12 dezembro, 2020

Desexílios de Benedetti: o modesto retorno à vida imanente

Desexílios de Benedetti: o modesto retorno à vida imanente 

Cláudio R. Duarte 
    
    Não é no horizonte abstrato, puramente ideal ou teórico, que está a vida que mal ou bem tem de ser vivida e que resta ser vivida. Sem conformismo, sem resignação. Apenas com a confiança de que todo resto é também ideologia: autojustificação da derrota sob a capa imaginária de um heroísmo isolado impossível ou de mundos violentos a serem instituídos pelo puro desespero. Resta voltar à imanência e nela procurar as vias de uma radicalidade possível. 
    A radicalidade de Mario Benedetti está na vida "ideal" procurada na imanência da experiência social. Uma poética do "desexílio" - para usar um de seus termos de autointerpretação prediletos (Andamios. [1996] Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 2000). Ir para o exílio, mas retornar dialeticamente a partir dele: em busca da destruição de um certo imaginário construído pelo mundo capitalista e as formas estruturais de suas patologias narcísicas. Não o reencontro de uma origem intacta e autêntica, mas de um país desencantado e desmemoriado ("-Democracia es amnésia, ¿no lo sabias?", op. cit., p.18), que precisa ser reconstituído, andaime por andaime. Uma via aberta por Juan Carlos Onetti nos anos 30 e 40, em cujas personagens degradadas a vida ruim não é meramente confirmada, mas amargada, arrancada de sua naturalidade e desmentida, criando mundos de ficção que lidam precisamente com os elementos arruinados, imperfeitos, degradados, sem eliminar seu traço contraditório, de lucidez no desengano. Num breve comentário, Onetti saudava a poesia de Benedetti de 1956 (Poemas de la Oficina) nestes termos: "poesía inspirada en el sufrimiento sin melodrama de los pobres hombres, inmensa mayoría, que tienen que soportar un patrón, supervivir con un sueldo miserable y renunciar diariamente al futuro". Por um gesto diferente, Benedetti retorna do exílio (político) ao mundo real, pela poesia, pela prosa concisa mas não menos artisticamente traçada. Noutros termos, ele busca a utopia na imanência dessa vida socialmente mediada, nas "imagens" que nessa vida terrena desolada ainda respiram, crescem, se desenvolvem e enfraquecem, e que mesmo num "universo em ruínas" nos permitem lidar com o real transitório: tocar, cheirar, tratar, viver afinal a vida possível-impossível. Como na figura metafórica - mas também real - dessa mulher distante mas vital, plena e feliz, com que nos deparamos em seu belo poema chamado Utopías:

Utopías

Mário Benedetti

Cómo voy a creer / dijo el fulano
que el mundo se quedó sin utopías

cómo voy a creer / dijo el fulano
que el universo es una ruina
aunque lo sea
o que la muerte es el silencio
aunque lo sea

cómo voy a creer
que el horizonte es la frontera
que el mar es nadie
que la noche es nada

cómo voy a creer / dijo el fulano
que tu cuerpo / mengana
no es algo más de lo que palpo
o que tu amor

ese remoto amor que me destinas
no es el desnudo de tus ojos
la parsimonia de tus manos

cómo voy a creer / mengana austral
que sos tan sólo lo que miro
acaricio o penetro
cómo voy a creer / dijo el fulano
que la utopía ya no existe
si vos  / mengana dulce
osada / eterna
si vos / sos mi utopía.

(in: Benedetti, M. Antología poética. Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 2000, p. 227-8.)

Tradução de C.d.A.:

Utopias

Como vou crer / disse o fulano
que o mundo ficou sem utopias

como vou crer / disse o fulano
que o universo é uma ruína
ainda que o seja
ou que a morte é o silêncio
ainda que o seja

como vou crer
que o horizonte é a fronteira
que o mar é ninguém
que a noite é nada

como vou crer / disse o fulano
que teu corpo / sicrana
não é algo mais do que apalpo
ou que teu amor

esse remoto amor que me destinas
não é o despir-se de teus olhos
a moderação de tuas mãos

como vou crer / sicrana austral
que és tão somente o que vejo
acaricio ou penetro
como vou crer / disse o fulano
que a utopia já não existe
se tu / sicrana doce
ousada/ eterna
se tu / és minha utopia

(Versão: C. de A.  in: https://bancodapoesia.org/tag/mario-benedetti/).

    Divisar os elementos utópicos no horizonte futuro, liquidar os obstáculos mentalmente (a noite, o mar, a morte), criar mundos imaginários etc. nada disso impede de viver o sonho remoto no presente, nesse amor que ensina a amar e abrir o caminho para se viver o seu núcleo real na imanência.  

    Nos contos de La muerte y otras sorpresas (Buenos Aires: Siglo XXI, 1968), essa temática do retorno à vida comum para nela existir e tocar a vida possível, é um traço recorrente. Se a imediatidade representa a reificação, a mediação pode ser a reificação duplicada, fantasmagórica, enganosa. Só encarando de frente a vida reificada podemos encontrar uma saída. 

    Em "El Otro Yo", encontramos isso e algo mais: a ironização recíproca do cotidiano pelo imaginário e do imaginário pelo cotidiano.  Seguem o original e a tradução que preparamos (op. cit., p. 80-81):

