Contudo, na própria debilidade deste véu transparente e dilacerado, Marcuse vê as condições da recusa do sistema, com a emergência de uma "nova sensibilidade" e uma nova "racionalidade sensual":
"O fetichismo do mundo das mercadorias está-se dissipando: as pessoas enxergam a estrutura de poder subentendida na tecnocracia e suas alegadas bênçãos. Fora das pequenas minorias radicais, essa consciência é apolítica, espontânea; repetidamente reprimida; ´ideológica´ - mas também encontra expressão na própria base da sociedade. Na propagação de greves não-autorizadas, na estratégia militante da ocupação de fábricas, na atitude e exigências dos jovens operários, o protesto revela uma rebelião contra a totalidade das condições de trabalho impostas, contra a totalidade do desempenho a que o indivíduo está condenado" (CRR, p.29)
* *
7) O fundamento intempestivo da crítica: em busca de uma base não-subjetivista para a subjetividade emancipatória
Abandonado o projeto dos anos 30 de fundamentação da práxis materialista através de uma ontologia antropológica do trabalho, encetando a crítica ao produtivismo capitalista e marxista nos anos 50, configurando uma antropologia negativa com o desvendamento da emergência de um novo tipo de "homem unidimensional" (que recalca inconscientemente e mesmo suprime com consciência cínico-esclarecida as possibilidades objetivas da superação), Marcuse passa à tentativa de encontrar uma nova base - pulsional como veremos - para a emancipação social. Desde pelo menos os anos 50 ele irá procurá-la em Nietzsche e na psicanálise freudiana.
O que Marcuse intui, mesmo em fenômenos coisificados ou que podem ter parentesco com a "dessublimação repressiva", é, dialeticamente, um profundo mal-estar:
"As manifestações de um comportamento não-competitivo, a rejeição da virilidade brutal, o desmascaramento da produtividade capitalista do trabalho, a afirmação da sensibilidade, a sensualidade do corpo, o protesto ecológico, o desprezo pelo falso heroísmo no espaço exterior e nas guerras coloniais, o Movimento de Libertação das mulheres (à medida que não encare a mulher libertada como aquela que tem, meramente, um quinhão igual nas características repressivas das prerrogativas masculinas), a rejeição do culto puritano, antierótico, da beleza e do asseio plásticos – todas essas tendências contribuem para o enfraquecimento do Princípio de Desempenho. Elas articulam o profundo mal-estar, que prevalece, em geral, entre as pessoas" (CRR, pp.38-9).
Nesses surpreendentes fenômenos de vitalidade e espontaneidade, Marcuse entrevia o anseio social por uma "civilização sem repressão". Sua estratégia de releitura filosófica de Freud em Eros e Civilização inicia-se pela desnaturalização de seu princípio de realidade repressivo, chocando-o com a atual obsolescência da economia de escassez: as novas tecnologias já são suficientes para tornar possível a "pacificação da luta pela existência" e superar o reino severo de Ananke (carência), ou seja, superar o reino do trabalho (alienado), que exige o contínuo desempenho econômico dos corpos. A maior parte do trabalho já poderia ser reduzida a um mínimo, enquanto a outra tornar-se-ia próxima à autoatividade e ao jogo. Segundo a interpretação de Marcuse, boa parte do recalcamento - isto é, da "mais-repressão" determinada por este "princípio do desempenho" - poderia, assim, ser abolida. Até que ponto Marcuse confunde "recalque originário" (Urverdrängung), "recalque" (Verdrängung) e "repressão" (ou "supressão") (Unterdrückung) entre si, e estas formas de defesa subjetiva com a repressão social no sentido mais amplo (que segundo os lacanianos teriam pouco a ver com processos imanentes à linguagem) - não se pode ter ideia exata, pois o livro, escrito em inglês, aplaina tais distinções sob o termo geral 'repression'. Em todo caso, trata-se de abolir sobretudo a "mais-repressão" e não simplesmente a "repressão" em si para "libertar o desejo". Aceito esse ponto, a partir daí, então, teríamos condições de construir um novo princípio de realidade, moldado livremente pela busca do prazer não-violento, sob forma de "sublimação não-repressiva", com a produção de uma nova subjetividade relativamente autônoma; enfim, teríamos o horizonte utópico da "transformação da sexualidade em Eros" (a eroticização do corpo e da vida social para além do tempo e espaço funcionais do mercado), a constituição de um corpo vivo, de uma nova racionalidade e sensibilidade, com uma "sexualidade polimórfica" etc. (cf. E&C, cap. 10) - e é algo disso o que se presume estar irrompendo nas manifestações dos anos 60, nas greves selvagens, no movimento feminista, negro, ecológico, hippie etc.
