28 setembro, 2014

NEODESENVOLVIMENTISMO COMO CATÁSTROFE

Neodesenvolvimentismo como catástrofe 


Cláudio R. Duarte



O sistema capitalista mundial está em profunda crise. Mais do que isso, creio que devemos trabalhar com a hipótese marxiana fundamental, retomada por grupos alemães de crítica do valor (Krisis e Exit), de que esta não se trata mais de uma crise passageira, mas de uma crise estrutural, uma crise radical, que mais cedo ou mais tarde, muito provavelmente nas próximas décadas, levará ao colapso do sistema mundial. Sem dúvida, a sociedade de acumulação “pacificada” dos assim chamados “30 anos gloriosos” chegou ao fim. O Welfare State, a estrutura que havia sido montada no centro sob o guarda chuva nuclear do Warfare State e da mobilização total fordista (Marcuse), vai sendo desmanchado. O consenso de classes construído pelo keynesianismo de guerra chegou ao seu limite no final dos anos 70, mediante a hegemonia do neoliberalismo, da flexibilização do trabalho, da desregulamentação do mercado financeiro e do fim do socialismo de caserna. Isso levou a crises sucessivas nos anos 80 e 90 (na periferia do capitalismo: Brasil, México, Rússia, Leste europeu), e atingiu o seu ápice na crise de 2008 e 2010.


-Crise econômica e financeira: na base do processo vigente, temos a desvalorização do valor. A crise do fundamento social moderno, a crise do dinheiro, a crise do trabalho abstrato. A 3ª revolução industrial desvalorizou o trabalho de maneira radical e já só pode descartar o trabalho de uma imensa massa de trabalho. O trabalho se complexificou, se virtualizou, passa por cadeias de serviços imateriais, mas por isso mesmo já não pode ser um trabalho produtivo no sentido preciso de que seus custos de produção e reprodução explodem e só podem ser resgatados por mais incorporação de trabalho, mais produção e ampliação de mercados, o que exigiria longos períodos de tempo, tudo isso numa economia que se moderniza e se tecnifica fortemente e portanto tende a economizar trabalho vivo. Não há massa salarial nem mercado consumidor efetivo para realizar essa gigantesca avalanche de mercadorias, exigindo por um lado imensas quantidades de capital fixo (infraestrutura) para sua produção e enorme crédito para continuar expandindo a produção e o consumo. Todos estão endividados: famílias, empresas e países, como os EUA, o Japão, a União Europeia, a China e todos os "emergentes". 


Assim, a acumulação real de mais-valia tende a se reduzir ao mínimo necessário para manter o sistema crível, concebível e aparentemente rentável. Por um lado, o sistema funciona à base de crédito público e de especulação (financeira e rentista), por outro, da conquista de mais territórios de mercantilização da força de trabalho de custos miseráveis na periferia, realizando-se a articulação da extração de mais-valia absoluta e relativa. Em terceiro lugar, apela-se para a obsolescência planejada e perceptiva (moda), acelerando a destruição ambiental. Por fim, a acumulação real – descontada as dívidas trilionárias mundiais a serem pagas nos próximos anos --- atinge assim o seu limite absoluto --- ou quase absoluto, sendo sua expansão cada vez menos possível. No fundo, só passa a ocorrer sob a força coercitiva do Estado, como fuga para a frente, do modo mais selvagem possível: pela conquista territorial e produção do espaço (meio de absorção de trabalho vivo), ao mesmo tempo em que ocorrem cortes nos gastos estatais na área social, o que impõe a generalização do trabalho precarizado, da terceirização, do auto-empresariamento, da autoexploração, do retorno à escravidão, e principalmente de privatizações de fundos públicos ou recursos naturais comuns (água, solos, florestas), no limite, atingindo guerras civis de pilhagem, como já ocorre um pouco por toda a periferia do sistema (África, Ásia e América Latina) etc. "Não há mais planos de integração para grandes maiorias" (Robert Kurz). O capitalismo é um espetáculo para poucos. A concentração da renda atinge níveis "indecentes" (segundo o termo de Obama). O chamado neoliberalismo é nada mais do que uma estratégia de classe para ampliar a valorização do capital à fórceps, em grande parte de maneira fictícia, nesse momento de crise (com taxas de lucro em declínio), avançando sobre os direitos dos trabalhadores e sobre os bens comuns. A partir dessa crise, e de maneira sincrônica a ela, temos processos de catástrofe encadeados:



-Crise social: Essa crise econômica deflagra conflitos sociais no campo e na cidade: enorme proletarização, expulsão de populações do campo, avanço sobre recursos naturais, ampliação de favelas etc. 


