12 junho, 2005

VOCABULÁRIO CRÍTICO DO VALOR

VOCABULÁRIO CRÍTICO DO VALOR(em construção)
por Cláudio R. Duarte

Nota de apresentação
Nada mais iluminista do que a idéia de esclarecer a "sociedade civil" através da opinião pública – e, tal como no exemplo clássico, através da produção de um Dicionário: lembre-se dos Enciclopedistas franceses ou do Dicionário Filosófico de Voltaire. Este vocabulário se inscreve dentro - mas também fora desta tradição. Dentro porque se trata da continuação de certo ensaísmo crítico. Mas é, ao mesmo tempo, uma tentativa de levar a sério a crítica do Iluminismo, contra-argumentando por dentro de suas formas mais sistemáticas, baseadas em sua filosofia da representação naturalizante, sempre fundamentada no ponto de vista coisificado do sujeito burguês. Não há aqui qualquer pretensão de "esclarecer" autoritariamente as "massas" ou de ser o seu porta-voz.

Trata-se aqui, em primeiro lugar, da crítica do valor e de suas mediações fundamentais. Neste sentido, este Vocabulário só pode colocar-se como ferramenta na crítica imanente radical da sociedade da mercadoria e para além dela, não como portador da verdade absoluta ou positiva dos fatos; procura romper com a lógica da representação, mesmo que tenha de correr sobre seu terreno, travando relações antagônicas a ela: pois a sociedade da mercadoria se reproduz através de mediações, de formas lógicas reais, que abstraem o conteúdo do mundo vivido empírico, ganhando autonomia exatamente como re-presentações dessa realidade; autonomia que, quanto mais potente, mais produzirá conflitos e contradições entre a realidade e sua representação. Sabendo disso, uma teoria crítica só pode lidar com conceitos críticos e negativos, historicamente determinados, que precisam adquirir significados flexíveis, dialéticos, conforme demandem as análises concretas. A verdade ou correção de seus termos será sempre relativa ao movimento objetivo dessa própria sociedade, uma função de sua confrontação com os fenômenos empíricos concretamente apreendidos.

Muitas vezes procura-se um dicionário para abreviar o pensamento próprio sobre os termos que se usa numa leitura do mundo. Desta maneira, pode surgir talvez a perspectiva mentirosa de que tudo já teria sido pensado quando se "aplicou" os conceitos certos, numa dispensa ilusória da análise conceitual historicamente refletida e contextualizada. Neste Vocabulário tentou-se impedir, por isso, o raciocínio preguiçoso da parte do leitor.

Após uma curta definição geral, avança-se um desenvolvimento do conceito que tenta levá-lo até o seu limite lógico e histórico, apontando, na medida do possível, os focos do movimento para além do próprio conceito. Seu intuito não é, por isso, a representação verdadeira, mas levar ao impensado e indeterminado na história, à apresentação histórica e concreta da própria realidade em processo. Por isso mesmo, pretende-se dar a este Vocabulário o caráter de uma "obra em progresso", incorporando novos verbetes à lista, reformulando constantemente os já publicados ou estabelecendo novas versões críticas para um mesmo verbete. Por se tratar da crítica das categorias fundamentais da sociedade moderna, ataca-se em especial o "marxismo tradicional" enquanto paralisia da reflexão essencialmente histórica e dialética de Marx.




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Alienação

Antieconomia
Formas de luta anticapitalista que se contrapõem à economia burguesa moderna como esfera autonomizada e separada do controle direto da sociedade. A economia de mercado ou estatalmente planejada apenas pode ser abolida com a superação de mercado e Estado.
No marxismo tradicional a "economia" foi tomada como esfera ontologicamente separada e assim eternizada como um princípio de toda e qualquer sociedade, controlada pela esfera da "política" (Estado) também tomada como esfera ontológica do homem.
Anti-humanismo