Mas no "Prefácio" de 66 ao livro, Marcuse faz uma autocrítica:
"Eros e civilização: o título expressou um pensamento otimista, eufemístico, mesmo positivo, isto é, que as realizações da sociedade industrial avançada habilitariam o homem a inverter o rumo do progresso (...) Esse otimismo baseava-se no pressuposto de que deixara de prevalecer o fundamento lógico para a contínua aceitação da dominação, que a carência e a necessidade de trabalho só ´artificialmente´ eram perpetuadas - no interesse de preservar o sistema de dominação. Negligenciei ou minimizei o fato desse fundamento lógico ´obsoleto´ ter sido amplamente reforçado (senão substituído) por formas ainda mais eficientes de controle social" (E&C, p.13).
Ou seja, o fundamento "lógico" não era tão lógico e previsível assim. A racionalidade marxista da história, sua fé no progresso encarnado no progresso unilateral das forças produtivas e na organização do proletariado, é abandonada como ilusória. Aqui, também, o autor está pensando exatamente nos termos da atual "dessublimação repressiva" e da "factualidade cínica" da nova ideologia propostos em O homem unidimensional, ou seja, na instrumentalização mercantil-estatal de Eros e Thanatos para a reprodução do sistema dominante:
"Na sociedade afluente, as autoridades raramente se vêem forçadas a justificar seu domínio. Fornecem os bens; satisfazem a energia sexual e agressiva de seus súditos. Tal como o inconsciente, cujo poder destrutivo representam com tanto êxito, estão aquém do bem e do mal, e o princípio de contradição não tem lugar na sua lógica" (E&C, p.13, g.m.).
É como se o "inconsciente" unidimensional dos homens-mercadoria modelasse a história por inteiro com suas leis compulsivas de repressão do novo e saídas individualistas. (Talvez poder-se-ia falar aqui de uma forma de "intempestividade do poder contra-revolucionário", como formulamos acima, que não precisa de grandes razões ou princípios para legitimar sua violência).
Agora, porém, apoiado nos Grundrisse de Marx, recém-publicados, Marcuse tem mais motivos "objetivos" ainda para pensar que uma forte crise sistêmica estaria pressuposta: com a crescente automatização da produção fabril, a lei do valor tenderia a ser radicalmente negada (cf. E&C, p.21 e HU, pp.51-2). É claro, porém, que tais motivos não levam por si só à quebra da lógica férrea do sistema de acumulação, dadas as forças de reprodução política do momento.
Marcuse busca, então, uma nova base subjetiva para a emancipação que não seja classicamente racionalista ao modo marxista tradicional (como está pressuposto no jovem Marx, nos Manuscritos e n´A Ideologia Alemã, p.ex., ou em História e Consciência de Classe de Lukács), nem idealista ao modo hegeliano, com toda a sua carga logicista, cheia de teleologia, otimismo e happy end garantido. Ambos partem do paradigma tradicional da filosofia do sujeito iluminista pré-freudiano. Para Marcuse, por isso, não há mais "fundamento lógico" que garanta a emancipação.
Nem sempre o filósofo é feliz em suas formulações críticas pós-freudianas a esse paradigma. No Ensaio sobre a libertação, o veremos perguntar, assim, sobre os "fundamentos biológicos do socialismo":
"Anterior a toda conduta ética fundada sobre critérios morais específicos, a moralidade é uma ´disposição´ do organismo, cuja base é talvez a tendência erótica a combater a agressividade, a criar e proteger ´unidades sempre maiores´ de vida. Teremos então, antes de todos os ´valores´, um fundamento pulsional para uma solidariedade da espécie humana - esta solidariedade eficazmente reprimida até hoje pelos imperativos da sociedade de classes e que aparece agora como condição pressuposta da libertação" (Vers la liberation, pp.26-27, grifos meus).