El Otro Yo 

Se trataba de un muchacho corriente: en los pantalones se le formaban rodilleras, leía historietas, hacía ruido cuando comía, se metía los dedos a la nariz, roncaba en la siesta, se llamaba Armando Corriente en todo menos en una cosa: tenía Otro Yo. 
El Otro Yo usaba cierta poesía en la mirada, se enamoraba de las actrices, mentía cautelosamente, se emocionaba en los atardeceres. Al muchacho le preocupaba mucho su Otro Yo y le hacía sentirse incómodo frente a sus amigos. Por otra parte el Otro Yo era melancólico, y debido a ello, Armando no podía ser tan vulgar como era su deseo. 
Una tarde Armando llegó cansado del trabajo, se quitó los zapatos, movió lentamente los dedos de los pies y encendió la radio. En la radio estaba Mozart, pero el muchacho se durmió. Cuando despertó el Otro Yo lloraba con desconsuelo. En el primer momento, el muchacho no supo qué hacer, pero después se rehizo e insultó concienzudamente al Otro Yo. Este no dijo nada, pero a la mañana siguiente se había suicidado. 
Al principio la muerte del Otro Yo fue un rudo golpe para el pobre Armando, pero enseguida pensó que ahora sí podría ser enteramente vulgar. Ese pensamiento lo reconfortó. 
Sólo llevaba cinco días de luto, cuando salió a la calle con el propósito de lucir su nueva y completa vulgaridad. Desde lejos vio que se acercaban sus amigos. Eso le lleno de felicidad e inmediatamente estalló en risotadas.
Sin embargo, cuando pasaron junto a él, ellos no notaron su presencia. Para peor de males, el muchacho alcanzó a escuchar que comentaban: «Pobre Armando. Y pensar que parecía tan fuerte y saludable».
El muchacho no tuvo más remedio que dejar de reír y, al mismo tiempo, sintió a la altura del esternón un ahogo que se parecía bastante a la nostalgia. Pero no pudo sentir auténtica melancolía, porque toda la melancolía se la había llevado el Otro Yo.

 

O Outro Eu

Ele era um rapaz comum e totalmente corrente: usava calças com joelheiras, lia quadrinhos, fazia barulho quando comia, cutucava o nariz com o dedo, roncava durante a siesta, se chamava Armando Corrente em tudo menos em uma coisa: tinha um Outro Eu.

O Outro Eu usava certa poesia no olhar, se apaixonava pelas atrizes, mentia cautelosamente, se emocionava com o entardecer. O rapaz se preocupava muito com seu Outro Eu e e isso o fazia sentir-se desconfortável na frente de seus amigos. Já o Outro Eu era melancólico e, por causa disso, Armando não podia ser tão vulgar quanto desejava.

Uma tarde Armando chegou cansado do trabalho, tirou os sapatos, moveu lentamente os dedos dos pés e ligou o rádio. Na rádio tocava Mozart, mas o rapaz adormeceu. Quando acordou, o Outro Eu chorava com desconsolo. No primeiro momento, o rapaz não soube o que fazer, mas depois se refez e conscientemente insultou o Outro Eu. Este não disse nada, mas na manhã seguinte havia se suicidado. 

No princípio, a morte do Outro Eu foi um duro golpe para o pobre Armando, mas depois pensou que agora sim poderia ser inteiramente vulgar. Esse pensamento o reconfortou.

Ele estava há apenas cinco dias de luto quando saiu pelas ruas com o propósito de exibir sua nova e completa vulgaridade. De longe viu que seus amigos se aproximavam. Isso o encheu de felicidade e o fez imediatamente explodir em risadas. No entanto, quando passaram por ele, não notaram sua presença. Para piorar, o rapaz pôde escutar o que comentavam: "Pobre Armando. E pensar que parecia tão forte, tão saudável".

O rapaz não teve outro remédio que parar de rir, e, ao mesmo tempo, sentiu na altura do peito um aperto que se parecia muito à nostalgia. Mas ele não pôde sentir autêntica melancolia, porque toda a melancolia tinha sido levada pelo Outro Eu.


    Desde o início, o que se tem aqui é a imediaticidade das coisas tal como aparecem no mundo reificado: as marcas de uma vida cercada por objetos banais, pela rotina do trabalho, pela mediação da cultura industrializada, a própria música erudita instrumentalizada pela rádio, o pesado silêncio e a vulgaridade das ações de um sujeito acorrentado a essa rotina imposta pelo capital. O "Outro Eu" - poético, melancólico, preso ao imaginário feito de refugos culturais -, contudo, não é menos reificado, convertendo-se em falsa ruptura, ideologia que se erige em defesa dessa reificação. 
   A concisão formal do texto, nesses quatro últimos parágrafos, torna-o algo extraordinário. Esse Outro Eu escapista enfim morre, se suicida, aparentemente de desgosto pela vida alienada de Armando. Mas a verdadeira recusa, através de um "insulto" consciente, parte de Armando Corrente. Trata-se de um rapaz comum que busca a vida na imanência e sai alegre à procura de um mundo compartilhado com amigos. O que resta é a descoberta de que esses outros estão atrelados à ideologia, à mentira do "Outro Eu" do amigo. Eles notam a sua presença, mas o ignoram. Armando fica com o sufoco no peito, algo como uma nostalgia. Mas já sem a melancolia. A velha estética do duplo é ironicamente conduzida ao depósito da memória.
    Para nós, a vida de Armando Corrente é nada mais que a vida corrente, talvez já além dessas correntes; a "vida" real a desejar está além do Eu e do Outro Eu, ambos falsos e sujeitos ao imaginário surrado, desbotado mascado como chiclete. É somente no eu real, sujeito ao trabalho e a suas coerções rotineiras, que pode ser construída a contraposição possível.



11 março, 2018

O ANCAP COMO ESPÍRITO ANIMAL EXEMPLAR DO CAPITALISMO BRASILEIRO ATUAL



O ANCAP COMO ESPÍRITO ANIMAL EXEMPLAR
DO CAPITALISMO BRASILEIRO ATUAL

Sempre estranhei a obsessão desses novíssimos liberteens e ancaps em cima da autopropriedade, o discurso repetitivo sobre "ferir as regras do PNA" (Princípio de Não-Agressão), em uma comunidade de gente solitária, apenas linkada pela web, sempre hiperagressiva, conservadora e reacionária, amante da mamãe ou da violência e dos temas de segurança privada, em grupos de maioria classe média, branca, racista e quase idêntica, seja aqui ou lá fora.


Não são figurações do narcisismo contemporâneo? Em Esaú e Jacó, de Machado de Assis, temos irmãos gêmeos e um par de famílias vivendo em um espaço segregado, narcísico e ordenado por definição, em que se produz o completo desaparecimento e aniquilação do outro. Um espaço de "amor materno", por um lado, que remete ao gozo sem travas da casa grande, e de rixas, trapaças e golpes rotinizados entre os dois irmãos, por outro.


