Pequena orientação didática para ler mais e melhor as MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS
Cláudio R. Duarte
1- Pode-se até tentar ler o romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1880-1881) fora do seu tempo, fora de seu contexto. Mas muita coisa se perde dessa maneira em termos de análise formal e estrutural. Não se trata de um livro da "cultura universal", que fala para todos os lugares em qualquer tempo histórico -- mas antes do primeiro passo acertado de Machado de Assis para escrever um ciclo de romances sobre a História do Brasil. Um país particular, no conjunto do sistema capitalista mundial.
Vale relembrar, uma nação pós-colonial, com todas as mazelas e heranças negativas que nós conhecemos: o país do latifúndio monocultor e agrário-exportador, do escravismo, do poder oligárquico do patriarcado rural, o país do favor, dos privilégios e das relações de dependência, e que somente na aparência é um país moderno e civilizado. (Vide foto do Senhor e seus escravos- sempre descalços -, na primeira metade do séc. XIX).
Geograficamente, ainda, um país desmembrado em regiões fragmentadas e desconjuntadas, ou seja, mais ligadas comercialmente com o exterior do que com o próprio restante do país (arquipélagos regionais isolados, com pouca relação comercial, pouca interligação em termos de comunicações e transportes).
O contexto acima indicado importa e muito para a boa leitura do romance. Pois ele toma esse contexto como a substância de sua forma e de sua estrutura - como já apontaram críticos de peso como Roberto Schwarz, John Gledson e José Antonio Pasta.
Para Machado, o sentido do livro é narrar essa história malograda de uma nação escravista feita em pedaços. Trata-se de uma nação que ainda não nasceu, ou que nasceu morta nas mãos de uma elite descompromissada e de costas para a verdadeira nação, feita de escravos e dependentes, vivendo na miséria e sob a lógica do arbítrio e do favor. Uma elite caprichosa, cínica e autoritária, que apenas começou a morrer a partir da Lei do Ventre Livre (1871) e da modernização urbano-industrial, não obstante continue a falar ainda hoje, no país do trabalho precário, da marginalização, da exclusão social das massas em relação à cidadania. Por isso, Brás Cubas irá morrer em 1869, no limiar da lei de 1871, mas continua a falar no presente, eternamente, a partir do Além, no berço esplêndido da nação - vale lembrar, ainda escravista em 1881 (data da publicação do romance).
Em resumo, então, tínhamos um país estruturalmente dividido e repleto de condições negativas: liberal e escravista, moderno e atrasado, civilizado e bárbaro, cosmopolita e provinciano, ilustrado e prisioneiro do mito, da religião e do obscurantismo, enfim, um país que tinha em seu DNA contradições imensas, que não poderiam ser eliminadas por uma narrativa realista. Mas um realismo fantástico, cheio de humor e metafísica. Por isso, Machado não repete os erros românticos -- não enfeita, nem adocica como fazem Alencar ou Macedo. Machado destroó as ilusões românticas e nacionalistas.
2- A chave principal da obra, portanto, é esta: Brás é o Brasil. Mas um Brasil morto ou em decomposição - daí o ponto de vista inusitado de um "defunto autor". O romance será então repleto de ambiguidades, ambivalências, confusões, disparidades, contrastes, despropósitos, que refletem essa condição brasileira dividida e negativa. O ser do Brás/Brasil é um ser-outro (alienado) ou um não-ser (morto). Daí o vazio e a esterilidade do livro, feito de descontinuidades, capítulos curtos, que não prosseguem e não levam a nada. Daí o saldo negativo do livro (capítulo das Negativas, no final da obra). A Lei do Ventre Livre prometia aparentemente um país novo, com liberdade de trabalho e mobilidade social. Mas é isso que Machado irá negar nos romances seguintes: em Quincas Borba, Dom Casmurro e Esaú e Jacó - quando retrata o malogro da liberdade e da ascensão social e os embustes e autoritarismos congênitos à classe dominante brasileira. Em Memorial de Aires, último livro do autor, a elite dá finalmente as costas para o país e retorna para Portugal, deixando os negros à sua própria sorte, após a Abolição. O que deu - como sabemos bem - em cortiço, favela, viração, exclusão e racismo (vide foto ao lado, de favela no Rio, no início do séc. XX).