Se é evidente para nós, hoje, após Lacan, que o desejo e as pulsões devem muito pouco ou nada à biologia ou à noção de instinto natural (mas apenas a estruturas simbólico-culturais cristalizadas em "segunda natureza" na subjetividade singular), mesmo assim, o interesse da questão marcuseana permanece: é válido pensar quais forças reprimidas (não necessariamente assim "rousseauístas") seriam a base (como um mero pressuposto) para uma crítica ao sistema e sua razão dominadora. Marcuse é ambíguo quanto à historicidade dessa base:
"Na medida em que esse fundamento é ele mesmo histórico e a maleabilidade da ´natureza humana´ alcança as profundezas da estrutura pulsional do homem, uma transformação da moralidade poderia ´submergir´ na dimensão biológica e modificar a conduta orgânica" (ibid., p.27, grifos meus).
Já em Eros e Civilização o autor, no rastro de Schiller, Schopenhauer e Nietzsche, eleva o Eros freudiano (o conjunto das pulsões de vida) à posição ontológica predominante sobre o Logos, mas também sobre Thanatos:
"A ontologia tradicional é contestada; contra a concepção de ser em termos de Logos ergue-se a concepção de ser em termos a-lógicos: vontade e prazer. Essa contra-tendência esforça-se por formular seu próprio Logos: a lógica da gratificação. // Nas suas posições mais avançadas, a teoria de Freud compartilha dessa dinâmica filosófica. A sua metapsicologia, tentando definir a essência do ser, define-o como Eros - em contraste com a sua definição tradicional como Logos. A pulsão de morte afirma o princípio do não-ser (a negação do ser) contra Eros (o princípio essente) (...) Ser é, essencialmente, lutar pelo prazer. Essa luta converte-se num ´anseio´ da existência humana: o impulso erótico para combinar a substância viva em unidades cada vez maiores e mais duradouras constitui a fonte impulsiva da civilização" (E&C, p.118).
Assim interpretadas, Marcuse adere claramente às especulações metapsicológicas (de cunho ontológico) de Freud, como críticas ao logocentrismo da moderna filosofia do sujeito. Mas aqui também haveria como se objetar uma grande dificuldade téorica de tal releitura de Freud: o vício hegeliano do telos da reconciliação projetado sobre o dinamismo imprevisível e infinito do inconsciente freudiano, isto é, sobre os alvos e os objetos não coincidentes e fundamentalmente anárquicos das pulsões, conforme apontou Bento Prado Jr. – o que se traduziria afinal em uma esperança altamente hegeliana (e pouco freudiana) de uma "psicanálise infinitamente bem-sucedida" ("Entre o alvo e o objeto do desejo: Marcuse, crítico de Freud" in: __. (org.) Filosofia da psicanálise, 1991, p.40). Tal crítica é justa também na medida em que Marcuse não distingue enfaticamente necessidade (que visa a um objeto específico e satisfaz-se com ele) e desejo (sempre inconsciente e ligado a uma fantasia), nivelando muitas vezes esse último à plena "satisfação de necessidades humanas básicas" (E&C, p.141); ou, no mínimo pensa, sob o nome de satisfação de necessidades (need), em geral, as diferentes formas de gratificação da pulsão ou da libido, sem distinguir formas de prazer e gozo (como fazem os lacanianos); daí as dificuldades de se distinguir platonicamente e a priori "falsas" e "verdadeiras" necessidades ou desejos (como aparece em "Para a crítica do hedonismo" in:__. Cultura e Sociedade, vol.1), principalmente num período de "dessublimação repressiva".
Por outro lado, ainda, na sociedade emancipada o "Eros reforçado" como que reduziria e neutralizaria Thanatos (ou, pelo menos, suas manifestações destrutivas), isto é, segundo o próprio Marcuse ele "absorveria o objetivo da pulsão de morte" (E&C, p.202). De um ponto de vista lacaniano isso seria rigorosamente impossível:
"(...) o sujeito se realiza na perda em que ele surgiu como inconsciente, pela falta que ele produz no Outro, segundo o traçado que Freud descobre como a pulsão mais radical e que a denomina: pulsão de morte. (...) toda pulsão é virtualmente pulsão de morte" (Lacan, Ecrits, 1966, pp.843 e 848).
