O capitalismo como estado de exceção permanente
Cláudio R. Duarte
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Viver na sociedade moderna é estar sujeito a inúmeras ordens coercitivas. Ordens econômicas, políticas, sociais, morais, psicológicas. Ordens gerais que comandam o fazer, o viver, o agir, o pensar e até o sentir e o sonhar. A primeira dessas coerções é o trabalho, o trabalho em abstrato, para fins de aumentar um capital. Trabalhar sem parar, fazer coisas insensatas, inúteis, sem sentido, num ambiente de competição selvagem, sem consideração para com os reais interesses sociais ou se as coisas produzidas terão consequências ambientalmente destrutivas. Apesar de estarmos numa suposta sociedade livre e democrática, temos de nos ajustar às normas sociais alienadas, decididas por ninguém mais senão o mercado e o Estado.
Claro que não há sociedade sem lei, sem normas, sem valores éticos. Porém, a sociedade que busca o lucro para a infinita acumulação de capital nos impõe cegamente uma lei, uma ordem social que, no fundo, violenta incessantemente a própria noção de lei. O dinamismo da sociedade burguesa é o movimento abstrato e violento de capitalização de lucros -- contra os homens e contra a natureza. Em O Capital, Marx denominava o movimento autônomo do capital - D-M-D' - como desmedido (masloss) e infinito. Não há limite passível de controle social consciente quando a ordem é a exploração e a dominação social sem fim.
(Em grande medida, a questão marxiana principal no primeiro volume de O Capital é sobre os limites do capital: os limites da jornada de trabalho, os limites da exploração do corpo do trabalhador e do corpo da terra, por fim, as leis da acumulação e seus limites, que só podem surgir na exposição mais adiante, no volume 3, quando passamos ao aumento da composição orgânica do capital e à queda tendencial da taxa de lucro).
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A insaciabilidade da capitalização do valor pré-forma toda ação social e atinge as raias do impossível e do completo absurdo. Não deveríamos nos espantar, por exemplo, que o capitalismo tenha feito renascer a escravidão em pleno mundo moderno, na Europa humanista, no século XVI. No Brasil, a escravidão chegou quase até o século XX. A abolição da escravatura ocorreu apenas em 1888! Também não é de se estranhar que ainda hoje mais da metade da população mundial viva com menos de dois dólares por dia, em condições muito piores do que a de um escravo ou de um servo da Idade Média. Nós, os modernos, é quem vivemos na verdadeira “idade das trevas”.
De fato, o capitalismo não é um sistema de produção racional feito para atender às necessidades humanas. Seu alvo primordial é produzir sem limites para o lucro privado. Para isso, o capitalismo sempre está se excedendo e sempre empurrará a sociedade para o excesso. Em sua mais íntima essência, o capitalismo pode ser definido como um estado de exceção permanente: a produção de excedentes, de um excesso além da medida que o mercado pode absorver - sem que isso signifique o atendimento das necessidades sociais fundamentais da imensa maioria dos homens! A falta de limites, ou a falta de medida consciente, é a regra fundamental do capitalismo.
Claro que há leis sociais que o buscam regular. Mas estas são leis que o autorizam a funcionar como tal, isto é, leis que o legitimam a explorar e a dominar as populações e a natureza. Leis que o autorizam, portanto, a pilhar, danificar, arruinar e destruir, sim, até um certo ponto mais ou menos extremo, previsto pela própria lei. As leis jurídicas capitalistas apenas proíbem e punem a exploração e a dominação quando a pilhagem, o dano e a destruição se tornam totais e completamente irracionais, impedindo a continuação do ciclo reprodutivo do capital. Enquanto esta autodestruição não acontece, praticamente tudo é permitido e liberado.
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Na verdade, porém, a transgressão da lei subjaz no coração da forma social capitalista: a lei da troca de equivalentes só se realiza invertendo-se em seu contrário, isto é, como a realização de uma não-troca entre capital e trabalho, com a exploração de trabalho não-pago, sem equivalente. A regra geral fundamental é a infração da norma (a da troca justa). A troca de equivalentes é só uma regra aparente: poderíamos dizer que ela é, na prática, uma exceção da verdadeira regra geral, constituída pela exploração da força de trabalho alheia sem equivalente.
Numa sociedade que tem a produção do excedente e a violação da regra como sua essência sistêmica, o viver e o pensar também não terão limites racionais, dentro de uma realidade sensível, socialmente compartilhada. O sistema modela cegamente uma forma de vida geral, uma cultura, um modo de vida, que tende a transcender todas as barreiras e limites, inclusive as de classe, regulando o pensamento e a vida de todos os que se sujeitam ao mercado e ao Estado. Em tais condições a ordem social transfigura-se em uma ordem de gozo ilimitado – embora o gozo seja para muitos mais uma imagem evanescente do que uma realidade propriamente dita.
Como dizia Guy Debord, o capital atinge um tal grau de abstração e de alienação que se torna uma ordem de gozar a mera imagem espetacular das coisas deste mundo, de simular o gozo do produto social que nos foi arrancado. A riqueza se torna então algo supremo, exterior, separado, fora de nosso controle, com a força de um fetiche. Na sociedade espetacular a ordem é, mais do que ter, aparecer como vencedor e gozar a qualquer preço a imagem do sucesso. Nenhum futuro humanitário nos olha e nos espera, mas apenas a careta violentamente cínica e ameaçadora do já existente, como dizia Adorno. Aqui, o céu, convertido em inferno social real, é o limite. Tanto como na esfera concreta do trabalho e da produção de capital nenhum valor ou limite deve ser objetivamente aceito, e já nada mais é legítimo por si só. O capitalismo se torna um gigantesco processo de dessacralização e de profanação de limites socialmente partilhados, um processo ele mesmo "místico" e "sagrado".