-Crise ambiental: nos anos 80, o agravamento de questões como o aquecimento global, a destruição de recursos hídricos e dos solos (desertificação, salinização), com a grave destruição, sem retorno, de ecossistemas etc. 


-Crise política: a guerra civil camuflada torna a política cada vez mais oligárquica, dominada por grandes grupos de poder e influência, e, no momento de crise, aparece claramente como um estado de emergência global real, enquanto virtualidade sempre prestes a se realizar. 



A crise permanente da formação brasileira 


Na base do processo social brasileiro, temos uma estrutura eternamente em crise. Um país moldado pela precariedade, a volubilidade, a falta de perspectiva. O que os clássicos sempre tiveram dificuldade para nomear: subdesenvolvimento industrializado, modernização conservadora, formação eternamente inconclusa, em que se conjugam o mais arcaico ao mais adiantado (o país-ornitorrinco) em todos os níveis e dimensões. Tudo o que aqui se forma tem a marca da violência, da alienação e da morte. Vivemos sob o compasso de uma “dialética rarefeita entre o não-ser e o ser-outro” (Paulo Emílio S. Gomes). Na base de tudo, temos uma fraca ou falsa distinção entre Sujeito e Objeto, o eu e o outro, o público e o privado, a ordem e a desordem, o real e a ideologia ou o real e a mais brutal irrealidade, que surge a partir do esquema escravista básico de casa-grande e senzala e da economia de plantations. Eis o que destrói todo limite, toda análise, todo ser propriamente configurado, todo projeto de desenvolvimento social de grande fôlego. Na realidade, no Brasil, temos economia, temos território, mas não temos povo, sociedade, vida urbana e vida política democrática propriamente ditas. O povo é um apêndice do território econômico, as instituições públicas são uma extensão do poder oligárquico "eleito" pelo grande capital. A ideia de civilização torna-se aqui menos um conjunto de formas de desenvolvimento cultural ampliado e criação do sujeito autônomo e emancipado do que o louco império do mundo dos negócios – o reino absoluto da forma celular da alienação: a forma-mercadoria, que demole todo limite civilizatório. 



O neodesenvolvimentismo como catástrofe


O desenvolvimentismo brasileiro foi uma forma social de tentar resolver a questão da acumulação por meio de uma modernização conservadora, numa palavra: uma religião do crescimento sem contrapartidas sociais equivalentes; um processo que une o getulismo, o trabalhismo aos militares e ao lulismo. O neodesenvolvimentismo petista aliou mais uma vez investimento estatal e privado na produção de grandes espaços (estradas, hidrelétricas, estádios, transporte etc.), grande expansão da mineração e do agronegócio, da indústria de bens de consumo duráveis, obtendo assim, num círculo inédito, mais incorporação das massas no trabalho, na educação e em programas emergenciais mínimos (que não devem ser confundidos com "conquistas sociais"). O preço a pagar imediatamente é um violento processo de degradação ambiental (Cerrado e Amazônia) e de reprodução da população como mera força de trabalho -- diante da possibilidade soterrada de superação do trabalho e de pacificação da existência. 


