20 maio, 2008

TRABALHO ABSTRATO E PATOLOGIAS DO SUJEITO MODERNO

TRABALHO ABSTRATO E PATOLOGIAS DO SUJEITO MODERNO
(Retalhos de ensaio para uma caracterização de formas estruturais da subjetividade moderna)

Cláudio R. Duarte

O trabalho abstrato e alienado, trabalho especificamente moderno e capitalista, é a condição determinada para a proliferação de todo tipo de patologias subjetivas. Produzir algo sem sentido em si, muitas vezes coisas supérfluas e destrutivas do homem e da natureza, apenas para que gere um lucro mediato no sistema, trabalhar incessantemente num ritmo insano, entregar a vida no portão às 8 e recobrá-la só no final do dia, trabalhar visando tão-somente ao dinheiro, sem nenhuma criatividade ou atração pelo que se faz, ou fazendo coisas simplesmente fragmentárias e desligadas do resto do que se produz, delegando aos outros as decisões mais decisivas da vida - tudo isso exige uma enorme cisão de corpo e mente, um enorme recalcamento da libido, do desejo e da própria consciência. As pessoas suportam tal carga somente quando ativam o modo "piloto-automático".
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A dominação técnico-racional da natureza atinge o ponto da completa separação do homem em relação a ela, exigindo do indivíduo uma espécie de elevação a um plano transcendental-racional que o eleva à condição de sujeito: aquele que precisa sobreviver só o faz dominando unitariamente a si mesmo como parte dessa natureza, antes de poder lutar para subjugar o contexto externo, sejam pessoas, sejam coisas ou situações. A apatia na ação é a condição de qualquer capitalista e de qualquer trabalhador na prática. Se pensarmos muito não fazemos as coisas absurdas que fazemos. Só aceita de bom o grado o trabalho capitalista quem foi disciplinado despoticamente para ele num mundo já completamente capitalista. Essa cultura da frieza burguesa teve de ser acumulada juntamente com os meios de produção, uma forma de "acumulação primitiva do sujeito moderno". A disciplina e a educação para o trabalho, como diz Marx em O capital, teve de ser aprendida a ferro e fogo até que pudesse aparecer na superfície cotidiana como modo natural de ser e agir.
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A apatia, a forma subjetiva de realização da norma objetiva burguesa, regulada pela lei do valor, é a condição pragmática de todos os personagens do Marquês de Sade. Neles, a interiorização da Lei é incompleta, seu traço é a perversão estrutural, daí sua compulsão automática para a transgressão e o prevalecimento sobre o outro, sem freios morais.
No mundo da mercadoria avançado, em que as referências simbólicas paternas e morais mais amplas se esfumam, embora a identificação com o poder abstrato permaneça ainda mais sólida (como lei da sobrevivência fundada em modelos de pertencimento e potência reconhecidos), algo dessa posição perversa se generaliza entre os neuróticos que, cinicamente, simulam fragilmente uma onipotência imaginária, brincando que o mundo externo é a extensão instrumental de seu corpo. O limite disso é a violência generalizada nos poros do cotidiano.
É esse sujeito que se torna um neurótico cada vez mais regredido às posições narcisistas e sintomas de neurose de angústia (dada a socialização defensiva num mundo do isolamento e competição férrea), com recuo das clássicas tendências obsessivas e anal-sádicas (retenção e acumulação para uma autoconservação sem sentido) e progressão a comportamentos explosivos, limítrofes, francamente sado-masoquistas -, no limite paranóicos (perseguir e ser perseguido na selva de pedras capitalista) e esquizofrênicos (perda total da identidade).
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O negativo surge da afirmação dessa negatividade ao limite: o sujeito padrão-normal, exigido pelo capitalismo para sua reprodução, dá sinais de desaparecer do horizonte. O resultado é a transformação do mercado pacífico na figura da luta de morte generalizada: a luta de todos contra todos hobbesiana. A recuperação da ordem só vem com o exército industrial de assistentes sociais, psicólogos e psiquiatrias, com seus reformatórios, suas terapias de adaptação e psicotrópicos. Na continuidade, em graus menores, a da casa classe média, com pai de família integrado, os livros de auto-ajuda cumprem essa mesma função, tal como a programação da tv, os shows olímpicos e os jogos de futebol.
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Bibliografia fundamental sobre o tema:
Christophe Dejours - A loucura do trabalho.
__________. - A banalização da injustiça social.
Deleuze e Guattari - O Anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia.
Horkheimer e Adorno - Dialética do Esclarecimento.

7 comentários:

Unknown disse...

Grande Militante Imaginário!

Hoje parece que o trabalho passou a ser um valor maior e aqueles que estão fora do esquema se entristecem ao estarem fora dessa teia de relações....

Acaso consegueriamos fazer um manifesto real contra o trabalho ?

Luis Fernando disse...

Duarte, muito bom esse artigo...

Anônimo disse...

Parece ser justamente esse o terreno no qual a revolucao deve ser pensada, ao nivel dos corpos, onde nenhuma dialética tem consistencia.

para criar novas formas de vida para alem do valor, talvez seja preciso adentrar nesse micro universo político, extremamente fértil, longe das aparelhagens psicanalíticas, e com todo o poder criativo de um devir.

Unknown disse...

Muito bem realizada a passagem Teoria Crítica > Deleuze/Guatarri. Esclareceu muito bem alguns pontos principais.

Anônimo disse...

O próprio centro sobre o qual foi construida a sociedade capitalista, o valor, é fruto de inclinações neuróticas. Tem o papel de um pai fictício, o que não é propriamente novo nas sociedades humanas, e impõe um auto-sofrimento às pessoas, fruto do típico sentimento de culpa dos neuróticos, mas em versão generalizada e colectiva. Já Marx no Capital via que a sociedade da mercadoria se organizava em torno de uma abstracção. Acho que outro livro pertinente sobre o assunto é o A Civilização e os Seus Descontentamentos, de Freud

Fernando Marcellino disse...

Caro Claudio, gostei muito desse post. Achei muito interessante colocar a multiplicidade desse processo histórico nas diversas formas patológicas contemporâneas: ao mesmo tempo a neurose e a esquizofrênia...mas será que não poderia também ser apontada a depressão como patologia do século XXI? Acho interessantísimo ler seus textos que são interpelados por Adorno, Lacan, Deleuze e Marx...

ruído binário disse...

ótimo conteúdo.