Pois qual é hoje o limite do comércio humano? Estamos talvez atingindo o ápice da mercantilização do mundo. Tudo pode ser comprado e vendido. Tudo pode ser medido em dinheiro e transformado em uma reles ou uma caríssima mercadoria. Não há limite que impeça alguém de comprar e vender qualquer coisa. Pense-se na mídia de nosso tempo, nos programas de televisão, nos filmes, nas novelas, nas músicas, nos reality shows, no turismo, nas propagandas, nos jogos eletrônicos. Pense-se em toda a esfera de valores, determinada pelo consumo desenfreado. Mas pense-se, antes de tudo, na esfera insana do trabalho capitalista, que a determina: as horas perdidas em frente de um computador ou do volante de um carro ou de uma escrivaninha vagabunda, enquanto populações inteiras não sabem nem o que é comer, vestir, morar, ler ou ter saúde. Não só os executivos não se importam e são frios calculistas, puros zumbis da produção de mercadorias. O sistema econômico molda totalitariamente o pensamento de todos. O motoboy cachorro-louco, se precisar, passa por cima da perna da avó que passeava pela rua, o caminhoneiro, sem muita questão senão a do seu salário mensal, pouco se importa se a carga que ele leva contém a história da destruição de uma região rural e o lucro para outras regiões mais distantes, tanto quanto o marqueteiro ou o manager se importam se as suas mega-vendas irão poluir e enterrar o mundo sob imensas pilhas de sucata.
O excesso mercantil é, porém, completado pelo estado de exceção político, que fica sempre pressuposto como tela de fundo. A infração econômica cotidiana, sempre posta e reposta socialmente, é então completada pelo estado de sítio, sempre que a socialização pelo valor entra em crise e a bancarrota geral aparece.
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Romances latino-americanos "pós-realistas" tais como Esaú e Jacó (1904), de Machado de Assis, ou El recurso del método (1974), de Alejo Carpentier, apontavam claramente a relação entre febre especulativa e excesso imaginário e real de poder no contexto latino-americano. A representação literária de potentados escravistas e de regimes de exceção rompe então todos os postulados lógicos da verossimilhança realista tradicional. No fundo, a forma "cômico-fantástica" de Machado é precursora do "real maravilloso" de Carpentier e da literatura latino-americana em geral. Ambas as formas literárias têm seu nervo estético concreto nas noções de capricho, excesso e desmedida, que geram a contínua transgressão dos limites e uma forte sensação de aclimatação postiça de normas e ideologias europeias no contexto periférico; daí também a sensação de não-história, a força da alegoria ou da repetição mítica em tais processos de "modernização conservadora". O descompasso gigantesco entre a norma e a sua aplicação prática, as
contradições sociais sempre recorrentes, a fragilidade econômica e a inevitável bancarrota da periferia trazem consigo, no entanto, a crítica objetiva da ideologia, mas também a necessidade política de regimes de exceção para conter a sociedade, sempre em vias de ruptura e dissolução, dentro de certos limites artificiais. O informe (social) como que invoca o uniforme (militar-estatal). É então o poder de polícia do Estado que traz a realidade para dentro dos eixos: o estado de sítio de Floriano Peixoto, representado com destaque em Esaú e Jacó, a intervenção ianque no país sul-americano, em El recurso del método.
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O que se depreende daqui, contudo, é que o regime de exceção, sempre pressuposto na base constituída pela forma-mercadoria (ou a troca de equivalentes), torna-se a norma capitalista explícita, principalmente lá onde a dominação e a exploração não podem mais se sustentar e se legitimar por conta própria. A América Latina, a Ásia e a África são os lugares máximos de realização dessa lógica inscrita no próprio conceito de capital, lá onde o capital pode celebrar suas orgias sem se preocupar muito com as leis, a moral e os bons costumes. Carpentier chega a contar 27 ditadores
em um país do Caribe e mais de mil golpes e quarteladas na América Latina, em pouco mais de um século e meio.
A violência econômica estrutural portanto vêm à tona e se realiza também politicamente. É nesse sentido que o estado de exceção se tornou a regra mundial permanente hoje: globalizado, o capital atinge seu objetivo máximo, que é eliminar em massa o trabalho vivo da produção de mercadorias, superando todas as barreiras sociais que buscam o controlar (contratuais, legais, etc.). É o que permite mediar e conectar fenômenos de um processo único de instauração da exceção normativa: políticas neoliberais, privatização e hiperburocratização das políticas do Estado, flexibilização das relações de produção, políticas imperialistas, retorno de estratégias de acumulação primitiva, imaginário pós-moderno, afirmação do imperativo do gozo e hegemonia de um vínculo social perverso. O capital atinge o limite de reduzir e identificar todo outro a si próprio.
Mas assim também o Capital excede quaisquer limites naturais e sociais, destruindo seu próprio fundamento econômico e social - exigindo então um estado de emergência permanente para recolocar em ordem uma sociedade em completo caos e desordem. Viver nesse limite negativo, em que tudo é mobilidade mas nada se resolve, é também estar vivendo talvez, possivelmente, a transição para o declínio da espécie humana na terra.
(maio-junho-novembro de 2011)
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