Lá como cá, temos o narcisismo de um Eu sitiado e a construção de um território murado e administrado, de defesa contra todo tipo de alteridade.


ESTE belo texto de Serge Leclaire dão uma luz sobre esse tipo de sujeito:


"Que angústia! Vivemos num mundo em forma de mãe! A sala, sua casa ou seu apartamento podem ser um espaço matemo. Aliás, a empresa na qual você vive também é um sistema que pode servir de mãe, boa ou má.

A angústia do homem produz esse tipo de construção. Por que ele é obrigado a ver mãe em todos os lugares? É porque ele possui um órgão o qual tira um pouco de prazer e sua anatomia lhe dá um pênis, sempre grande, é claro! Por esse pedacinho de corpo que lhe dá um pouco de prazer, ele quer acreditar que detém a chave do paraíso. O paraíso é o outro mundo; ele tem a chave, ou pelo menos supõe que tem a chave do céu, como são Pedro. Para ele, é muito importante defender esse sonho.

Mas, ao mesmo tempo, ele tem consciência de que não detém a pedra filosofal. Não conhece a fórmula mágica com que sonham todos os sonhadores. Assim, é importante dar uma realidade ao seu sonho, defender o pouco prazer que pode ter.

A mãe é uma boa imagem de um paraíso ou de um inferno. Para manter esse sonho, tudo, o mundo inteiro se torna então representação desse pedacinho do céu, desse outro mundo que é o corpo materno. A representação da mãe se torna o grande ídolo, e a atividade do homem consiste em fabricar ídolos, seja um metrô ou um arranha-céu, um sistema filosófico bem fechado ou uma teoria pessoal. Sua grande atividade é construir espaços fechados. A mãe, nesse sonho, é verdadeiramente o modelo universal que ordena o dentro e o fora, que nos dá até uma representação das leis da gravitação, um centro, uma periferia; a gravidade natural do homem o faz voltar para esse espaço mítico, a fim de
manter o seu sonho. (...) Sobre esse mundo feito de lar, casa, propriedade, refúgio, o homem reina, como os reis do Ancien Régime, segundo o seu "bel prazer". O homem constrói assim um mundo de imagens que produz coisas extraordinárias". 
(Serge Leclaire, "Narcisismo" in: Escritos clínicos, [1996/8]; Zahar, 2001).

Adorno e a suposta ausência da dupla negação na Dialética Negativa


Cláudio R. Duarte


Adorno suspende a dupla negação, deixando o negativo sobrar como negativo. Será só isso? Certamente o negativo vem do alto, e em primeiro lugar, do Capital, da totalidade que se impõe sobre cada sujeito e sobre cada momento da sociedade que busca sobreviver à avalanche de coerções impostas pela reprodução das leis do sistema.

Mas por isso mesmo, Adorno jamais abandona a necessidade da Aufhebung - superação - completa do negativo. 
O antagonismo é a condição essencial desta sociedade: 

"Nos próprios indivíduos exprime-se o fato de o todo, incluindo aí os indivíduos, só se conservar por meio do antagonismo. Inumeráveis vezes, mesmo os homens conscientes e capazes de uma crítica do universal são impelidos por motivos incontornáveis da autoconservação a ações e atitudes que ajudam o universal a se afirmar de maneira cega, por mais que por sua consciência eles se oponham a ele. É só porque eles precisam tomar sobre si o que lhes é estranho para sobreviver que surge a aparência daquela reconciliação que a filosofia hegeliana, incorruptível em seu reconhecimento da preeminência do universal, transfigurou em ideia corrompendo-se. Aquilo que reluz como se estivesse acima dos antagonismos equivale ao enredamento universal. O universal cuida para que o particular submetido a ele não seja melhor do que ele mesmo. Esse é o cerne de toda identidade produzida até hoje.
Visualizar a preponderância do universal lesa psicologicamente o narcisismo de todos os indivíduos e da sociedade democraticamente organizada até um nível insuportável. A descoberta da ipseidade como não-existente, como uma ilusão, transformaria facilmente o desespero objetivo de todos em desespero subjetivo e lhes roubaria a crença que a sociedade individualista lhes inculca: a crença de que eles, os indivíduos, são o substancial." (Dialética negativa).

No impulso de nossa autoconservação temos de usar os meios sistêmicos de autoafirmação -- direito, trabalho, dinheiro, mercadoria -- dando a ideia para nós mesmos de que um particular pode sobreviver ao todo simplesmente contrapondo-se a ele, e assim podendo se reconciliar com o sistema de alienações.

Adorno não dá consolo: chama isso de mero narcisismo. Noutros termos, a afirmação individualista desesperada ou lutas sociais imanentes têm de reproduzir as relações de produção vigentes, reforçando a integração e as identidades --- mas com essas, face ao progresso das forças produtivas, também, o processo de sua possível desintegração.

A crítica do trabalho - mediação das mediações sempre implícita em tudo o que Adorno escreve - desponta então no horizonte:

"O princípio de realidade ao qual os homens espertos obedecem para sobreviver cativa-os como magia negra; eles são tanto menos capazes e estão tanto menos dispostos a se livrar do fardo porque o mágico dissimula esse peso para eles: eles tomam esse fardo pela vida. Em termos metapsicológicos, o discurso sobre regressão é pertinente. Tudo aquilo que se denomina hoje em dia comunicação, sem qualquer exceção, não é senão o barulho que não nos deixa escutar a mudez dos que estão encantados. As espontaneidades humanas individuais, e em uma larga medida também as supostamente oposicionais, são condenadas à pseudocriatividade; e, potencialmente, à debilidade. Os técnicos da lavagem cerebral e similares praticam de fora a tendência antropológico-imanente que, por sua parte, é com certeza extrinsecamente motivada. A norma histórico-natural da adaptação, uma norma com a qual mesmo Hegel concorda a partir da sabedoria de botequim segundo a qual é preciso quebrar a cara, é, exatamente como em seu caso, o esquema do espírito do mundo concebido como encanto. (...)"(ibid.)

E no trecho final vem a crítica que conecta trabalho, sujeito do trabalho e dominação social, e que pressupõe a dupla negação do universal e do particular existentes.


