O fetichismo na mídia virtual e a regressão da leitura
por Cláudio R. Duarte
Quem utiliza a internet todo dia, em especial as redes
sociais, já percebeu o modelo de percepção e de capacidade intelectual solicitado, incentivado, exigido e imposto pelo meio. Os traços básicos são conhecidos: predomínio da imagem sobre o
texto, grande fragmentação da informação, proliferação de publicidade e de
mensagens diretas do tipo “memes”, “palavras de ordem” ou "hashtags", redução de mensagens a poucos caracteres, resultando em: atenção fluída ou
baixo nível de concentração, baixa retenção espontânea do que foi lido, ouvido
ou visto, grande isolamento do espectador ou leitor. Quem entra em sala de aula
todo dia também já percebeu que algo ainda muito mais complicado parece estar ocorrendo a partir disso:
essa mesma forma de percepção e consciência fragmentada domina a
consciência e a sensibilidade de crianças e jovens, aparentemente os moldando desde
a primeira infância.
Na literatura de negócios vão aparecendo títulos como:
“3 minutos para o sucesso”, “Como apresentar as suas ideias em 30 segundos – ou
menos”, “Por que as pessoas de negócios falam como idiotas”, “Apresentações
eletrizantes”, “Ideias que colam: por que algumas ideias pegam e outras não”, “Como
fazer apresentações espetaculares”, “Detalhes que são mágicos para o sucesso da
comunicação”...
Quando Theodor
W. Adorno escreveu "O fetichismo na música e a regressão da audição" na
década de 30, ele descortinava uma tendência universal de regressão dos
sentidos e da experiência social, que esboçava de modo certeiro as linhas de
uma grande mudança antropológica. A
música se fetichizava como mercadoria do entretenimento e do marketing e os
homens perdiam a capacidade de ouvir composições complexas. O material de
Adorno era a música no rádio e no cinema, ambos correspondendo, em termos de
estruturas sociais mais fundas, à vivência apropriada e arruinada pelo trabalho
alienado nas fábricas e nos serviços desqualificados.[1]
Na verdade, o ensaio adorniano compartilhava do
diagnóstico elaborado pelas pesquisas de Walter Benjamin sobre a Paris do
Segundo Império napoleônico: o diagnóstico da "atrofia da experiência”,
tal como formalizada pela lírica de Baudelaire. Nesta cidade sitiada,
bombardeada pela propaganda, esquartejada pelas reformas urbanas do barão de
Haussman, sob o domínio da censura da imprensa e da pura informação, a
experiência coletiva se reduzia cada vez mais à mera "sensação" e à
"recepção de choques”.[2]
Nos anos 60, Herbert Marcuse aprofundava ainda mais
esse diagnóstico frankfurtiano observando, nas tendências do capitalismo avançado,
o novo papel da tecnologia como racionalidade administrativa:
“a dominação se transfigura em administração” (...) Com o progresso técnico como seu instrumento, a não-liberdade – no sentido da sujeição humana ao seu aparelho produtivo – é perpetuada e intensificada na forma de várias liberdades e confortos. A nova característica é a racionalidade irresistível nessa empresa irracional, e a profundidade do precondicionamento que modela as pulsões e as aspirações dos indivíduos e obscurece a diferença entre a falsa e a verdadeira consciência.”[3]
O
diagnóstico dos pensadores de Frankfurt estaria ultrapassado? Para alguns ideólogos
de nosso tempo, o mundo “pós-industrial” teria instaurado uma nova “era das
redes” e uma nova “sociedade do conhecimento”, estando em vias de superar a
problemática da alienação e dessa espécie de mutação antropológica regressiva. Após o apogeu do
jornal impresso e da televisão, as mídias virtuais prometeriam, por meio da
radical descentralização de sua produção e consumo, a sonhada emancipação do seu
espectador como produtor de cultura. No entanto, é possível questionar se
aquela tendência regressiva não se completa ainda mais gravemente, em muitos pontos,
através desse novo meio técnico.
Isto menos
por causa da nova técnica, que certamente contém boas possibilidades de
comunicação e aprendizagem, e muito mais pela hegemonia das relações sociais coisificadas e
espetacularizadas no coração da sociedade capitalista mundial. Essas
relações ainda geram muito provavelmente a alienação cognitiva e psíquica,
a partir do alto das hierarquias empresariais e do controle sobre a forma
de organização do novo meio, isto é, moldando o formato das redes sociais e
condicionando estruturalmente a percepção e a formação do juízo crítico. Isso sem falar na alienação dos trabalhadores da sociedade da informação e das redes, que impera do mesmo jeito que na sociedade industrial. A despolitização das recentes manifestações de junho de 2013 é somente a ponta desse iceberg da pseudoformação.
Como apontou
Adorno, o fetichismo musical consiste na perda da experiência da música como síntese
compositiva. A totalidade de uma peça rebaixa-se à mera coisa isolada, fragmentada,
desconectada das ligações complexas da chamada música séria. Esta mesma pode se
degradar em adaptações e arranjos palatáveis para o grande público. A música
popular perde também o seu caráter artesanal, rústico, resistente. Uma música
que, no final das contas, nem mais é usufruída e consumida como tal, mas
simplesmente celebrada por seu valor de face, seu valor publicitário. No
limite, consome-se o valor de troca do ingresso e o status social de ter presenciado um concerto clássico. Na internet,
a difusão de mensagens que podem ser “curtidas” e “compartilhadas” à vontade,
segundo a lógica do status e do simples sinal de positivo (o like ou curtir) tem um forte ar de semelhança com esse
processo de degradação da música.