O "avanço" econômico se dá, como no passado, ao preço de retrocessos sociais e ambientais e de acúmulo de novas contradições. Houve a ascensão de uma massa proletária anteriormente marginal -- mas sem trabalho de base: portanto despolitizada -- ao mercado de trabalho e de consumo, que assim foi facilmente seduzida pelo mundo das mercadorias, enquanto a classe média vai sendo possuída pelos valores individualistas e "meritocráticos" do neoliberalismo -- a forma natural de afirmação selvagem de distinções imaginárias, no limite, entrelaçadas ao racismo e ao etnocentrismo, em meio à larga padronização promovida pela esfera do consumo. Por outro lado, ampliou-se assim o circuito das dívidas públicas e privadas, que aguardam mais um ciclo de desenvolvimento econômico acelerado para serem pagas. Uma catástrofe é assim anunciada: nessas condições, o modelo cava o seu próprio fim, mais ou menos previsível para os próximos anos, que deve ser o mesmo das sociedades do centro mais avançado do capitalismo mundial. Fenômeno que pode já ser observado na Europa e no Japão e, por outras mediações, em emergentes como a China. A superacumulação mundial, em condições de avanço da produção poupadora de mão de obra e desemprego estrutural, não pode ser mais desfeita, a não ser por meio de mais cortes nos gastos do Estado, de mais privatizações, de desregulamentação dos mercados e das leis ambientais, ou de mais créditos, cada vez mais inacreditáveis. A sociedade torna-se mais rica e produtiva, mas atola-se em dívidas, na miséria e na destruição. O oposto aconteceria se o valor de uso tivesse a prioridade e superasse o valor e a lógica do lucro. Enquanto discutimos algumas perfumarias eleitorais, alguns tópicos graves e gravíssimos vão se acumulando como contradições do "neodesenvolvimentismo", que certamente surgem das coerções do próprio processo econômico mundial em curso:


a) A crise da água em São Paulo, resultado do crescimento da metrópole nas últimas décadas e da falta de investimentos hídricos adequados, uma crise que provavelmente não terá solução nos próximos anos e irá praticamente paralisar a principal região metropolitana (e produtiva) do país, com dez ou vinte milhões de pessoas envolvidas. 




b) A crise do setor elétrico, que acumula dívidas bilionárias e parece que vai exigir socorro em breve, desviando recursos do orçamento.


c) A crise do orçamento de mais de R$ 1 trilhão, em 2015, comprometido a pagar juros e amortizações da dívida pública, e consequentemente a provável redução de recursos para as áreas sociais, numa sociedade em guerra civil não declarada.


d) A balança comercial negativa e a desindustrialização relativa em pleno curso, balança que tenderá ainda mais ao déficit com medidas de ajuste ultraneoliberais de Marina e Aécio (possíveis vencedores da eleição presidencial), com a consequente reprimarização da economia, a paralisação da reforma agrária e mais impactos ambientais sobre os principais biomas brasileiros e as populações mais frágeis (indígenas, quilombolas, ribeirinhos etc.). [Vide o mapa da destruição do cerrado até 2009]:




e) A crise habitacional e a bolha especulativa imobiliária nas grandes metrópoles, que aumentará a pressão social nas cidades e as questões de "segurança pública", o que significa, nas mãos de Alckimin e Pezão, por exemplo, mais massacres policiais -- a base para a ascensão de ideologias protofascistas na classe média e nos setores ultraconservadores (Datena e cia.).



f) O contexto de crise mundial do capital, com Europa, EUA, Japão e China passando para aprofundamento da recessão ou, talvez, à bancarrota conjunta nos próximos anos ou décadas.


Diante desse cataclisma social já à vista, nacional e global, é urgente pensar num modelo de superação do capital global. Para a esquerda viva, teórica ou prática, real e atuante, sem dogmatismos e tendo a paciência do conceito e do tempo em mente (que só é tempo da urgência para as forças reacionárias ou espontaneístas a la Negri), vejo duas ou três alternativas não excludentes: 


a) lutar pela formação política da massa não-organizada de Junho (não falamos obviamente dos movimentos sociais reais, já organizados, que foram às ruas) e das periferias, em todos os âmbitos (sindicatos, escolas, movimentos sociais, redes, opinião pública); 


b) crítica do modelo neodesenvolvimentista petista pela esquerda (com todas as suas implicações: crítica ecológica, do trabalho, do Estado e da economia capitalista como alienações), que precisa, quando eventual governo, ser pressionado a enfrentar sem medo a mídia corporativa e os setores conservadores, politizando essas questões fundamentais de modelo econômico; 


c) luta pela formação de uma ampla frente de esquerda para superar o PT a curto ou médio prazo, com os movimentos sociais mais fortes e partidos de esquerda à frente (pelo que percebo nos últimos meses o PSOL teria grande chance de criar um caminho e formar lideranças entre a massa jovem).