Ou seja, com Lacan a ontologia muda de sinal e sentido: trata-se de uma ontologia monista da pulsão de morte (cf. Vladimir Safatle - A paixão do negativo: Lacan e a Dialética, 2006), a ontologia da cisão estrutural do sujeito pelo significante, que desfila em séries contínuas pela atividade repetitiva da pulsão (de morte), numa cadeia infinita de inadequação aos objetos empíricos. Como interpreta o filósofo lacaniano Vladimir Safatle:
"se [em Marcuse] a pulsão de morte é apenas mais uma figura do princípio de anulação de tensão advindo da carência vital, então nada nos impede de transformá-la em uma simples figura distorcida de Eros no interior de uma sociedade repressiva, figura que se dissolverá assim que Eros instaurar uma sociedade não repressiva. Ou seja, é Eros que tem dignidade ontológica, e não Thanatos, pois, tal como para Kant, Marcuse não acredita em uma realidade ontológica da negação. Isto faz com que sejam simplesmente perdidas todas as questões fundamentais trazidas pela pulsão de morte freudiana, como a irredutibilidade da repetição aos processos de rememoração e a inadequação da pulsão aos objetos empíricos, inadequação muito bem lembrada por Bento Prado ao insistir que Marcuse simplesmente ignora a necessidade da distinção freudiana entre alvo e objeto da pulsão. Assim, para que a pulsão seja pensável no interior do projeto marcusiano faz-se necessário ignorar a relevância dos problemas trazidos pela repetição e pela negatividade implícita na variabilidade estrutural do objeto da pulsão (que indica uma inadequação fundamental entre pulsão e objeto empírico)". (Safatle, "Auto-reflexão ou repetição: Bento Prado Jr. e a crítica ao recurso frankfurtiano à psicanálise", 2004).
Isso pressuporia, então, como parece estar implícito no raciocínio de Marcuse, a ênfase na cura psicanalítica pela mera rememoração intersubjetiva do passado e neutralização da repetição destrutiva da pulsão (que seria fundamentalmente pulsão de morte) (ibid.).
Essas críticas, porém, parecem-me válidas com ressalvas: primeiro, porque Marcuse não pensa em termos de mera "dissolução" da pulsão de morte (como aponta Joelton Nascimento, "Apontamentos à margem de Eros e Civilização", 2007). Segundo, porque Marcuse pensa a rememoração não exatamente em termos clínicos, muito menos numa "psicanálise infinitamente bem sucedida" em meio à sociedade da mercadoria, estruturalmente neurotizada, mas antes pensa explicitamente nos termos das Teses sobre o Conceito de História de Walter Benjamin – a rememoração aqui é uma questão de "ação histórica" (E&C, p.201): trata-se da paralisia e da explosão do continuum da história, isto é, do tempo cumulativo do capital e de seu modo de vida repressivo, com base na superação do trabalho e na redefinição radical do tempo da produção e do tempo livre. Assim, se há um revisionismo de Freud trata-se de um revisionismo a ser feito pela práxis, e não nos termos racionalistas, idealistas, ou seja, na simples mudança na esfera de um paradigma teórico (cf. E&C, p.113).
Mais ainda, para Marcuse de fato a rememoração do "melhor passado e do melhor futuro" (E&C, p.200) é, simultaneamente um "esquecimento ativo", tal como o conceituava Nietzsche na Genealogia da Moral – ou ainda, um "sentir a-historicamente" como o definiu nas Considerações Intempestivas ("Da utilidade e desvantagem da história para a vida", 1874, §1):
"quem não se instala no limiar do instante, esquecendo todos os passados, quem não é capaz de manter-se sobre um ponto como uma deusa de vitória, sem vertigem e medo, nunca saberá o que é felicidade e, pior ainda, nunca fará algo que torne outros felizes".