Quanto ao momento da produção, conforme Adorno, a
construção musical qualitativa é substituída pelo "emudecimento dos
homens", pela "morte da linguagem como expressão", pela
"incapacidade de comunicação", reduzindo-se a esquemas repetitivos, a
linhas melódicas adocicadas, encantatórias e ofuscantes, levando à liquidação
da dissonância e da tensão entre as partes da composição, em suma, à
predominância do efeito, exemplificado pelo refrão de fácil absorção. Aqui, a
comparação da internet com a indústria cultural há muito degradada, por
exemplo, o meio jornalístico, é arrasadora: a internet passa à fetichização de
segundo grau, ao reencantamento do
coisificado pela mera informação ou pelo empirismo e o positivismo científicos,
no início do século XX.
Pelo lado do consumidor, ainda segundo Adorno, a
música nem mais conseguia “entreter”; antes virava mero fundo musical para uma
audição atomística e desconcentrada, que rejeitava tudo o que saía do
costumeiro:
“se é verdade que, em se tratando da música superior, a audição atomística significa decomposição progressiva, também é inquestionável que no caso da música inferior já nada mais existe que seja suscetível de decomposição. Com efeito, as formas dos sucessos musicais são tão rigidamente normalizadas e padronizadas, até quanto ao número de compassos e à sua duração, que em uma determinada peça isolada nem sequer aparece uma forma específica. A emancipação das partes em relação ao todo e em relação a todos os momentos que ultrapassam a sua presença imediata inaugura o deslocamento do interesse musical para o atrativo particular, sensual. É significativa a atenção que os ouvintes dispensam não somente a determinadas habilidades acrobáticas instrumentais, mas também aos diversos coloridos dos instrumentos enquanto tais”.[4]
Como
na internet, há quase nada mais a decompor ou, com perdão da ironia, ler en abyme: as partes de um “meme” se tornam
via de regra imediatamente inteligíveis, padronizadas por uma verdadeira indústria
de rótulos, frases feitas e gracinhas, remetendo às vezes a velhos ícones da indústria cultural, variando somente
detalhes insignificantes, destacando-se a técnica ou o traço isolado em si
mesmo. A grande incomunicação cotidiana sai “tecnicamente enobrecida" por essa
comunicação aviltada, com o plus prazeroso do “véu tecnológico” para as mesmas relações de
dominação de sempre. Por meio do “fetichismo tecnológico”, Marcuse dirá mais tarde, os
homens perpetuam o reino da necessidade, dos meios, do trabalho alienado, do
capital.[5]
Por outro lado, o ouvinte “regressivo”, tentando
fugir à pura coisificação do espírito, contido no bem cultural, se
caracterizaria segundo Adorno pela “pseudoatividade” e
pela identificação masoquista com o poder ou com as estrelas do espetáculo. Na
internet, o meio sugere uma nova democracia do estrelato: tornando-se
aficionados, experts ou amadores, alguns sonham com o sucesso repentino de uma
megacompartilhamento ou megacurtida – o sucesso por definição de uma “estrela
cadente” do veloz espetáculo da desleitura ou da leitura "em diagonal", que se sucede diariamente.
Na música ligeira, coisificada, o espaço abstrato
predomina sobre o tempo qualitativo da música séria. A questão para o crítico é
sempre objetiva, contudo, pois a música serial teve de internalizar essa
experiência social do choque e fragmentar-se no espaço, abrindo tensões e cicatrizes na composição tradicional. O mesmo parece se pôr para
Adorno com a forma do ensaio, que já não pode ter nem a forma positiva do
tratado ou do sistema acabado. Não obstante, o ensaio visa ainda ao todo
antagônico, por meio da visão hiperconcentrada do particular. As redes sociais
levam ao paroxismo a vivência de choque como vivência do espaço e da imagem –
mas desconectadas, descontraídas, relaxadas pela recepção basicamente isolada
(mas não individualística).
A tarefa do crítico, do ensaísta, do prosador, do professor,
do educador talvez seja, como no gesto lírico heroico de Baudelaire,
transformar esse espaço de voragem do leitor crítico, sob a coação dessas vivências
de choque, ainda uma vez numa experiência do negativo, a começar pela crítica
do meio tecnológico como um fim em si, seu desvelamento como meio efetivo atual
de dominação social e adiamento da “pacificação da existência”[6].
Notas:
[1]
Theodor W. Adorno, “O fetichismo
na música e a regressão da audição” [1938] in:___. Textos
escolhidos (Os pensadores). 2ª ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1983.
[2]
Walter Benjamin, “Sobre alguns
temas em Baudelaire” [1938] in: Textos
escolhidos, op. cit., p. 31 e 33.
[3] Herbert Marcuse, One-Dimensional
Man – Studies in the ideology of advanced industrial society [1964]. London/New
York: Routledge, 2002, p. 35.
3 comentários:
Como educador, vejo no cotidiano o comportamento cada vez mais padronizado e mecanizado dos "estudantes", - remetendo ao filme Tempos Modernos de Charles Chaplin - caminhamos para onde? Ou melhor, somos levados para onde, que modelo de sociedade nos espera? Perdendo aceleradamente nossa capacidade de intervir socialmente, cada vez mais próximos da condição de autômato e mais longe da autonomia, o cenário que se configura é aterrador...
Leandro Alves Parra
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