A curto prazo, é preciso se preparar para as próximas lutas nas ruas (principalmente se o governo federal cair na mão de PSDB ou "Marina vai com as outras"), pois o Brasilzão conservador e reacionário de 64 está em ascensão no país inteiro e irá lutar pela manutenção de seus privilégios com a força da ideologia e do cinismo da mídia corporativa. Ao lado dessas, algumas forças populares vieram à tona em Junho, mas são praticamente silenciadas e pré-moldadas ideologicamente pela indústria cultural. Criar uma esfera pública paralela aos monopólios, amplamente articulada com os movimentos sociais efetivos, é um dos primeiros passos da esquerda.


O ponto grave, na situação, é que de maneira alguma tais setores estarão dispostos a tolerar a insurgência de junho novamente, principalmente se ela acumular experiências e tiver dessa vez efeito politizador de massas menos organizadas (tomada de assembleias legislativas, pressão sobre prefeituras, universidades, casas, fábricas e terras abandonados etc.). 


Contudo, o estado policial está montado e preparado para a contra-insurgência, com o auxílio fundamental do PT. E se este estado policial e de vigilância falhar, sem dúvida a classe média e os evangélicos em ascensão apoiarão novamente um golpe militar a médio prazo. O sr. Merval Pereira, um dos chefões das organizações Globo, falou nesta semana na rádio CBN, em uma provável “crise institucional” nos próximos quatro anos, caso Dilma seja reeleita.

Pós-escrito - Após o 1º turno:


O TEMPO DE JUNTAR OS CACOS QUE RESTAM

Agora que a grande mídia golpista, as forças conservadoras e até as de uma suposta esquerda camaleônica (Marina e PSB, Jorge e PV) se uniram em torno de Aécio, com um congresso horrendamente parecido com o de 64 (com uma maioria absoluta de ruralistas e/ou fundamentalistas), é bom já irmos nos acostumando com o ajuste neoliberal, o desmanche da política social/salarial mínima e com o Estado policial-carcerário que serão instituídos a partir de 2015.
Um modelo perfeito para privatizar muito mais, fazer crescer o PIB a curto prazo (apenas momentaneamente) e rifar o futuro para os setores mais avançados e competitivos do capital e das classes médias. Não adianta esconder o sol com a peneira. No turbocapitalismo da hiperconcorrência e da falência dos projetos coletivos irá vencer quem tem a ideologia e o projeto político mais turbocapitalista e mais violentamente excludente. Irá emergir um Brasil plenamente burguês e neoliberal, amigo das megaempresas, do agronegócio e dos trabalhadores convertidos em microempresários terceirizados. O orçamento público trilionário, até então comandado pela burocracia petista, será rifado, com alguns bilhetes premiados dados de presente para os amigos da propina camarada (Petrobrás, Banco do Brasil, portos, aeroportos e hidrovias, escolas privadas, planos de saúde, USP, Unicamp e Unesp etc.).
Tudo isso numa economia que irá em direção inescapável do desemprego estrutural e da crise social e ambiental de grande envergadura. O caos tucano em São Paulo é só o laboratório do que pode advir em plano nacional.
Vai ser pedagógico para a esquerda, incluindo os que insistem que não há diferença nenhuma entre o que restou do PT e o campo conservador-reacionário, além daqueles que querem apostar apenas na força abstrata da multidão ou de movimentos apartidários ou micropontuais -- e não da organização social de maior fôlego, com formação de bases militantes ativas e de um partido de esquerda realmente viável.
À esquerda teremos o fim da linha: o fim do PT a médio prazo, a demonização da esquerda e de toda pauta popular na grande mídia. É o mesmo curso da Europa. A médio prazo, contudo, a crise econômica, social e ambiental provavelmente irá se transformar numa crise política grave, e o estado de exceção sairá da virtualidade para se tornar uma realidade sangrenta explícita.

05 setembro, 2014

Terror econômico, político e midiático: o Gigante integral da “ditadura”.

Terror econômico, político e midiático: o Gigante integral da “ditadura”. 


