23 junho, 2005

SOBRE KAFKA

O mundo (des)figurado de Kafka
O estilhaçamento da experiência e da aparência social da modernidade

Cláudio R. Duarte
1-
Se atentarmos bem, a prosa de Kafka é feita de estilhaços imaginários micrológicos, como que arrrancados da vida cotidiana moderna, só que muitas vezes ampliados por uma lupa: não o representam diretamente, mas o distorcem, o exageram, o alegorizam, levando ao extremo certa lógica social. Seu irrealismo é o outro oculto da realidade social das grandes cidades capitalistas. A vida urbana, apesar das aparências, é virtual ou realmente estraçalhada, quando nesta se perde a tradição e a experiência coletiva e comunitária, substituída pelos laços coisificados da gigantesca divisão social do trabalho. O mundo kafkaniano destrói o que resta desta aparência de vida civilizada e emancipada da cidade européia. Por isso, talvez, "há esperança, só não para nós". Isso soa realmente pessimista, até como uma metafísica do nada. Mas é apenas parte da aparência social a ser destruída.
2-
A estrutura da ficção kafkaniana multiplica a aparência - a falsidade -, torcendo-a e reduzindo-a a quase nada, para que figure o absurdo. Anatol Rosenfeld chamou esse caminho tortuoso e inconcluso da narrativa de "sintaxe da frustração". Eis realmente o chão de muitas das pequenas narrativas de Kafka. Elas não podem mais narrar qualquer Totalidade ou Grande Sentido. Isso vale também para seus romances fragmentários. Estratégico nesta escrita: ser curta e bastante coerente em si, embora muito opaca, enigmática e aberta - ou seja, ser uma "pequena narrativa" - faz parte do método de ruptura e estilhaçamento da aparência simbólica. Por isso ela sempre tinge-se de negro, tem a forma do fragmento e seu sinal é negativo ; por isso também em Kafka, o gestual, o pré-linguístico - como sugeriu Adorno - diz tacitamente mais do que o dito. Já não há nada explícito a se dizer, nenhum conselho a dar, nenhuma meta a alcançar a não ser fugir para adiante (como no micro-relato de "A partida"). Daí, aliás, o disparate de nossa vida ideológica contemporânea: aquilo que em Kafka apresentava-se de modo negativo - como fim das "grandes narrativas" -, ressurge hoje, de modo muito diverso, com sinal trocado, na histeria festiva do "pós-modernismo" de Lyotard e cia., simulando um falso adeus ao moderno mundo do capital.
3-
O rompimento da aparência da normalidade constitui uma galeria de personagens desfiguradas, tortas, prejudicadas, animalizadas, marcadas literalmente na própria pele, figurando em parábolas do desastre social qual fantasmas ou monstros semi-humanos. Suas parábolas, tal como as relações sociais sob a forma da mercadoria, parecem e são pesadelos reais, "relações sociais entre coisas". A desfiguração social é tanto objetiva como subjetiva. No deserto do capital já não pode reluzir qualquer estrela simbólica, já não se tem mais imagem de futuro ou de sentido objetivo da história; este, há muito virou uma ideologia ultrapassada. Por outro lado, como aponta Benjamin, o "corcunda", "o homem cuja cabeça se inclina profundamente sobre seu peito", "é a figura primordial da deformação" kafkaniana do caráter do sujeito. Este, aparentemente inocente ou passivo, está sempre pronto a expiar por alguma culpa, cobrada no cartório, no aparato infernal da Justiça. Não há sujeito inocente em Kafka, não há quem não mereça, no fundo, aquilo que obscuramente sofre, por ser parte ativa de seu próprio sofrimento.
Assim é que, num instante, sem sequência anterior e sem fundamento algum, Gregor Samsa deforma-se numa "barata"; não em sonho, sem metáforas, torna-se realmente uma barata, um inseto monstruoso, repentina e absurdamente, literalmente uma barata, o que talvez sempre tinha sido, secretamente, em seu cotidiano mesquinho de caixeiro-viajante. E no entanto, na barata se vislumbra um potencial humano, mais que em seus familiares fossilizados, para quem parece já não restar mais qualquer esperança: há muito, talvez, são baratas, só ainda não perceberam. Samsa, de certa forma, não compactuava, recusava entrar de corpo e alma no nexo universal da troca mercantil onipotente, diferente de seu pai, de seus familiares e criados, de seu chefe, aliás, o grande porta-voz do superego social (para além do pai), batendo a sua porta, no dia fatal, em que seu funcionário não fora trabalhar. Funcionário móvel, obrigado a tomar trens, Samsa aprendeu a fechar as portas. Em casa, também a portas fechadas, ele fazia trabalhos artesanais, objetos não-funcionais do ponto de vista capitalista (um pouco como o ser estranho "Odradek", do conto "Preocupações de um pai de família"). Seu quarto então aparece como seu refúgio, como locus mínimo de apropriação de si, do tempo e do espaço: e é ele que irá se deteriorar, não por acaso, junto com o seu corpo, ao longo da narrativa. Mas de onde a culpa ? Embora resistente, Samsa realmente não rompia com tal ordem de coisas, tal como Josef K. em O processo ou K. em O castelo. Samsa odiava o trabalho, mas sempre adiava a ruptura, integrando-se pensando em poder pagar a dívida familiar: daí o castigo, vindo como um trovão. Esse choque fugaz da metamorfose absurda, que lança num piscar de olhos tudo ao abismo, é o próprio estilhaçar da aparência ideológica da civilização moderna e da couraça narcisista imaginária do sujeito "normalizado". Só neste estilhaçamento do nexo de sentido objetivo e subjetivo surge a verdade negativa da falta de sentido da sociedade existente, da obsolescência da necessidade de continuar a nela sobreviver como sujeito da troca mercantil. Samsa paga sua não-integração na ordem com sua metamorfose naquilo que sempre fora, com a degradação do corpo, com a morte. A culpa e o castigo inexorável estão longe de uma metafísica pessimista. "Quanto maior o radicalismo com que apresenta a impossibilidade da liberdade... tanto mais viva se torna a consciência da impossibilidadede se viver como vivemos, tanto mais inexorável surge a imagem do homem verdadeiro que ainda não existe..." (Eimrich, apud Anatol Rosenfeld, Texto/Contexto, p.227-8).
4-
Num texto curto chamado Correios, Kafka consegue nomear com perfeição o fundamento da desfiguração social pelo trabalho abstrato moderno:

"Correios

Foi-lhes dado escolher: serem reis ou correios de reis. Como crianças, todos quiseram ser correios. Por isso há apenas correios, que correm mundo gritando uns para os outros (pois não existem reis) mensagens que afinal perderam o sentido. De bom grado poriam termo às suas desgraçadas vidas, mas não se atrevem - por causa do juramento profissional".
Neste texto curto, típico de um mestre, parece que temos todos os elementos da equação social acima decifrada: a autonomia do sujeito, virtual, é a do infante ou do regredido moralmente; a escolha ativa de ser mera correia de transmissão ou locomotiva de uma máquina sem-sentido; a inexistência de reis; a reprodução do mesmo, aparentemente ad infinitum, pelo juramento profissional completamente fetichista (a um rei inexistente); enfim: em negativo, a figuração da possibilidade do outro, da morte do Mesmo, da identidade, da vida mutilada de um sujeito monádico obsoleto.
Só assim, diz Walter Benjamin (Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte),
"para eles e seus semelhantes, os inábeis e os inacabados, ainda existe esperança."

3 comentários:

Anônimo disse...

Clá,
vc acha que escolhi ser correio pq sempre fui e serei criança, fugindo da maturidade pra me esconder da morte?
Bj
Su

Cláudio R. Duarte disse...

não Su, acho que escolhemos ser correios também porque só tivemos esta escolha disponível ... pelo menos por enquanto. E por isso enfrentamos a morte (se fôssemos reis não veríamos a morte, senão no dia de nossa morte mesmo). Em todo caso, é importante ressaltar que não somos correios por natureza.

um beijo,

Claudio

Anônimo disse...

Interessante análise do texto "Correios", que não conhecia.
Mudando um pouco de assunto. Pelo que me lembro, o Odradek era um ser simpático, apesar de não funcional e desprezado pelo narrador. Será que o autor quis expor uma contradição, a simpatia do leitor e o desprezo do narrador?
Isso tornaria Odradek um herói