Ruínas alegóricas machadianas em "Na arca" e "O empréstimo"
Cláudio R. Duarte
Na coletânea Papeis Avulsos (1882), Machado de Assis parece estar interessado em produzir retratos que identifiquem determinados tipos sociais brasileiros. Ainda mais até, na esteira da virada da segunda grande fase, parece que temos aqui o mesmo impulso crítico de representar alegoricamente o Brasil. A ideia já foi sugerida por grandes intérpretes machadianos (John Gledson e Sidney Chalhoub). É o que se evidencia em contos como "O Alienista", "Teoria do Medalhão (Diálogo)", "D. Benedita (Um retrato)", "O segredo do Bonzo", "A Sereníssima República (Conferência do Cônego Vargas)", "O Espelho - Esboço de uma nova teoria da alma humana" e "Verba testamentária". Nesse sentido, o nome desta coletânea é ambíguo. O próprio autor nos avisa em sua Advertência: "avulsos são eles, mas não vieram para aqui como passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa" (Obra Completa, II, Rio de Janeiro: Aguilar, 1959, p. 253).
Dois outros contos -- "Na Arca - Três capítulos inéditos do Gênesis" e "O Empréstimo" -- são um pouco mais gerais, mas sem dúvida tratam de estruturas econômicas fundamentais da sociedade moderna. O primeiro trata da propriedade privada da terra, o segundo do dinheiro e a forma-mercadoria. Apesar da temática genérica, eles não são simplesmente "atemporais" e creio que ganhariam em ser lidos no contexto da modernização conservadora brasileira.
NA ARCA - TRÊS CAPÍTULOS INÉDITOS DO GÊNESIS
O primeiro conto é uma paródia da vida após o Dilúvio, no Gênesis. Dois filhos de Noé, Jafé e Sem lutam pela propriedade da terra, uma terra completamente livre e despovoada. Jafé pensa como um típico proprietário:
"6. - Aprazível vida vai ser a nossa. A figueira nos dará o fruto, a ovelha a lã, a vaca o leite, o sol a claridade e a noite a tenda".
"7. - Porquanto seremos únicos na terra, e toda a terra será nossa, e ninguém perturbará a paz de uma família, poupada do castigo que feriu a todos os homens".
"8.- Para todo o sempre" (...).
Lá onde tudo parece apropriado, quer dizer, possuído e usufruído coletivamente, ressurge a velha forma da propriedade privada, ao mesmo tempo em que a mediação da atividade produtiva tende a desaparecer da consciência. O tom bíblico reforça a eternidade das relações. Os homens "castigados" foram privados e excluídos da propriedade. Termo mudo e ausente da relação, eles são os não-proprietários e, no fundo, pelo nosso contexto, remetem aos dependentes e aos escravos, aqueles cujo estatuto é o do não-ser, a "vida nua", matável e insacrificável (Agamben). No conto, são os que deixaram de existir, afogados, por vontade divina.
Na sequência do conto, desenrola-se o tema, muito especialmente machadiano, da "luta de morte" entre os irmãos Sem e Jafé. Um terceiro filho de Noé, chamado Cam, se intromete e tenta conciliar os dois irmãos, mas é zombado e excluído da discussão. A luta chega às vias de fato, no capítulo B:
"21- Na luta, caíram e rolaram, esmurrando-se um ao outro; o sangue saía dos narizes, dos beiços, das faces; ora vencia Jafé,
"22. - Ora vencia Sem; porque a raiva animava-os igualmente, e eles lutavam com as mãos, os pés, os dentes e as unhas; e a arca estremecia como se de novo se houvessem aberto as cataratas do céu".