A menor felicidade é maior felicidade quando "é ininterrupta e faz feliz ininterruptamente". Interromper o continuum da história para o jovem Nietzsche era afirmar o ser, sem medo do outro e do vir-a-ser. (A virada "heracliteana" do último Nietzsche o coloca noutro horizonte: para Heidegger, por exemplo, num horizonte ultrametafísico, o da vontade de potência como último avatar da lógica subjetiva do domínio, do "esquecimento do ser"). Creio que para Marcuse, tal como para Adorno da Dialética Negativa, não se trata de ontologizar qualquer tipo de negativo, mas de vê-lo como historicamente determinado pela coerção do princípio de identidade. A reconciliação, a convivência com o diverso, um "viver sem angústia" - isso parece-nos estar pressuposto no raciocínio de Marcuse e de Adorno (cf. E&C, p.139; em Adorno, para a crítica do desvario produtivista do espírito e da práxis burguesa, vide, por exemplo, Minima Moralia, § 100). Na sequência do texto citado das Intempestivas Nietzsche reforça:
"Pensem o exemplo extremo, um homem que não possuísse a força de esquecer, que estivesse condenado a ver por toda parte um vir-a-ser: tal homem não acredita mais em seu próprio ser, não acredita mais em si, vê tudo desmanchar-se em pontos móveis e se perde nesse rio do vir-a-ser" (ibid.).
Em terceiro lugar, e mais importante, o caminho mais interessante para mostrar como Marcuse ainda se mantém nalguma medida freudiano, seria recuperar o que aparece aqui e ali como - tentei mostrar - a intempestividade da recusa, que ao mesmo tempo põe a negação objetivamente mas sem ontologizá-la como parece fazer Lacan (e seus discípulos) – algo que tem a ver com a "intemporalidade" do inconsciente e o caráter repetitivo da pulsão, tal como identificado por Freud e reafirmado por Marcuse em muitos pontos:
"o princípio de prazer que governa o id é ´intemporal´ também no sentido em que milita contra o desmembramento temporal do prazer, contra a distribuição em pequenas doses separadas. Uma sociedade governada pelo princípio de desempenho deve necessariamente impor tal distribuição, visto que o organismo tem de ser treinado para a sua alienação em suas próprias raízes: o ego de prazer. Deve aprender a esquecer a reivindicação de gratificação intemporal e inútil, de ´eternidade de prazer´" (E&C, pp.59-60).
Os processos do inconsciente freudiano são "intemporais", afirmam-se negando a lógica do tempo linear e o princípio da contradição, no sentido de que "não são ordenados no tempo, não se alteram com a passagem do tempo; não têm absolutamente qualquer relação com o tempo" (Freud, O inconsciente, [1915], p.214). Apesar de historicamente formado, seu caráter é, segundo Freud, fundamentalmente repetitivo e resistente à mudança. O mesmo vale para a pressão constante e indestrutível das pulsões. Assim rompe-se a unidade ilusória do sujeito, que neurotizado pela manutenção de repressões anacrônicas. Em Marcuse, a quebra da rígida ordem do tempo-espaço do capital, a superação da rotina quotidiana comandada pelo trabalho mercantil, que marca todo outro como seu negativo e como sua contradição, é o fundamento de qualquer "emancipação erótica" da civilização, pois abalaria também a estrutura da subjetividade historicamente formada, já que na hipótese marcusiana "as pulsões do indivíduo são controladas através da utilização social de sua capacidade de trabalho"(E&C, p.92). Marcuse lembra que o retorno ou a reativação imprevisível do material recalcado,
"os acontecimentos e experiências que podem ´despertar´ o material reprimido - são, no nível social, os que se nos deparam nas instituições e ideologias que o indivíduo enfrenta cotidianamente e que reproduzem, em sua própria estrutura, tanto a dominação como o impulso para a destruir (família, escola, fábrica e escritório, o Estado, a Lei, a filosofia e moral predominantes). (E&C, p.80, grifos meus)
A rememoração marcusiana tem algo da seleção benjaminiana dos momentos alegres da infância insurgindo-se no "tempo do agora". Daí também a idéia dialética de "regressão" em Marcuse:
"a reativação dos desejos e atitudes pré-históricos e infantis não significa, necessariamente regressão: pode muito bem ser oposto – a proximidade de uma felicidade que sempre foi a promessa reprimida de um futuro melhor. Em uma de suas formulações mais avançadas, Freud definiu certa vez a felicidade como a ‘consumação subseqüente de um desejo pré-histórico. É por isso que a riqueza dá tão pouca felicidade: o dinheiro não era um desejo da infância’" (E&C, p.178-9).