Últimas variações sobre o tema da formação, no país da eterna emergência.


(Elaborado para a Mesa: Terrorismo de estado, mídias e informação, no Seminário “Terrorismo de Estado, Direitos Humanos e Movimentos Sociais, FE/USP, 2, 3 e 4 setembro de 2014).

Cláudio R. Duarte

1-

Um olhar para a conjuntura, no Brasil, nunca pode se descolar de sua estrutura, que é sempre determinante. Vamos rever aqui os "acontecimentos de Junho" sob o prisma do conceito de formação – a partir da singularidade desse conceito no país.

Por que as Jornadas de Junho aparentemente malograram ou não tiveram a continuidade esperada dentro de um movimento de massas sonhado pela esquerda mais atuante e valorosa nessas mesmas jornadas? Ao que tudo indica, aliás, não teremos algo como um Novo Junho, pois as brechas para isso estão sendo sistematicamente fechadas pelo Estado policial-carcerário construído sob o guarda chuva dos governos existentes, culminando no evento da última Copa do Mundo.

E por que, ao contrário de um Novo Junho, estamos prestes a eleger, com forte apoio no voto jovem e supostamente inconformista, uma candidatura feita de improvisos, tergiversações, de fragmentos de ideologias em decomposição, sem base, sem estrutura, sem forma, sem programa – a não ser, por certo, os de uma agenda neoliberal, fundada na flexibilização, na privatização, nas Ongs e no auto-empresariamento? Ou, como alternativa, estamos na iminência de reeleger o Partido das alianças e conciliações difíceis de engolir, o Partido que, supostamente feito por trabalhadores, pôs o crescimento do capital em primeiro lugar, como condição para programas baratos de inclusão social e de respingos de orçamento para as questões sociais, mantendo a máquina econômica capitalista funcionando com base em dívidas cada vez maiores? Sem mencionar que ambos pautados em identificações ou concessões enormes ao senso comum reacionário. Se há um legado palpável de Junho -- apesar de contraditório -- eis aí o Gigante Coxinha como saldo.
**
2-

Partimos do diagnóstico feito pelos bons pensadores do Brasil: o país é uma formação social moderna, capitalista, definitivamente incompleta, uma formação evanescente ou uma espécie de pseudo-formação de âmbito social nacional. Foi o que veio a se chamar subdesenvolvimento periférico (ou modernização conservadora, acelerada e forçada em 64, não obstante retardatária, hipertardia, dependente, e assim por diante).

Vale lembrar, uma formação moldada pelo traço negativo herdado do escravismo colonial: o que se forma aqui aparece sempre já em ruína, daí a marca de sangue e morte, exalando por todos os poros. Aquilo que se forma no país – seja em âmbito social, econômico, político, cultural, estético ou subjetivo -- dá sempre sinais de falta de substância, de inconsistência, de miséria. Uma ausência de forma propriamente dita, que marca o objeto formado com o signo do precário, do improviso, do insubsistente. Uma eterna emergência que leva a nada ou à ruína iminente. Uma “formação supressiva”, enfim, segundo o termo de José Antonio Pasta ("Volubilidade e ideia fixa", Sinal de Menos 5, 2010).

Não que falte qualquer forma. Há um processo particularmente moderno de formação em curso, avançado e vanguardista a seu modo, que se inverte em produção do retrocesso. Naquilo que se forma, portanto, talha-se a marca da violência, o horror de uma desfiguração incurável do conteúdo. Daí a fugacidade, a morte iminente, a descontinuidade em toda linha e em toda dimensão. Na economia, o sistema de plantations e a produção voltada para a exportação primária; na política, o Estado oligárquico; na sociedade, a rígida hierarquia, a desigualdade e o racismo brutal etc. É o oposto de um movimento bem logrado e enraizado de constituição dialética. Daí a busca das "raízes do Brasil" (Sérgio Buarque de Holanda), se é que esse empreendimento comercial tinha alguma. Um ser social que não se constitui é um ser que, passando no Outro, não volta enriquecido de seu processo de reflexão e alienação, mas um ser que se perde no Outro, e resta na “dialética rarefeita entre o não-ser e o ser-outro” (Paulo Emílio Salles Gomes, Cinema: trajetória do subdesenvolvimento, 1973).