Cam relata a Noé a luta entre os irmãos. Noé é obviamente a figura da lei paterna ("eu verei do que se trata, e ordenarei o que for justo") -- a metáfora da lei social, que falha especialmente no país e já não rege as relações entre pais e filhos ("Teoria do medalhão") ou, num âmbito mais geral, entre superiores e subordinados ("O Alienista", "O Espelho", "Verba Testamentária"), potências mundiais e zonas coloniais etc. O horizonte, inteiramente rebaixado, é o da lei sob as determinações burguesas, a luta selvagem pela autoconservação, a omnium bellum contra omnes.
Os irmãos logo se engalfinham de novo. Só no capítulo C, Noé, Cam e as mulheres de Sem e Jafé conseguem conter os dois combatentes ensanguentados. O final do conto alegoriza o contexto de guerra sem lei através de um conflito histórico moderno, no caso, os vários conflitos entre Turquia e Rússia (desde o século XVI, até o auge na Guerra da Criméia e do conflito de 1877-78):
"22. - Noé, porém, alçando a voz, bradou: - Maldito seja o que me não obedecer. Ele será maldito, não sete vezes, não setenta vezes, mas setecentas vezes setenta.
23. - Ora, pois, vos digo que, antes de descer a arca, não quero nenhum ajuste a respeito do lugar em que levantareis as tendas".
24. - Depois ficou meditabundo.
25. - E alçando os olhos ao céu, porque a portinhola do teto estava levantada, bradou com tristeza:
26. - Eles não não possuem a terra e já estão brigando por causa dos limites. O que será quando vierem a Turquia e a Rússia?"
A maldição está lançada "para todo o sempre". As guerras russo-turcas, guerras recorrentes entre os dois impérios dos mais conservadores do mundo moderno, servem como cifragem alegórica de contextos coloniais de dominação e exploração, ou seja, de relações entre senhores e escravos/dependentes (presentes-ausentes na relação).
O EMPRÉSTIMO
"O empréstimo" é outra anedota moderna. Tal como a vida social alienada e miserável de Jacobina, em "O Espelho", a vida de Custódio, em "O empréstimo", pode ser "apertada" em uma curta anedota sobre um pobre diabo. Mas, assim, a forma do conto machadiano imita criticamente a vida social regida pela forma-mercadoria, que reduz a vida singular dos homens ao dinheiro e à função econômica. Esta abstração ou redução real de uma vida a um micro-episódio alegórico também não admite réplica. Só por isso Sêneca deve ser "emendado": tal como a vida toda de Jacobina se resume ao episódio da Farda e de seu desvanecimento diante do espelho, recalcando a sua própria situação de escravo (analisada por mim, em outro ensaio, nota 1), a de Custódio se resume à de de um pobre-diabo que necessita de um empréstimo. Aliás, como Jacobina, a vida deste general/pedinte se reifica, no limite, numa "carteira": "Oh! a carteira! Custódio viu esse utensílio problemático, apalpou-o com os olhos, invejou a alpaca, invejou a casimira, quis ser algibeira, quis ser o couro, a matéria mesma do precioso receptáculo" (OC, II, 335).
A história de Custódio e dos filhos de Noé se reduz, assim, à velha anedota, ao esquema surrado, à lenda, numa palavra, ao mito -- a repetição do sempre-igual. Relações históricas se petrificam e se naturalizam. Nos dois contos, o objeto ganha vida em detrimento do sujeito e de suas ações. As personagens se coisificam e se mortificam, enquanto a propriedade e o dinheiro ganham poder sobre a vida social. Paul Dixon ("Modelos em movimento: os contos de Machado de Assis", Revista Teresa, 2006) percebeu esse traço dicotômico, esquemático, estrutural, às vezes abstrato e caricatural das personagens do conto machadiano, sem perceber que este é o traço fundamental da alegoria -- o modo de exposição de um mundo arruinado pela abstração social da forma enfeitiçada da mercadoria.
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Nota 1: Vide: Duarte, Cláudio R. "O Brasil n'O espelho de Machado de Assis". Sinal de Menos, nº 4, 2010. www.sinaldemenos.org
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