derrapagem das leituras filosóficas (que vêem apenas a "razão instrumental" correndo solta pela pista inexistente do mundo alienado das idéias lógicas) ou sociológicas não-dialéticas, ou pára-dialéticas do livro, que homogeneizam anacronicamente toda a história humana usando categorias postas apenas na modernidade. O que segue é a exposição deste esquema e desse caminho.

continua...


NOTAS

1- Max Horkheimer & Theodor W. Adorno - Dialética do Esclarecimento (fragmentos filosóficos). Rio de Janeiro, Zahar, 1985, p.51. (Todas as citações da obra seguem essa edição, com algumas modificações na tradução quando necessário. Note-se que prefiro traduzir Aufklärung por Iluminismo a Esclarecimento ou Ilustração). Disponível em: http://adorno.planetaclix.pt/

2- E, no entanto, trata-se de negar conscientemente esta lógica coercitiva do mundo moderno: "A exclusividade das leis lógicas tem origem nessa univocidade da função, em última análise no caráter coercitivo da autoconservação" (p.42).

3- Esta última formulação é baseada em Robert Kurz, em "Dominação sem sujeito", Krisis, n.º 13, 1993 (http://planeta.clix.pt/obeco).

4- Citações de Th. W. Adorno, Dialética Negativa. Madrid, Taurus, p. 148 e p.19.

5- No primeiro excurso, o da dialética entre mito e Iluminismo na Odisséia, acompanhamos "um dos mais precoces e representativos testemunhos da civilização burguesa ocidental. No centro estão os conceitos de sacrifício e renúncia, nos quais se revelam tanto a diferença quanto a unidade da natureza mítica e do domínio iluminista da natureza" (pp.15 e 6, g.m.). Em vários momentos da apresentação marxiana da história, do "assim chamado desenvolvimento histórico" (Grundrisse, p.26), Marx aponta as vacilações, os acasos, os pontos de paralisia e inércia do curso histórico, fazendo-nos divisar caminhos alternativos que estavam abertos no passado para além da forma-mercadoria mas que não foram aproveitados e atualizados; p.ex., tal como transparece em notas metodológicas de Marx para si mesmo: "Esta concepção aparece como um desenvolvimento necessário. Mas é preciso ter em conta o contingente. Como. (entre outras coisas, a liberdade) (...) nem sempre existiu a história universal: a história universal é um resultado" (ibid.: p.30).

6- Para o equacionamento teórico-metodológico geral dessa primeira parte foi fundamental a leitura das obras de Ruy Fausto. "É necessário insistir sobre o dogmatismo de certos campeões do antidogmatismo. Na medida em que eles não distinguem o que é ‘posto’ do que é ‘não-posto’, se quiser o ato e a potência, toda tendência se torna realidade efetiva. Aí jaz o segredo dos livros que põem numa mesma categoria – maldita – os pensadores ou os escritores mais diferentes. A dialética, pelo contrário, distingue a possibilidade da efetividade, o pressuposto e o posto, sabe registrar a presença de tal ou qual motivo inquietante nos clássicos, mas sabe também mostrar os limites dessas tendências (ver Adorno e também Horkheimer a esse respeito)", Fausto, Ruy - Marx: Lógica e Política, tomo I, São Paulo, Brasiliense, 1983).

(agosto-outubro de 2004)

continua...

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