12 dezembro, 2020

Desexílios de Benedetti: o modesto retorno à vida imanente

Desexílios de Benedetti: o modesto retorno à vida imanente 

Cláudio R. Duarte 
    
    Não é no horizonte abstrato, puramente ideal ou teórico, que está a vida que mal ou bem tem de ser vivida e que resta ser vivida. Sem conformismo, sem resignação. Apenas com a confiança de que todo resto é também ideologia: autojustificação da derrota sob a capa imaginária de um heroísmo isolado impossível ou de mundos violentos a serem instituídos pelo puro desespero. Resta voltar à imanência e nela procurar as vias de uma radicalidade possível. 
    A radicalidade de Mario Benedetti está na vida "ideal" procurada na imanência da experiência social. Uma poética do "desexílio" - para usar um de seus termos de autointerpretação prediletos (Andamios. [1996] Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 2000). Ir para o exílio, mas retornar dialeticamente a partir dele: em busca da destruição de um certo imaginário construído pelo mundo capitalista e as formas estruturais de suas patologias narcísicas. Não o reencontro de uma origem intacta e autêntica, mas de um país desencantado e desmemoriado ("-Democracia es amnésia, ¿no lo sabias?", op. cit., p.18), que precisa ser reconstituído, andaime por andaime. Uma via aberta por Juan Carlos Onetti nos anos 30 e 40, em cujas personagens degradadas a vida ruim não é meramente confirmada, mas amargada, arrancada de sua naturalidade e desmentida, criando mundos de ficção que lidam precisamente com os elementos arruinados, imperfeitos, degradados, sem eliminar seu traço contraditório, de lucidez no desengano. Num breve comentário, Onetti saudava a poesia de Benedetti de 1956 (Poemas de la Oficina) nestes termos: "poesía inspirada en el sufrimiento sin melodrama de los pobres hombres, inmensa mayoría, que tienen que soportar un patrón, supervivir con un sueldo miserable y renunciar diariamente al futuro". Por um gesto diferente, Benedetti retorna do exílio (político) ao mundo real, pela poesia, pela prosa concisa mas não menos artisticamente traçada. Noutros termos, ele busca a utopia na imanência dessa vida socialmente mediada, nas "imagens" que nessa vida terrena desolada ainda respiram, crescem, se desenvolvem e enfraquecem, e que mesmo num "universo em ruínas" nos permitem lidar com o real transitório: tocar, cheirar, tratar, viver afinal a vida possível-impossível. Como na figura metafórica - mas também real - dessa mulher distante mas vital, plena e feliz, com que nos deparamos em seu belo poema chamado Utopías:

Utopías

Mário Benedetti

Cómo voy a creer / dijo el fulano
que el mundo se quedó sin utopías

cómo voy a creer / dijo el fulano
que el universo es una ruina
aunque lo sea
o que la muerte es el silencio
aunque lo sea

cómo voy a creer
que el horizonte es la frontera
que el mar es nadie
que la noche es nada

cómo voy a creer / dijo el fulano
que tu cuerpo / mengana
no es algo más de lo que palpo
o que tu amor

ese remoto amor que me destinas
no es el desnudo de tus ojos
la parsimonia de tus manos

cómo voy a creer / mengana austral
que sos tan sólo lo que miro
acaricio o penetro
cómo voy a creer / dijo el fulano
que la utopía ya no existe
si vos  / mengana dulce
osada / eterna
si vos / sos mi utopía.

(in: Benedetti, M. Antología poética. Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 2000, p. 227-8.)

Tradução de C.d.A.:

Utopias

Como vou crer / disse o fulano
que o mundo ficou sem utopias

como vou crer / disse o fulano
que o universo é uma ruína
ainda que o seja
ou que a morte é o silêncio
ainda que o seja

como vou crer
que o horizonte é a fronteira
que o mar é ninguém
que a noite é nada

como vou crer / disse o fulano
que teu corpo / sicrana
não é algo mais do que apalpo
ou que teu amor

esse remoto amor que me destinas
não é o despir-se de teus olhos
a moderação de tuas mãos

como vou crer / sicrana austral
que és tão somente o que vejo
acaricio ou penetro
como vou crer / disse o fulano
que a utopia já não existe
se tu / sicrana doce
ousada/ eterna
se tu / és minha utopia

(Versão: C. de A.  in: https://bancodapoesia.org/tag/mario-benedetti/).

    Divisar os elementos utópicos no horizonte futuro, liquidar os obstáculos mentalmente (a noite, o mar, a morte), criar mundos imaginários etc. nada disso impede de viver o sonho remoto no presente, nesse amor que ensina a amar e abrir o caminho para se viver o seu núcleo real na imanência.  

    Nos contos de La muerte y otras sorpresas (Buenos Aires: Siglo XXI, 1968), essa temática do retorno à vida comum para nela existir e tocar a vida possível, é um traço recorrente. Se a imediatidade representa a reificação, a mediação pode ser a reificação duplicada, fantasmagórica, enganosa. Só encarando de frente a vida reificada podemos encontrar uma saída. 