"O conceito de fim ao qual a razão se alça em virtude de uma autoconservação consequente teria de se emancipar do ídolo do espelho. O fim seria o que é diverso do meio, do sujeito. Isso, contudo, é obscurecido pela autoconservação; ela fixa os meios como fins que não se legitimam ante razão alguma. Quanto mais amplamente crescem as forças produtivas, tanto mais a perpetuação da vida concebida como seu próprio fim perde a sua obviedade. Degenerescência da natureza, essa finalidade própria se torna em si mesma questionável, enquanto nela amadurece a possibilidade de algo diverso. A vida prepara-se para se tornar o meio desse algo diverso, por mais indeterminado e desconhecido que ele possa ser. Sua organização heterônoma, porém, o inibe cada vez mais. Como a autoconservação foi desde sempre difícil e precária, as pulsões egóicas, seu instrumento, possuem uma força quase irresistível, mesmo depois que, por meio da técnica, a autoconservação se tornou virtualmente fácil, uma força maior do que as pulsões objetivas: foi isso que Freud, o especialista nessas pulsões, desconheceu. Supérfluo em vista do estado das forças produtivas, o esforço torna-se objetivamente irracional, e, por isso, o encanto torna-se metafísica realmente dominante." (Ibid.)




25 abril, 2016

Capítulos nacionais da Dialética do Iluminismo


1- 
Deu na Globo, deu na Veja, deu nos jornalões, deu na cúpula do PSDB:
- Zé de Abreu tendo espaço para defender-se e defender o PT.
- Bolsonaro sendo citicado por defender um torturador.
- Veja agora pedindo a cabeça de Cunha.

O que deu neles? Medo do que vem por aí. Eles estão percebendo que os setores de extrema direita estão crescendo demais e podem sair do controle. 

Vão logo, logo perder o controle sobre o que é razoável. Alimentaram o fascismo e agora rejeitam seus filhotes. Não querem levar a culpa pela escalada de violência entre civis que se seguirá.

Mas há algo mais. Isso pode minar, a médio e longo prazo, o projeto de uma sociedade liberal-conservadora e "democrática" de tipo americano ou europeu. 

O medo inclui também a perda da audiência em relação às novelas e à programação minimamente progressista (pautas populares, minorias étnicas, gays etc.), que tem nos concorrentes variantes em ascensão.

Um capítulo nacional da novela chamada "dialética do iluminismo": a extrema racionalidade  da indústria cultural se inverte nas trevas do autoritarismo protofascista.

 **

2- 

Mudança de paradigmas na CASA VERDE 

A campanha de desconstrução de BOZONAGRO é ambígua e tem dois resultados ainda incompletos: de um lado, tem despertado ainda mais fantasmas de direita, divulgando o nome desse ser bovino, e capturando ainda mais audiência e eleitores. Ele capta e canaliza o ódio e o ressentimento do "Zé Ninguém" protofascista.

Por outro lado, ela vai revelando o fundo protofascista da massa neoliberalizada, ou seja, o fundo inconsciente do sujeito de "apartheid neoliberal", machista, branco e eurocêntrico. Isso pode ter um potencial efeito de despertar para uma certa classe média que ainda preza os valores como paz, harmonia civilizacional, tolerância e democracia. 

Eles envergonham os liberais-democratas e isto é muito bom. Talvez eles percebam, nesses zumbis de ultradireita que perderam totalmente a capacidade de pensar junto a Olasno e Bozonagro, qual é o limite do seu antipetismo ferrenho, notando que, se bobear, eles podem se transformar em um deles.


Bob Klausen 

( 24-04-16)

23 abril, 2016

GOLPE À VISTA (E TAMBÉM A CRÉDITO)

GOLPE À VISTA (E TAMBÉM A CRÉDITO)

O que vem por aí é o golpe branco, suave, midiático-parlamentar, cheio de moral seletiva e amnésia de classe fabricada por manchetes dos jornais, que hoje substituíram totalmente a leitura e a reflexão crítica. O golpe baixo dos que não toleram as classes populares na política e vieram preparando sua vingança a quase uma década.



 
O que vem por aí, depois disso, é a legitimação midiática das medidas neoliberais que pensávamos que estariam destruídas depois da crise de 2008. Nas discussões nas redes sociais, em caixas de jornais, é isto: além do preconceito de classe, do moralismo seletivo e do ódio monumental devotado à esquerda, querem ou aceitam encolher a política e o estado a um mínimo em favor das forças reificadas do mercado. Aceitam privatizações e sucateamento geral do serviço público. Não querem nada mais que dólar barato e menos impostos. 

Individualismo liberal de massas. Eis o monstrengo que se criou às nossas costas, no seio dessas novas classes médias extremamente consumistas e politicamente semianalfabetas. Aceitam o governo Temer aparentemente sem nenhuma noção do desastre que virá para os trabalhadores. O espírito empreendedor se generalizou, e ninguém mais se vê como trabalhador espoliado e dominado. É da falência da consciência de classe, que chegou a se esboçar em certo momento nos anos 60, 70 e 80, é da amnésia feita pela indústria da notícia, que impede toda acumulação de experiência histórica, que o golpe tira seu combustível. 

Ao passo que a periferia silencia, descrente de salvadores à esquerda ou direita, pois tem de ganhar a vida agravada pelo governo que também a traiu. 

Contudo, o golpe também será a crédito. Crédito com juros estratosféricos, como condição de reprodução dos serviços básicos e alimentação do capital financeiro hegemônico. Crédito - PURA CRENÇA - na estabilidade de um governo que vai plantar o caos social... para colher a guerra de classes a médio prazo.

                                                                                                         Bob Klausen (março de 2016)

A máquina de omissão e amnésia social


Sobre a lista da Odebrecht e a operação abafa que provavelmente se seguirá:

"Os meios de comunicação industriais se beneficiam de uma singular depravação das leis democráticas... nossa legislação lhes concede o poder exorbitante de mentir por omissão, censurando e vetando aquelas notícias que não lhes convêm ou possam prejudicar os seus interesses. (...) o verdadeiro problema da imprensa e da televisão não é mais tanto o que elas são capazes de mostrar, mas o que ainda podem apagar, esconder, e que constituiu até aqui o essencial de sua força".
(PAUL VIRILIO, A arte do motor, 1993).