Na base dessa lógica de alienação e morte, portanto, temos uma fraca distinção entre Sujeito e Objeto, o eu e o outro, o público e o privado, a ordem e a desordem, o real e a ideologia ou o real e a mais brutal irrealidade. Eis o que destroi todo limite, toda análise, todo ser propriamente configurado. Essa falta estrutural de limites vem da célula matriz do domínio colonial: Casa-Grande e Senzala. Aqui, desde sempre, a dimensão do Outro, da Diferença, do Tempo, e do Direito, o elemento que regula e impõe limites à fusão do mesmo e do outro, é como que posta entre parênteses e virtualmente suspensa, podendo ser sempre eliminada sob o capricho dos poderes e potentados do momento. Brás Cubas é o protótipo dessa formação supressiva e desse sujeito deformado, que tem na cultura apenas uma casca vazia e um meio para a transgressão da norma (Cf. Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo - Machado de Assis, 1990).

As ideias modernas de cultura e civilização sempre tiveram a ver com a cidade, com o urbano, com os direitos de cidadania, num mundo ameaçador modelado pela guerra social instituída pelo capital. Ora, no Brasil, o que se pôs foi a cidade comercial, agroexportadora, depois a cidade industrial, finalmente explodida e implodida como uma espécie de anticidade (Henri Lefebvre, O direito à cidade, 1967), isto é, como repressão de demandas sociais, anticivilização ou cidadania restrita. A ideia de civilização torna-se aqui menos um conjunto de formas de desenvolvimento cultural ampliado e criação do sujeito autônomo e emancipado do que o louco império do mundo dos negócios – o reino absoluto da forma celular da alienação: a forma-mercadoria, que demole todo limite civilizatório. No pecado de origem, os indivíduos aqui não vendem “livremente” o "seu" tempo de trabalho, mas são vendidos por inteiro, como escravos. Da tortura e do estupro nas senzalas às salas de tortura nas ditaduras, à repressão policial militarizada e truculenta e à criminalização das lutas sociais, sem esquecer das mediação produtiva, feita de espoliação integral de recursos e descartabilidade do trabalhador nas grandes obras, eis o resultado dessa forma coisificada de socialização. Noutras palavras: no país, é como se a forma da economia suplantasse toda forma civilizacional (não puramente dedutível do sistema capitalista). 

No Brasil, o processo de "subsunção formal e real do trabalho ao capital" (Marx) tende, assim, a se tornar quase absoluta. É com ela que se instaura o estado de exceção permanente, que não precisa se converter em uma "ditadura" política em sentido técnico estrito do conceito. Mas se trata de um estado de exceção virtual, sempre iminente, enraizado numa base econômica violenta. Seu ideal ou finalidade seria flexibilizar toda forma contratual ou legislação social, política e ambiental, no limite eliminar todo contrato coletivo de trabalho e toda lei de regulação da exploração econômica. Na base social elementar, não temos uma "sociedade salarial" integrada como classe trabalhadora, constituída como camadas médias remediadas, tal como formada na Europa dos chamados "anos dourados", mas uma "superpopulação relativa" singular: um "proletariado precarizado" ou "precariado" permanente (Ruy Braga, A política do precariado, 2012, p.18), informal, flexível, móvel, migrante, social e politicamente instável, dificilmente constituindo-se como “classe” para si, como classe em luta. O "material humano" excelente para uma ótima extração de mais-valia absoluta, em composição com a mais-valia relativa. Segundo Chico de Oliveira, o capitalismo ornitorrinco brasileiro tornaria quase todo o tempo de trabalho em trabalho não-pago, em que “desaparecem os tempos de não-trabalho”, num entrelaçamento dessas duas formas de extração de mais-valor (Francisco de Oliveira, O Ornitorrinco, 2003, p. 136).

Nesse contexto, dominação pessoal e impessoal compõem um todo entrelaçado, de modo que os donos do capital são também os “donos do poder” (o Estado patrimonialista, de R. Faoro).