O Eros ontológico marcuseano afirma continuamente a vida, negando aquilo que a nega. Neste sentido preciso, aproximar-se-ia da "vontade de potência" nietzscheana (devidamente criticada esta em seu aspecto de "mau infinito", quando celebra repetindo as mesmas "características da moralidade que ela se esforça por superar", E&C, p.117). Como lembra o autor, no "eterno retorno" nietzscheano o "prazer quer a eternidade"(E&C, p.117), a repetição do que produz diferença. Orfeu e Narciso (devidamente interpretado para além das patologias narcísicas) seriam, nesta versão, os arquétipos culturais mais próximos: sua imagem é
"da alegria e da plena fruição; a voz que não comanda, mas canta; o gesto que oferece e recebe; o ato que é paz e termina com as labutas de conquista; a libertação do tempo que une o homem com deus, o homem com a natureza" (E&C, p.148).
Aqui não se trata do "Eros normal" - embebido nas fantasias metafísicas da negatividade infinita e produtividade prometeica do espírito e da práxis burguesa da modernidade – mas um Eros diverso, "mais pleno":
"O Eros órfico e narcisista é, fundamentalmente, a negação dessa ordem - a Grande Recusa. No mundo simbolizado pelo herói-cultural Prometeu trata-se da negação de toda a ordem" (E&C, p.155). "A recusa visa à libertação - à reunião do que ficou separado" (ibid., p.154).
Marcuse parece, assim, recusar a transcendentalização lacaniana do desejo como falta: nesse sentido, ainda, está aparentemente mais próximo do desejo maquínico de Deleuze e Guattari (O Anti-édipo, 1971), concebido como sempre afirmativo, excedente e criador - pois enfim mais próximo da "virtude dadivosa" de Zaratustra. Com o triunfo da moralidade cristã, diz Marcuse,
"A pressão e a privação foram, pois, justificadas e afirmadas; converteram-se nas forças dominantes e agressivas que determinavam a existência humana" (E&C: 114).
Marcuse certamente desconfiaria também do caráter infinitamente produtivo (ou melhor, negativo-destrutivo), ontologicamente transcendente da pulsão lacaniana, que, noutros moldes, está presente no Idealismo Alemão e no "nada" sartriano do Ego sempre transcendente de O Ser e o Nada (vide p.ex. as conferências "O progresso à luz da psicanálise" e "Teoria das pulsões e liberdade", 1974) - que são seus evidentes modelos filosóficos (Cf. Safatle, A Paixão do Negativo). Isso não anula o dinamismo das pulsões, mas apenas seu caráter compulsivo, fruto da mais-repressão. O Eros freudiano é classicamente interpretado por Marcuse como "criador de cultura", como o esforço para
"conservar o ser numa escala cada vez mais ampla e mais rica, a fim de satisfazer as pulsões de vida, protegê-las da ameaça da não-consumação, de extinção. É o malogro de Eros, a falta de satisfação das finalidades vitais, que aumenta o valor pulsional da morte" (E&C, p.106).
Assim, coloca-se um texto fundamental do livro. É num sentido dialético que Marcuse interpretará a pulsão de morte:
"As múltiplas formas de regressão constituem um protesto inconsciente contra a insuficiência da civilização, contra o predomínio da labuta sobre o prazer, do desempenho sobre a gratificação. Uma tendência recôndita no organismo milita contra o princípio que tem governado a civilização e insiste em afastar-se da alienação. Os derivativos da pulsão de morte unem-se às manifestações neuróticas e pervertidas de Eros, nessa rebelião. A teoria freudiana da civilização assinala repetidamente essas tendências contrárias. Por destrutivas que possam parecer, à luz da cultura estabelecida, são testemunhos da destrutividade daquilo que se esforçam por destruir: a repressão. Visam não só ao ataque ao princípio de realidade, ao não-ser, mas ainda além do princípio de realidade - a um outro modo de ser. Denunciam o caráter histórico do princípio de realidade, os limites de sua validade e necessidade" (E&C, p. 106, grifos meus).
Digamos que o "além do princípio do prazer", para Marcuse, visa à posição de um novo modo de ser - uma nova identidade "flexível" para o sujeito -, não à negação simples, indeterminada, e no fundo, destrutiva, da realidade externa e interna a ele. O que se estabelece, então, é uma luta contra o tempo social e historicamente alienado:
"A forma tradicional da razão é rejeitada na base da experiência do ser-como-fim-em-si - como gozo (Lust) e fruição. A luta contra o tempo desencadeia-se a partir dessa posição: a tirania do devir sobre o ser deve ser quebrada se o homem quiser tornar-se ele mesmo num mundo que seja realmente seu" (E&C, p.115).