 Não é delírio do Virilio: o golpe midiático-parlamentar de 2016 jamais seria possível sem doses cavalares de omissão e amnésia social.

Bob Klausen (26-03-16)

A tecnologia do golpeachment

A tecnologia do golpeachment é um novo meio de golpe: um golpe suave, golpe branco, golpe parlamentar-midiático, ou golpe hondurenho ou paraguaio. 


Para quem não entendeu ainda a questão da defesa da legalidade democrática: depois da derrubada da presidente Dilma, nestas condições, nenhum governo de esquerda se sustentará na presidência por muito tempo. O caminho aberto pela força hoje irá inaugurar uma nova tecnologia de manutenção do poder oligárquico, o modelo de manobras Cunha, somado ao golpismo midiático tradicional, que dá a cobertura necessária para iludir aquela fração zumbi do eleitorado conservador.

A outra manobra, para breve, se chama parlamentarismo + voto distrital.

Acabou a era dos golpes militares, com tiro, sangue e torturas. A tecnologia agora é mais inteligente, menos traumática e provavelmente mais barata. Tudo dentro da nova "legalidade": interpretação das leis ao arrepio dos fatos e das provas concretas. 

Basta uma interpretação distorcida da lei de responsabilidade fiscal, uma campanha midiática sistemática durante literalmente 24 horas, um congresso e um judiciário conservadores e uma massa de manobra para ocupar as ruas dando aquela falsa noção de hegemonia. Se precisar compre parte do congresso e até institutos de pesquisas. Se bobear obtenha ajuda do Tio Sam. 

Sobre o FORA TODOS!





Pois é, não pode ser esquerda dócil, comportada e domesticada linha auxiliar do PT. Tem que ser a esquerda que contribui indiretamente para a aprovação da PEC da terceirização, a PEC da teocracia, o fim dos direitos trabalhistas, a entrega do pré-Sal aos estrangeiros,a nova Alca e outras atrocidades que serão certas nessa avalanche conservadora que vivemos num governo Temer ou mesmo num governo PSDB. Em outras palavras: tem que ser linha auxiliar sim, mas da direita, porque do PT não pode, menos por coerência com a teoria critica, que manda sempre pensar na crítica imanente do que por idealismo e voluntarismo prático.
Com a vantagem que sendo linha auxiliar da direita você ganha o bônus de poder posar de radical, puro e revolucionário de padoca. Na boa, o timing político e estratégico desse povo me dá uma enorme tristeza, mais que a da continuação de um governo Dilma, que sabemos que não tem mais força alguma para barrar a avalanche e cortar os elos podres com a direitona. Mesmo assim, dá pra barrar alguma coisa antes do impacto inevitável. 

Em suma, a alternativa efetiva nessa avalanche ultraconservadora é... O Zé Maria? A Luciana? O timing político e estratégico dessa gente criada em centro acadêmico é uma piada.

(Misturando ideias minhas e de Eduardo Fontoura)

Depois do Impeachment - não será a festa da democracia.


Depois do Impeachment - não será a festa da democracia. 
                                                                                                                                 Bob Klausen

Amanhã, talvez, será o começo do reaparecimento da luta de classes no país. E de maneira contra-intuitiva, acirrada não pelo lulismo, mas pelo campo da direita hidrofóbica e golpista. Luta que será feita parcialmente pelos canais institucionais, outra parte nas ruas e espaços sociais em geral.

Teremos então o ressurgimento daquilo que a democracia burguesa e seus governos de coalizão sempre esconderam ou bloquearam: o antagonismo social, envolvendo os estratos de classe que se polarizaram em torno do reformismo fraco do PT ou das forças conservadoras e reacionárias. Dentre estes últimos, nas grandes cidades, as camadas médias ultra-individualistas e com interesses claramente elitistas do sujeito neoliberal. ("A classe média não quer direitos, ela quer privilégios, custe os direitos de quem custar." Milton Santos)

Não há o que temer, no entanto. Essa cisão será essencial para escancarar os interesses em jogo. Caso perca, a esquerda será sacudida pelo golpe, e terá de remobilizar a sociedade e reinventar saídas. Não será a ordem que veremos restituída, mas a abertura e o remexer das feridas do esbulho diário que sofremos. Se o governo ganhar, ele terá de se reinventar totalmente, ou convocar uma nova eleição, aumentando a tensão, a necessidade do esclarecimento dos projetos em luta, escancarando o antagonismo de classes. No final desse túnel: um novo golpe militar? Não eliminaria essa hipótese, pois a crise política tem por trás uma economia mundial em colapso e um tecido social totalmente esgarçado. Não há mais como fechar essa ferida depois da ascensão de uma certa classe trabalhadora, que conquistou direitos mínimos nos últimos anos. Eis a dialética histórica que a direita não conta, mas que é real. Essa dialética só será paralisada pela intervenção da força de um golpe militar? ou de um movimento de superação da política institucional por parte da esquerda: com mobilizações em massa, plebiscitos populares, greves gerais etc.?

Setores da direita já falam em sacrifícios e repressão aos movimentos sociais de base. De que não há reformas sem ruptura das legalidades instituídas (CLT, constituição de 88 etc.). Por outro lado, os setores populares ou simpáticos a eles perceberam que não haverá paz. Para reforçar esse argumento, uma impressão minha das redes. O projeto neoliberal da direita ficou claro já para certos estratos da classe média, e vai ficar claro até mesmo para os zumbis antidilma, que vivem sob a mais pura ideologia midiática, assim que os decretos-lei a la Macri começarem a quebrar o feitiço. Uma parte da classe média tenho certeza que é incurável e tirará a fantasia democrática fazendo aparecer os chifres do neofascismo. Outra parte entenderá que o mundo do capital do jeito que foi até aqui está chegando ao fim e que eles não têm como defender o capital. Nesse caso, é toda a superestrutura ideológica que virá de encontro com a base real reduzida desses estratos, expondo a céu aberto a espoliação e a dominação social que sofre a maioria.