3-

Nossa tese é esta: por trás do terror político desse estado policial que se montou, herança da ditadura de 64, e dessa mídia monopolista e conservadora, que aterroriza a todos dizendo que o PT é “comunista”, a mídia monopolista que agora dirige a massa informe a mais quatro anos de consenso neoliberal, há uma espécie de totalitarismo ou terrorismo econômico de base. É este que ameaça e destrói toda forma antagônica, toda oposição, toda consistência política da esquerda.

Daí a persistência do "gigante" da ditadura: repressão política de movimentos sociais, coerção estatal sobre o todo, monopólio estatal ou privado da economia, incluindo monopólio midiático, moral conservadora e familista, abertura ao capital estrangeiro, industrialização em marcha forçada, sem liquidação das oligarquias regionais, endividamento externo, degradação ambiental monstruosa. O conceito de terrorismo, aqui antevisto, é o mesmo que Henri Lefebvre (A vida cotidiana no mundo moderno, 1967) anteviu no estado burocrático francês pré-maio de 68: um "terror difuso", que esconde sua violência latente e a guarda como último recurso supremo. O terror da economia política: um Estado que programa e codifica as necessidades sociais enquanto necessidades econômicas de crescimento e acumulação de capital, e que, para isso, bloqueia de saída o próprio pensamento de alternativas a tudo isso. Crescer, acumular, ampliar – mesmo saúde, educação ou moradia nada mais são, dessa ótica, do que meios de reprodução da força de trabalho, vale dizer: instrumentos de gestão biopolítica do precariado (escolas técnicas, moradias e saúde primários, abertura de frentes de trabalho selvagens, programas sociais emergenciais etc.) e de possível inserção do país como potência regional subimperialista na América do Sul. 

O “terror” instaurado pelo PT e pela mídia é nada mais, assim, do que o terror da economia autonomizada: o fetiche do crescimento cego, imposto pela globalização do capital, fundado em produção acelerada e destrutiva do espaço, em dívidas bilionárias e ganhos assegurados para as elites do agronegócio, da indústria e do setor financeiro, rentista e especulativo. Mas como sabemos, para o capital e sua mídia reacionária, isso nunca é o bastante. 0,9 de crescimento do PIB é pouco comparado ao patamares chineses, indianos ou chilenos, o dos 5, 7 ou 12% anuais. Como se 1% de US$ 2,5 trilhões, da maneira como é gerado, não tivesse impactos sociais e ambientais gigantescos (cf. os índices de desmatamento e poluição recentes na Amazônia, Nordeste e Centro-Oeste). Mais uma vez estamos imersos no "mito do desenvolvimento econômico", há muito apontado por Celso Furtado (1974), quando dizia durante a crise do milagre econômico brasileiro: "Cabe, portanto, afirmar que a ideia de desenvolvimento econômico é um simples mito. Graças a ela, tem sido possível desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades que abrem ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em objetivos abstratos, como são os investimentos, as exportações e o crescimento". Além disso, é como se a crise estrutural do capital não estivesse instaurada e posta em nosso próprio horizonte, já tomando a própria América como um todo, a Europa e o Japão, como se os lucros e sobrelucros monopolistas pudessem ser mantidos a longo prazo sem uma brutal exclusão da massa e sem mais desemprego, políticas neoliberais, privatizações etc. A isso, o Estado responde com sua política de administração da pobreza, tomando a população como objeto político.

Ora, a grande mídia pressiona e aterroriza ainda mais os governos e a população se as metas econômicas absurdas não são cumpridas. Para ela, o céu é o limite. O que importa é fazer a roda da acumulação girar mais velozmente sempre. A corrupção petista, como se sabe, é apenas um álibi, para estigmatizar de vez os partidos de esquerda em geral – para tirar qualquer demanda social da agenda puramente neoliberal e economicista das classes dominantes (em que se encaixa confortavelmente parte das classes médias). Como se sabe, nesse Estado patrimonialista a corrupção é estrutural, ainda maior quando a direita o controla. Este então o terror econômico que elimina o dissenso político, no limite se tornando, como propõe Agamben, uma “guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político”. “O estado de exceção apresenta-se como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo” (G. Agamben, Homo sacer, 1994, p. 13). Essa eliminação não precisa ser física, nem a democracia chegar de fato ao absolutismo. Ela tende a ser anulação política da oposição, o que é aliás bem mais "produtivo" para o sistema, que pode contar com massas permanentes no exército de reserva de trabalho precário e assim continuar a comprimir salários, obter consumo, manter sua máquina eleitoral, suas promessas de acumulação etc. (Cf. o argumento de Paulo Arantes, Extinção, 2007 e O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência, 2014). 

