11 março, 2018

Adorno e a suposta ausência da dupla negação na Dialética Negativa


Cláudio R. Duarte


Adorno suspende a dupla negação, deixando o negativo sobrar como negativo. Será só isso? Certamente o negativo vem do alto, e em primeiro lugar, do Capital, da totalidade que se impõe sobre cada sujeito e sobre cada momento da sociedade que busca sobreviver à avalanche de coerções impostas pela reprodução das leis do sistema.

Mas por isso mesmo, Adorno jamais abandona a necessidade da Aufhebung - superação - completa do negativo. 
O antagonismo é a condição essencial desta sociedade: 

"Nos próprios indivíduos exprime-se o fato de o todo, incluindo aí os indivíduos, só se conservar por meio do antagonismo. Inumeráveis vezes, mesmo os homens conscientes e capazes de uma crítica do universal são impelidos por motivos incontornáveis da autoconservação a ações e atitudes que ajudam o universal a se afirmar de maneira cega, por mais que por sua consciência eles se oponham a ele. É só porque eles precisam tomar sobre si o que lhes é estranho para sobreviver que surge a aparência daquela reconciliação que a filosofia hegeliana, incorruptível em seu reconhecimento da preeminência do universal, transfigurou em ideia corrompendo-se. Aquilo que reluz como se estivesse acima dos antagonismos equivale ao enredamento universal. O universal cuida para que o particular submetido a ele não seja melhor do que ele mesmo. Esse é o cerne de toda identidade produzida até hoje.
Visualizar a preponderância do universal lesa psicologicamente o narcisismo de todos os indivíduos e da sociedade democraticamente organizada até um nível insuportável. A descoberta da ipseidade como não-existente, como uma ilusão, transformaria facilmente o desespero objetivo de todos em desespero subjetivo e lhes roubaria a crença que a sociedade individualista lhes inculca: a crença de que eles, os indivíduos, são o substancial." (Dialética negativa).

No impulso de nossa autoconservação temos de usar os meios sistêmicos de autoafirmação -- direito, trabalho, dinheiro, mercadoria -- dando a ideia para nós mesmos de que um particular pode sobreviver ao todo simplesmente contrapondo-se a ele, e assim podendo se reconciliar com o sistema de alienações.

Adorno não dá consolo: chama isso de mero narcisismo. Noutros termos, a afirmação individualista desesperada ou lutas sociais imanentes têm de reproduzir as relações de produção vigentes, reforçando a integração e as identidades --- mas com essas, face ao progresso das forças produtivas, também, o processo de sua possível desintegração.

A crítica do trabalho - mediação das mediações sempre implícita em tudo o que Adorno escreve - desponta então no horizonte:

"O princípio de realidade ao qual os homens espertos obedecem para sobreviver cativa-os como magia negra; eles são tanto menos capazes e estão tanto menos dispostos a se livrar do fardo porque o mágico dissimula esse peso para eles: eles tomam esse fardo pela vida. Em termos metapsicológicos, o discurso sobre regressão é pertinente. Tudo aquilo que se denomina hoje em dia comunicação, sem qualquer exceção, não é senão o barulho que não nos deixa escutar a mudez dos que estão encantados. As espontaneidades humanas individuais, e em uma larga medida também as supostamente oposicionais, são condenadas à pseudocriatividade; e, potencialmente, à debilidade. Os técnicos da lavagem cerebral e similares praticam de fora a tendência antropológico-imanente que, por sua parte, é com certeza extrinsecamente motivada. A norma histórico-natural da adaptação, uma norma com a qual mesmo Hegel concorda a partir da sabedoria de botequim segundo a qual é preciso quebrar a cara, é, exatamente como em seu caso, o esquema do espírito do mundo concebido como encanto. (...)"(ibid.)

E no trecho final vem a crítica que conecta trabalho, sujeito do trabalho e dominação social, e que pressupõe a dupla negação do universal e do particular existentes.


"O conceito de fim ao qual a razão se alça em virtude de uma autoconservação consequente teria de se emancipar do ídolo do espelho. O fim seria o que é diverso do meio, do sujeito. Isso, contudo, é obscurecido pela autoconservação; ela fixa os meios como fins que não se legitimam ante razão alguma. Quanto mais amplamente crescem as forças produtivas, tanto mais a perpetuação da vida concebida como seu próprio fim perde a sua obviedade. Degenerescência da natureza, essa finalidade própria se torna em si mesma questionável, enquanto nela amadurece a possibilidade de algo diverso. A vida prepara-se para se tornar o meio desse algo diverso, por mais indeterminado e desconhecido que ele possa ser. Sua organização heterônoma, porém, o inibe cada vez mais. Como a autoconservação foi desde sempre difícil e precária, as pulsões egóicas, seu instrumento, possuem uma força quase irresistível, mesmo depois que, por meio da técnica, a autoconservação se tornou virtualmente fácil, uma força maior do que as pulsões objetivas: foi isso que Freud, o especialista nessas pulsões, desconheceu. Supérfluo em vista do estado das forças produtivas, o esforço torna-se objetivamente irracional, e, por isso, o encanto torna-se metafísica realmente dominante." (Ibid.)




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