Torturadores de 64 x Resistência Armada

Publico a seguir dois textos instrutivos de nossos companheiros a fim de  combater falácias fascistas de bolsominions e olavéticos paranoicos.



Da diferença entre resistência armada e Terrorismo de Estado
por Alexandre Vasilenskas

- As organizações de resistência armada contra a ditadura empresarial-militar de 1964 não torturaram ninguém. Não há acusações nesse sentido.
- Esses resistentes enfrentaram um Estado enormemente mais poderoso e ilegítimo (fruto de um golpe de Estado). Quando mataram o fizeram em situação de batalha ou correlatos.
- Tortura é crime internacional. Resistência armada contra governos tirânicos não.
- Sim. Eram comunistas. Da mesma forma que a resistência francesa ou os partisans italianos. Nesses lugares são considerados heróis e ninguém ousa (sob ameaça de prisão) compará-los a Gestapo.
- Como lembrou o amigo Gustavo Castañon o direito a resistência armada contra governos ilegítimos não surge com Marx: está presente em Tomás de Aquino e Locke (um dos fundadores do liberalismo).






SOBRE A EQUIPARAÇÃO ENTRE UM TORTURADOR E UM GUERRILHEIRO.

    Alexandre Avelar 

Entre os defensores do Bolsonaro, pululou a defesa da menção ao Cel. Brilhante Ustra, feita durante a votação do impeachment. Se outros parlamentares citaram "terroristas", como Marighella, Lamarca, entre outros, então Bolsonaro poderia citar o torturador e homenageá-lo. Este "argumento" nada tem de novo, ressalte-se. É a antiga cantilena de que "o país estava em guerra", "todos os lados usavam as armas que tinham" e por aí vai. Resumindo, a velha tentativa, dos defensores do regime militar, de igualar os lados. Vou tentar aqui explicar porque essa tese não se sustenta para qualquer um que deseje compreender razoavelmente o que se passou. Somente simpáticos da ditadura ou do deputado (o que, no final das contas, quase sempre dá no mesmo) podem aceitar isso, ao sacrifício, é claro, do mínimo de reflexão mais elaborada. Mínimo mesmo. Apesar do estilo "textão", tentei ser o mais direto possível. Acho a intervenção necessária e o espaço das redes sociais tem se mostrado potencialmente produtivo. Os historiadores precisam ser cada vez mais atentos a ele.
São dois os pontos de partida. Pontos cristalinos e que parecem, em meio a tanto ódio e escalada autoritária, esquecidos:


1) Qualquer setor da sociedade civil, por mais organizado que possa ser, não se equipara à força da autoridade estatal. O estado, lembremos, controla os principais instrumentos de repressão. Sob este ponto de vista, qualquer tentativa de igualar a força militar do estado e de grupos civis não se sustenta.
2) O regime implantado em 64 nasceu de um golpe que destituiu um governo legitimamente eleito. Um golpe militar que ancorava-se, entre tantas razões, na defesa da nação brasileira contra o perigo comunista. Fomos salvos da ameaça vermelha, disseram os militares, ao menos naquele momento. Mas como a utopia autoritária precisava recriar a todo momento o inimigo, a ditadura foi se consolidando a partir de sucessivos instrumentos de violação institucional. É interessante como os novos donos do poder jamais conseguiram apresentar qualquer evidência sustentável de que Goulart pretendia dar um golpe comunista em 64. João Goulart caiu sem resistência. Os comunistas não apareceram no encontro marcado para o golpe. Por outro lado, a preparação para o golpe militar da direita, todas as suas articulações, inclusive no exterior, são bem documentadas e conhecidas. Resumindo: o regime militar nasce sob o signo da ilegitimidade.

A partir daí dá para colocar na mesa os outros argumentos.
- Há relação, sim, entre os grupos de esquerda e o AI-5. O AI-5 decretou o fim das liberdades civis no Brasil. Para muitos indivíduos, o canal possível de contestação passou a ser o campo armado. A maior parte destes grupos surge no pós-68.
- Assim mesmo, as esquerdas armadas não eram os únicos alvos dos militares. Faz parte da estratégia de igualar os lados produz uma simplificação da realidade, em que dois polos se antagonizam. De um lado os militares e defensores da ordem e, do outro, a temida guerrilha armada e comunista. Ora, muitas pessoas sem qualquer envolvimento com a guerrilha foram presas, interrogadas coercitivamente, torturadas e mortas. Isso sem falar nos exílios, nas perseguições nos postos de trabalho e tudo o mais. A luta armada nunca foi o alvo exclusivo dos militares.
- Diante de um governo ilegítimo, a resistência dos cidadãos, mesmo armada, é legitima. Não é preciso ler o manual do Marighella para essa constatação. Ela está lá nos liberais. Ela está em John Locke. Não é invenção de comunista.
- Terrorista é quem usa a população civil como alvo para a realização de suas aspirações políticas. Os grupos de esquerda armada, neste sentido e com todas as justas críticas que possam receber, não eram terroristas. Seus alvos eram os agentes do estado. Estes grupos não perseguiam deliberadamente a população civil. Não há acusações de tortura a civis praticadas por grupos da esquerda armada.
- De fato, entre as inspirações ideológicas destes grupos estava a revolução socialista. Daí achar que o comunismo era uma possibilidade concreta, é um salto gigantesco. Estes grupos armados eram fragmentados, pouco integrados e com uma condição militar tremendamente inferior. O que entendiam por democracia e revolução recriava-se a todo momento, no calor das lutas. E, lembremos, eram combatentes contra um regime ilegítimo. Alguém questionou as preferências ideológicas dos que combateram o nazismo? Estamos falando de muitos que abandonaram o conforto da vida de classe média universitária para ingressarem em uma luta inglória e com reduzidíssimas chances de vitória. Estas pessoas, muitas delas mortas na luta, merecem respeito.
- Os integrantes da guerrilha e tantos outros que não fizeram a opção armada foram sim punidos e responsabilizados pelo regime militar. Esqueceram-se das prisões, condenações, exílios e assassinatos? Existe um único lado que nunca foi responsabilizado legalmente pelo que fez. E este é o lado dos torturadores, defendidos pelo Bolsonaro. Estes foram os grandes vitoriosos da Anistia, cuja vigência até hoje é um dos grandes entraves à consolidação da democracia. E também é falsa a afirmação de que a Anistia beneficiou os "terroristas". Muitos continuaram presos por terem cometidos os tais crimes de sangue. Ustra morreu sem ser responsabilizado pela Justiça.
- A autocrítica já foi feita há tempos pelos próprios integrantes da esquerda armada. Eu escreveria um textão do tamanho deste com minhas críticas a estes grupos, baseadas apenas no que li. Quando veremos a autocrítica dos torturadores e dos seus defensores?