    Em "El Otro Yo", encontramos isso e algo mais: a ironização recíproca do cotidiano pelo imaginário e do imaginário pelo cotidiano.  Seguem o original e a tradução que preparamos (op. cit., p. 80-81):

El Otro Yo 

Se trataba de un muchacho corriente: en los pantalones se le formaban rodilleras, leía historietas, hacía ruido cuando comía, se metía los dedos a la nariz, roncaba en la siesta, se llamaba Armando Corriente en todo menos en una cosa: tenía Otro Yo. 
El Otro Yo usaba cierta poesía en la mirada, se enamoraba de las actrices, mentía cautelosamente, se emocionaba en los atardeceres. Al muchacho le preocupaba mucho su Otro Yo y le hacía sentirse incómodo frente a sus amigos. Por otra parte el Otro Yo era melancólico, y debido a ello, Armando no podía ser tan vulgar como era su deseo. 
Una tarde Armando llegó cansado del trabajo, se quitó los zapatos, movió lentamente los dedos de los pies y encendió la radio. En la radio estaba Mozart, pero el muchacho se durmió. Cuando despertó el Otro Yo lloraba con desconsuelo. En el primer momento, el muchacho no supo qué hacer, pero después se rehizo e insultó concienzudamente al Otro Yo. Este no dijo nada, pero a la mañana siguiente se había suicidado. 
Al principio la muerte del Otro Yo fue un rudo golpe para el pobre Armando, pero enseguida pensó que ahora sí podría ser enteramente vulgar. Ese pensamiento lo reconfortó. 
Sólo llevaba cinco días de luto, cuando salió a la calle con el propósito de lucir su nueva y completa vulgaridad. Desde lejos vio que se acercaban sus amigos. Eso le lleno de felicidad e inmediatamente estalló en risotadas.
Sin embargo, cuando pasaron junto a él, ellos no notaron su presencia. Para peor de males, el muchacho alcanzó a escuchar que comentaban: «Pobre Armando. Y pensar que parecía tan fuerte y saludable».
El muchacho no tuvo más remedio que dejar de reír y, al mismo tiempo, sintió a la altura del esternón un ahogo que se parecía bastante a la nostalgia. Pero no pudo sentir auténtica melancolía, porque toda la melancolía se la había llevado el Otro Yo.

 

O Outro Eu

Ele era um rapaz comum e totalmente corrente: usava calças com joelheiras, lia quadrinhos, fazia barulho quando comia, cutucava o nariz com o dedo, roncava durante a siesta, se chamava Armando Corrente em tudo menos em uma coisa: tinha um Outro Eu.

O Outro Eu usava certa poesia no olhar, se apaixonava pelas atrizes, mentia cautelosamente, se emocionava com o entardecer. O rapaz se preocupava muito com seu Outro Eu e e isso o fazia sentir-se desconfortável na frente de seus amigos. Já o Outro Eu era melancólico e, por causa disso, Armando não podia ser tão vulgar quanto desejava.

Uma tarde Armando chegou cansado do trabalho, tirou os sapatos, moveu lentamente os dedos dos pés e ligou o rádio. Na rádio tocava Mozart, mas o rapaz adormeceu. Quando acordou, o Outro Eu chorava com desconsolo. No primeiro momento, o rapaz não soube o que fazer, mas depois se refez e conscientemente insultou o Outro Eu. Este não disse nada, mas na manhã seguinte havia se suicidado. 

No princípio, a morte do Outro Eu foi um duro golpe para o pobre Armando, mas depois pensou que agora sim poderia ser inteiramente vulgar. Esse pensamento o reconfortou.

Ele estava há apenas cinco dias de luto quando saiu pelas ruas com o propósito de exibir sua nova e completa vulgaridade. De longe viu que seus amigos se aproximavam. Isso o encheu de felicidade e o fez imediatamente explodir em risadas. No entanto, quando passaram por ele, não notaram sua presença. Para piorar, o rapaz pôde escutar o que comentavam: "Pobre Armando. E pensar que parecia tão forte, tão saudável".

O rapaz não teve outro remédio que parar de rir, e, ao mesmo tempo, sentiu na altura do peito um aperto que se parecia muito à nostalgia. Mas ele não pôde sentir autêntica melancolia, porque toda a melancolia tinha sido levada pelo Outro Eu.


    Desde o início, o que se tem aqui é a imediaticidade das coisas tal como aparecem no mundo reificado: as marcas de uma vida cercada por objetos banais, pela rotina do trabalho, pela mediação da cultura industrializada, a própria música erudita instrumentalizada pela rádio, o pesado silêncio e a vulgaridade das ações de um sujeito acorrentado a essa rotina imposta pelo capital. O "Outro Eu" - poético, melancólico, preso ao imaginário feito de refugos culturais -, contudo, não é menos reificado, convertendo-se em falsa ruptura, ideologia que se erige em defesa dessa reificação. 
   A concisão formal do texto, nesses quatro últimos parágrafos, torna-o algo extraordinário. Esse Outro Eu escapista enfim morre, se suicida, aparentemente de desgosto pela vida alienada de Armando. Mas a verdadeira recusa, através de um "insulto" consciente, parte de Armando Corrente. Trata-se de um rapaz comum que busca a vida na imanência e sai alegre à procura de um mundo compartilhado com amigos. O que resta é a descoberta de que esses outros estão atrelados à ideologia, à mentira do "Outro Eu" do amigo. Eles notam a sua presença, mas o ignoram. Armando fica com o sufoco no peito, algo como uma nostalgia. Mas já sem a melancolia. A velha estética do duplo é ironicamente conduzida ao depósito da memória.
    Para nós, a vida de Armando Corrente é nada mais que a vida corrente, talvez já além dessas correntes; a "vida" real a desejar está além do Eu e do Outro Eu, ambos falsos e sujeitos ao imaginário surrado, desbotado mascado como chiclete. É somente no eu real, sujeito ao trabalho e a suas coerções rotineiras, que pode ser construída a contraposição possível.



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