Desde 64, nunca se governou tanto com medidas provisórias, na estratégia de fuga para a frente: tanto para a aceleração do crescimento como para apagar incêndios sociais emergenciais, visando neutralizar a oposição anticapitalista, toda semente de anticapitalismo, com mais crescimento do capital.

**

4-

As jornadas de junho podem malograr à medida que não conseguem, como exceção momentânea instaurada, se tornar a regra, ganhar não somente as ruas como acontecimento, mas inverter as regras do jogo de maneira permanente, polarizando a sociedade em campos antagônicos e instituindo novas formas de “governo” anticapitalistas. Hoje, tensionar o Estado exigindo re-formas radicais levaria, no limite, à explosão da forma vazia da mercadoria e da gestão estatal burocrática da miséria. O social contra o econômico e o político instituídos.

Em seu lugar, infelizmente, o gigante que se erige é o gigante de uma falsa unidade “nacionalista”, conciliatória, de fundo evangélico, neoliberal e/ou protofascista.(Cf. Cláudio R. Duarte, "O gigante que acordou - ou o que resta da ditadura? Protofascismo, a doença senil do conservadorismo", Revista Sinal de Menos, edição especial, 2013, on line). No fundo dessa falta de antagonismos explícitos, encontra-se o nosso velho problema de formação: ausência do trabalho de base e de politização das massas insurgentes de junho, que, assim, são mais ou menos facilmente capturadas pelo espetáculo midiático-partidário-oligárquico contínuo. O meio informacional hoje apenas reproduz o informe de nossa má formação constitutiva.

Como diz um companheiro militante simpático ao PT, sem descurar a autocrítica necessária do processo instalado:

“A verdade é que, apesar da retórica, a esquerda abandonou a luta ideológica e política militante com o povão. Para muitos militantes de partidos de esquerda, falar de mobilização de massas populares, numa perspectiva concreta, é grego. Para outros é melhor ficar esperando por explosões conjunturais como junho de 2013, pois em “tempos normais” não conseguem mobilizar quase ninguém para luta social. O resultado é que o povo brasileiro se encontra desorganizado, desinformado e desmobilizado, apesar de ter melhores condições para lutar hoje. 


Se tinha a faca e o queijo na mão para construir uma grande força social e política com as classes populares e parte das camadas médias,  percebe-se que a esquerda não teve prioridade no trabalho de base e encontra-se sem raízes nas comunidades, vilas, associações comunitárias e outras formas de vivencia das camadas trabalhadoras e populares. E só de luta ideológica e retórica de esquerda não se mobiliza ninguém”. (Fernando Marcelino ). 


Bibliografia

Giorgio Agamben, Homo sacer, Ed. UFMG, 1994.

Paulo Arantes, Extinção, Boitempo, 2007 e O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência, Boitempo, 2014.

Ruy Braga, A política do precariado, Boitempo, 2012. 

Cláudio R. Duarte, "O gigante que acordou - ou o que resta da ditadura? Protofascismo, a doença senil do conservadorismo", Revista Sinal de Menos, edição especial, 2013.

Celso Furtado, O mito do desenvolvimento econômico, Paz e Terra, 1974.

Paulo Emílio Salles Gomes, Cinema: trajetória do subdesenvolvimento, 1973.

Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, José Olympio, [1936], 1973.

Henri Lefebvre, A vida cotidiana no mundo moderno, Ática, [1967], 1991 e O direito à cidade, Documentos, [1967], 1969.

Francisco de Oliveira, Crítica da razão dualista/ O ornitorrinco, Boitempo, 2003. 

José Antonio Pasta. "Volubilidade e ideia fixa", Sinal de Menos 5, 2010.

Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo - Machado de Assis, Duas Cidades, 1990.