Enfim, equiparar torturador e vítima nunca será um exercício intelectual honesto. E, ao contrário de muitos colegas, não acho que esta desonestidade seja fruto necessariamente da ignorância histórica. Pode ser, em alguns casos. Acho que nunca falamos tanto do passado. Em outros casos, pode ser simplesmente uma opção pelo fascismo e pela falta de compromisso com a humanidade.

Da crítica da corrupção à crítica do fetiche do dinheiro

Deu no Facebook: 

Camela Maria
"Se tá achando ruim a corrupção, imagina quando descobrir a mais valia"


Nestas horas de indignação monstro contra a corrupção você entende qual era o lugar da crítica da expropriação da mais valia num contexto de luta ou revolução popular. 

Ao mesmo tempo, você vê a limitação dessa crítica que deixa a forma do valor sem questionamento fundamental. Ocorre que na dialética as duas críticas são determinações reflexivas e uma conduz à outra, já que questionar a exploração é também questionar a forma fetiche pela qual esta transcorre, i.e., de maneira reificada e aparentemente natural, independente de certas relações sociais de produçao e propriedade. 

Se houvesse um avanço monumental da luta popular movida pelo controle do excedente, a forma de fazer política associada ao dinheiro poderia tornar-se finalmente transparente e, por alguns momentos, a sociedade perceberia o poder alienante do dinheiro em si, e não só o poder dos quem tem dinheiro na política.


Bob Klausen

GOLPEACHMENT: A DESTRUIÇÃO DO OUTRO

GOLPEACHMENT: A DESTRUIÇÃO DO OUTRO

                                                                                                                                 por Bob Klausen 

Golpeachment concluído! Resumo da ópera: não foi exatamente por crimes de responsabilidade, pedaladas, crise econômica e política, corrupção, incompetência na gestão, ingovernabilidade. Isso tudo são detalhes de um todo.

Antes de mais nada, o golpe foi arquitetado por uma oposição conservadora que trava uma luta de morte contra as forças de esquerda brasileira há mais de um século.

Do antipetismo ao anticomunismo ferrenho das classes médias e da elite, passando pelos 10% do eleitorado abertamente protofascista que apoia Bolsonaro (ou melhor: Bozonagro) e Cunha, o denominador comum aqui é o desreconhecimento do outro, ou a vontade de eliminação de qualquer representação das classes populares da política. Um corte que é estrutural. Pouco importa se o PT cumpre ou não essa função de representação das camadas populares. E fez o que fez por vários motivos, nem todos por covardia ou falta de estratégia. Quem viu de perto a Câmara dos deputados em ação entendeu subitamente o que há muito se sabia: eis o Congresso do Boi, da Bala e da Bíblia, um antro de reaças e corruptos sem nenhuma condição de representar uma nação complexa, diversificada e contraditória.

Em suma, a luta é de morte: o trabalhador pobre no Brasil deve obedecer em silêncio e de preferência se tornar invisível. Deve ser expulso da política seja direta ou indiretamente, por meio de seus representantes, que só agem quando coagidos ou deslegitimados publicamente. Basta lembrar de Reinaldo de Azevedo em seus momentos de sinceridade.












A destruição simbólica é completada pela imaginária. A política, totalmente espetacularizada, deve ser prerrogativa absoluta das elites, das oligarquias modernas e/ou tradicionais. Basta ver o tratamento midiático dado ao plano avassalador que vem aí, a PONTE PARA O RETROCESSO, e mesmo à linda e recatada família Temer, para entender do que se trata: a destruição do outro (e do grande Outro incluso), a instituição de uma espécie de dominação sem contraste. Nas periferias, finalmente, o extermínio dos sem-valor, do homo sacer, se materializa como a realidade nua do estado de exceção.

03 dezembro, 2015

EPÍLOGO - o fim de uma novela política insossa

EPÍLOGO
                                                                                      por Bob Klausen

O Brasil virou um pôquer numa novela mexicana ou num "big brother".

Cunha blefando que tem poder dentro da casa, congresso conservador todinho comprado almejando apenas desmoralizar ainda mais o PT e daqui a pouco chantageando o governo para obter mais concessões, e o governo Dilma fingindo-se "de esquerda" colocando Levy e Tombini na pilotagem recessiva, enquanto o ditadorzinho juiz-milionário do Paraná faz o serviço seletivo da difamação e empurra ainda mais o governo para as cordas ("governabilidade") e a economia para o precipício.


Tudo filmado e arquitetado por uma mídia conservadora até o último fio de cabelo, mas a tal ponto que conserva o país na lama e o empurra ainda mais para trás, arrastando o enredo insosso da novela que já deveria ter terminado, interessada em vender manchetes-bomba para não acabar de falir, enquanto sabe que o final da novela será necessariamente um governo eleito que terá de permanecer (seja com Dilma ou com Temer). Com Temer, carta aberta para terminar de destruir direitos conquistados. No enredo da peça apenas isso: situações-limite, provas de resistência para ver quem é mais corrupto e mais calhorda, muita difamação moral, alguns barracos armados com boatos sobre o filho do amigo, e no final um país à beira da guerra civil, a se desenrolar nos capítulos finais, seja pela renúncia forçada seja pelo impeachment arrancado (que só sai se o país melhorar um pouco e a audiência demonstrar que não foi tão afetada assim pela mentalidade golpista e autoritária, enfim, que não gostou do programa reacionário e até vai votar na esquerda que restou em 2016 e em 2018).