Por último, cabe constatar que uma tal "ontologia pulsional" do homem, que poderia ser estendida aliás ao espinozismo de Marx dos Manuscritos de 1844 (que concedia um estatuto ontológico às "paixões"), não tem um papel fundante do social em Marcuse, mas é um mero pressuposto para uma práxis materialista de emancipação social. Uma espécie de ontologia fraca (determinada pelo materialismo fundamental das pulsões e do inconsciente, afinal indestrutível e resistente ao tempo) que poderia ser contraposta à "ontologia negativa" do capital, suas formas de "abstração real", incluindo as do sujeito mônada-mercadoria. É claro que a espontaneidade e os fenômenos intempestivos de recusa do desejo radical, clamando pelo Real impossível, por si só não têm o poder de se afirmar e negar o princípio de desempenho. A repetição em si não é redentora, facilmente capturável que é pelas fantasias narcísicas e sadomasoquistas imantadas pelo imaginário social capitalista. Neste ponto, Marcuse permanece marxista. Eros se converte em força material eficaz quando se integra num movimento social mais amplo: não há forças ativas de contrapoder sem educação e prática política correspondentes, o que pressupõe a discussão intersubjetiva, mas como algo que não se cria e nem se esgota nela – e neste ponto Marcuse vai além de Habermas:
"O slogan ´sentemo-nos e vamos raciocinar juntos´ tornou-se justamente uma piada. Poder-se-á argumentar com o Pentágono sobre qualquer outra coisa a não ser a eficiência relativa dos engenhos de matança - e o seu preço?" (CRR, p.128).
O "elemento anarquista", diz Marcuse, "é um fator essencial da luta contra a dominação, fator que é preciso integrar na ação política imediata, mas o disciplinando", pois este seria libertado e aufgehoben (isto é, "superado" em sua imediatez) no seio do combate social mais amplo (Vers la liberation, p.165). Assim, por exemplo:
"A libertação sexual pode ir muito longe sem pôr em perigo o sistema capitalista em sua fase avançada (...). Para além dessa fase a libertação das pulsões converte-se numa força de libertação social somente no grau em que a energia sexual se transformar em energia erótica, lutando por mudar o modo de vida numa escala política e social (...) A rebelião das pulsões ter-se-á convertido numa força política somente quando for acompanhada e guiada pela rebelião da razão (...)"(CRR, p.126).
Tais momentos vitais de Eros (e, como vimos, também contidos no aspecto rebelde das pulsões de morte) apontam para algo não capturado na imanência do sistema produtor de mercadorias, um exterior, que permanece dentro – mas também já além – deste sistema. É assim que Marcuse redefine a crítica imanente por um elemento externo intempestivo, indeterminado, não-dialético, no sentido de não-previsto no todo imanente repressivo:
"Na medida em que a sociedade antagônica se transforma em uma totalidade repressiva terrível, por assim dizer, se desloca o lugar social da negação. O poder do negativo surge fora dessa totalidade repressiva, a partir de forças e movimentos que ainda não estão manietados pela produtividade agressiva e repressiva da chamada ‘sociedade da abundância’, ou que já se libertaram desse desenvolvimento (...) E a essa oportunidade corresponde a força de negação no interior da ‘sociedade da abundância’, força essa que se revela contra esse sistema como um todo. A força da negação, como sabemos, não está hoje concentrada em classe alguma. Ela hoje ainda é uma oposição caótica e anárquica, política e moral, racional e instintiva: a recusa a participar e colaborar, o nojo diante de toda prosperidade; o impulso de protesto é uma oposição débil e não organizada. Mas, creio, ela se baseia em impulsos e objetivos que se encontram em contradição inconciliável com o todo existente." (Marcuse, "Sobre o conceito de negação na dialética"[1966] in:__. Idéias sobre uma Teoria Crítica da Sociedade. Rio de Janeiro, Zahar, 1972, p.164-5, g.m.).
Uma aposta, nada mais que isso, que pode ou não ser jogada e "levada a sério" em nosso tempo.
(São Paulo, fevereiro 2006 - abril 2007).
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