3- Voltando enfim ao Brás Cubas.
a) Brás Cubas é polarizado entre uma série de ideias móbeis e uma ideia fixa. A ideia móbil é tudo o que não para um segundo no lugar, hesitante, dando rasteiras no leitor e nos personagens do livro, ostentando um ar de superioridade. Estas ideias cabriolantes o caracterizam pela volubilidade, pela falta de caráter, inconstância de desejos, imprevidência, falta de perspectiva e de projetos sólidos, vontade de gozo imediatista, comportamento trapaceiro, perverso e violento contra o outro (Prudêncio, Eugênia, D. Plácida), enfim, uma mobilidade infinita de pensamentos sem propósito ou totalmente insensatos, com teorizações filosóficas ridículas ou rebaixadas, uma mobilidade aliás que atinge até o espaço (viagens, andanças, perambulações etc.). Trata-se do oposto da elite protestante europeia ou estadunidense. Além disso, Brás serve-se do discurso filosófico e iluminista para justificar práticas patriarcais e escravistas, completamente opostas ao decoro e à ideologia igualitária e libertária da civilização burguesa. Na realidade, todos os personagens são volúveis quase da mesma forma que Brás. Todos são muito bons e mesmo excelentes em termos de discurso, mas na prática são miseráveis e nada exemplares (com exceção de Eugênia). Mesmo os subordinados como Prudêncio ou Dona Plácida se transformam no seu oposto, conciliando-se com o sistema de dominação vigente. O próprio escravo de Brás, no final do romance, tem o orgulho de sua servilidade (o fato de ser escravo de um senhor muito rico).
b) A sua ideia fixa - o emplastro Brás Cubas - nada mais é que a tentativa de pôr um fim a essa movência vertiginosa de caráter e falta de propósito na vida. Mas o seu projeto é nada mais nada menos do que um "medicamento sublime", ou seja, um remédio milagroso para "aliviar a nossa melancólica humanidade" (cap. II). Ou seja, um projeto impossível - francamente maluco - , e nenhum pouco baseada na ciência e no trabalho. Essa ideia era nada mais então que uma "sede de nomeada" - isto é, a tentativa de obter fama e glória, de figurar na opinião pública como um cartaz nas ruas, como um rótulo de remédio. Um desejo de se tornar a pura superfície de uma propaganda publicitária. Como diz, no cap. II, ele buscava, de um lado, "filantropia e lucro" (interesse burguês), de outro "sede de nomeada" (interesse tipicamente pré-moderno, baseado na paixão por títulos honoríficos e hierárquicos).
c) Finalmente, como Brás não tem nenhum "ser" fixo, nenhum caráter valoroso e honrado, então, ele pode se misturar e se confundir com a esfera do Outro em geral. Para começar, ele violenta o próprio leitor, invade o seu espaço e o ameaça com piparotes e frases que simplesmente o desprezam (o leitor é o único "senão" do livro). Eis o capricho autoritário de nossa elite transformado em uma escrita violenta.
A falta de lei nesse país permite o vale-tudo, inclusive um morto narrar um livro. Uma passagem livre do Mesmo (ou do Eu) no Outro, sem respeito a qualquer limite (moral, social, legal, narrativo). Toda lei, toda resistência do real, é virtualmente abolida. Assim, Brás é por um lado um homem culto, por outro, pura casca e ornamento, rebaixando a filosofia à ignorância, à piada e a teoremas sem pé nem cabeça (filosofia narcisista da ponta do nariz, aforimas estúpidos etc.). Brás é tão sutilmente inteligente quanto abertamente louco ou paranoico, como seu amigo Quincas Borba. É tão refinado (citando Dante, Molière ou Shakespeare) quanto perverso e brutal (batendo em Prudêncio, legitimando o seu cunhado escravista Cotrim etc.). Assim, ainda, Brás é tão ativo e dominador quanto um ser passivo, deixando Marcela ou Virgília tomarem conta de si (aliás, Virgília faz o papel de homem do casal, - ela é Vir, viril). Na Câmara dos Deputados, o seu único projeto político é querer reduzir o tamanho da barretina da Guarda Nacional, algo que não tem nada de político. No fim da vida, a sua melhor ação não passa de filantropia medíocre (em que pisa mais uma vez em Eugênia) e desejo de fama e glória, sem nenhum compromisso verdadeiro para com o país. Algo que lembra diretamente a lei do Ventre Livre: cheia de boas intenções, mas na prática mantendo os filhos de escravos nas fazendas como mão-de-obra não-paga até os 21 anos.
Quando o Eu não se distingue do Outro, temos então instaurado um regime de confusão, perversão, loucura e violência, em que tudo é invadido pela esfera do outro. No fundo, um regime de exceção estrutural às leis e normas, o fruto estéril de um país em que o indivíduo burguês europeu não se constituiu plenamente - ou que se constitui apenas pela metade. A pior mazela dessa indistinção entre o Mesmo e o Outro é então esta: o Brasil moderno, que prometia já uma imensa riqueza com o café, dificilmente se separa e se distingue do atraso, ou melhor, só é possível com base nos elementos mais arcaicos e atrasados, em que a história falha e não acontece. Eis o Brasil Morto que ainda hoje segue vivendo e nos alienando.
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