Quem apoiar o golpe apoia esse novelão mexicano, esse big brother, esse pôquer no teatrinho de farsantes. Quem quiser o seu fim lutará para reconstruir a esquerda para fora e mais além do PT, como se vem ensaindo há duas décadas já. Chegou a hora de escolher e de fazer.

Depois de terminar essa peça, demissão: acabou o papel de quem se fingia de esquerda.

25 outubro, 2015

As reações ao ENEM 2015: revelações de um certo caráter autoritário brasileiro

As reações ao ENEM 2015: revelações de um certo caráter autoritário brasileiro

Como não ficar chocado com as reações da direita sobre o ENEM-2015? Com InFeliciano e Bolsomico como capitães gerais da reação.

Isso vai desde a gente blasé gargalhando dos atrasados, comemorando com cerveja em punho na frente das escolas, até aqueles que não toleram nem mesmo pensar nas violências e desigualdades do mundo contemporâneo, ao contrário, defendendo-as junto ao sistema que as enquadra. Fontes de esquerda? Ora, primeiro exigiu-se interpretação de texto, ou seja, objetividade, imparcialidade e respeito pela autonomia do pensamento alheio. Em segundo lugar, o que é Tomás de Aquino, Hume, Nietzsche ou Weber na mesma prova que teve Beauvoir, Harvey, M. Santos, Sérgio Buarque e Zizek?

(E não, não há nada de "marxismo cultural" nisso, já que ataca problemas concretos, que ajudam a fundar relações sociais no país - ao contrário de certo lukácsianismo tosco que também li na internet, que vê na cultura mera superestrutura de fenômenos).

De repente se tornou banal ostentar ódio, burrice, machismo enrustido ou aberto e muito, muito cinismo. Mas isso tem definitivamente um caráter de classe e de nacionalidade.

É um surto geral de desrecalque de ódio, agressão e de pulsões arcaicas -- que não vem da elite, certamente, mas de uma certa classe média idiotizada, insegura, mal colocada no mercado, em crise, super tradicional e católica e claramente ressentida com o discurso da igualdade para todos, independente da origem social.

Por fim, parece haver um corte nacional: um fundo brasileiro, de origem colonial-escravista, e aqui para ser breve: o de uma cultura da vingança, a de um povo sádico, que adora brutalizar o outro e não suporta olhar a realidade de um ponto de vista estranho a si mesmo. Duvido que esse caráter autoritário aconteceria da mesma forma em outros países.

Mas nem tudo está perdido. Detalhe dialético da matéria: a grande maioria, principalmente as mulheres, ridicularizou os machistinhas de plantão, incluindo os capitães do reacionarismo nacional. Porque quando a estupidez se torna escandalosa ela também encontra seus limites.

Bob Klausen


04 setembro, 2015

As máscaras do discurso conservador brasileiro



Depois de anos acompanhando debates virtuais nas redes sociais, uma coisa fica cada vez mais clara, apesar de se tornar cada vez mais naturalizada e por isso mesmo opaca, não-dita, sem expressão.


É muito impactante ver o entendimento de economia e política de conservadores brasileiros nas redes. Isso vem de muito longe - e é claro que saiu às ruas em 64 e retorna a elas nesses últimos tempos. Mostra bem o nível da educação geral que o país consolidou, seja no setor público, seja no setor privado, principalmente se levarmos em conta o embuste de cursos que são um pouco de tudo, menos universitários.


Por um lado, temos os eternos comentários moralistas seletivos, a paixão securitária, o comentário calhorda, machista ou raivoso sobre qualquer coisa que saia de seus costumes e de sua esfera de pensamento moral. Daí o apoio maciço à polícia mesmo quando da evidência das maiores barbaridades. Uma tolerância canina para com os crimes da elite ou dos poderosos em geral, menos da elite política (hoje sinônimo de "petismo" e "comunismo") - mas defesa total de milionários de todo tipo (artistas, empresários, religiosos ou simplesmente gente da alta). Sua paixão de consumo seria pertencer a um mundo "liberal" de brancos, ricos e "belos", com o mínimo de impostos, e com o menor governo possível (reduzido à polícia) -- coisa que aprenderam nos últimos tempos a admirar em suas leituras de Veja, em suas idas e vindas por Miami ou nos livros de história de Leandro Narloch ou Olavo de Carvalho. Para isso invocam Jesus, a família cristã, a Veja ou a mão invisível do mercado e o utópico "trabalho em equipe". A moral do trabalho é o seu norte, embora não tenham muito o trabalho de pensar em nada a sério. No fundo, estão interessados em fazer seu primeiro milhão e que os outros se explodam.

Mas assim que o governo começa a cortar gastos, programas sociais ou serviços essenciais e assim mostrar-se frágil para manter o Capital funcionando... eles são os primeiros a invocar que isso não pode acontecer e que a culpa de tudo é do governo "comunista". O conceito de capital e capitalismo simplesmente não existem em seu vocabulário. Só existe "o governo" malvadão. Mas se o governo corta ou reduz seus gastos e vai por isso mesmo gerando o caos para a classe trabalhadora -- que eles mesmos são mas não podem e não querem admitir que são, preferindo seu lugar de cães de guarda do sistema que os escraviza, mas que também os "liberta" imaginariamente segundo os ideólogos da ralé subintelectual -- ficamos sem saber o que poderia significar uma utopia "neoliberal" tal qual tais setores defendem.


Em síntese: no Brasil, conservadores são liberais apenas em discurso. Conservam apenas a máscara de um desejo de autoconservação na selva da concorrência. Quanto mais a crise aperta, mais esse discurso se afirma como última ratio.

Uma mentalidade em que se mistura religião, familismo e ultra-individualismo de tipo brasileiro, de origem colonial-patriarcal-clientelista. Posição ideológica clássica, principalmente de setores médios, confusos por sua posição social objetiva no sistema (nem proletariado, nem elite), mas seduzidos pelo poder do dinheiro e dos privilégios.


Bob Klausen