Antipolítica
Formas de luta anticapitalista que se contrapõem à esfera da política institucional no âmbito partidário-estatal, em busca da autogestão da vida social pela própria sociedade comunicativamente organizada.
Na crítica do valor, o Estado e a democracia parlamentar são vistos como partes integrais do sistema produtor de mercadorias, fundados na infidelidade da representação hierárquica e abstrata da sociedade, na forma indireta de comando, servindo à reprodução ideológica e prática da ordem capitalista ou à administração da crise do capital e da miséria social. Tais lutas podem reinvidicar recursos ao Estado, já que este é um nó estratégico de recursos e forças produtivas sociais, mas se recusam a centrar sua luta neste foco e mesmo ocupar cargos administrativos e legislativos no governo desta máquina fetichista. O sentido da antipolítica é a negação concreta da esfera separada e alienada do "político" em relação ao contexto social.
No marxismo vulgar a "política" e o Estado foram quase sempre positivados e ontologizados como esfera separada, eternamente necessária, e tornados o centro de toda luta socialista.


Capital (relação-capital)
O capital é a essência do sistema produtor de mercadorias. A produção de mercadorias em massa visa à exploração de trabalho abstrato com o objetivo de produzir e acumular quantidades cada vez maiores de valor e mais-valor, ou seja, capital, sem nenhuma relação imediata e qualitativa com as reais necessidades humanas e ecológicas. Na relação-capital temos então uma tríade: D-M-D´: valor-dinheiro investido na produção de mercadorias (exploração de trabalho abstrato, determinado especificamente como produtivo, o que pressupõe o assalariamento) para a produção de mais valor-dinheiro (capital).
O marxismo vulgar confundiu essa relação de produção essencial com sua expressão jurídica - a "propriedade privada dos meios de produção". Desta forma, como nas revoluções socialistas até hoje, mudando-se o sujeito empírico da propriedade - a burguesia - pelo "Partido Comunista" e sua burocracia, manteve-se a mesma relação de produção através do domínio do trabalho alheio pela burocracia estatal, que despoticamente regula, na lógica quantitativa do valor, a produção de riqueza abstrata (dinheiro).

Coisificação (reificação)
Processo ao mesmo tempo subjetivo de cristalização e naturalização de processos sociais como se fossem eternos pois intrínsecos às coisas materiais do mundo, quanto objetivo, isto é, um processo histórico socialmente necessário, produzido pela materialização fetichista das diversas formas abstratas da valorização do capital.
O termo foi ressaltado primeiramente por Lukács em "História e Consciência de Classe" (1922), que o pinçou em Marx, quando este se refere à forma de cristalização das figuras alienadas do processo de valorização do capital. Como o nome diz, algo que é dinâmico e vivo é tornado algo rígido, morto, estático, fragmentado, abstrato, sem relações com a vida e a dinâmica social mais ampla. A história se converte em segunda natureza*. A economia política clássica de Smith a Ricardo via o capital se constituir a si mesmo, sem relação com os elementos em jogo: o juros como o dinheiro que faz dinheiro, a renda da terra como se fosse um fruto da própria terra e o salário como o único fruto do trabalho (Marx mostrou que o processo é muito mais complexo: na verdade, o trabalho produtivo - o trabalho abstrato - é a única fonte de todo valor e mais-valia*, que então é distribuída nos diversos rendimentos: lucro, juros, renda, salários etc.) ...a economia neoclássica, da mesma forma, toma o dinheiro como algo abstrato, uma soma numérica quase arbitrária, que não tem muita relação com a quantidade e qualidade do trabalho produtivo. Ou seja, o "valor" do dinheiro é eterno e uma desvalorização estrutural é impossível. Em suma, aquilo que está realmente ligado, mantendo relações, aquilo que está em movimento, em constante mudança na sociedade e no indivíduo, no geral e no singular, tudo isso é "coisificado" (petrificado, congelado etc.) pelo sujeito.
Mas a coisificação não é só uma questão de ponto de vista subjetivo, um erro de perspectiva do observador. Ela é o lado subjetivo de um processo de fetichização objetiva do real. Não é que a economia política simplesmente erra em dizer que o "dinheiro gera dinheiro" ou "a terra gera renda". Certo, no fundo, é o trabalho produtivo que gera dinheiro, movimenta a sociedade, inclusive gera a possibilidade do juros do banqueiro (ou a renda do proprietário de terras). Mas, de fato, o banqueiro ganha sem produzir nada, tal qual o proprietário de terras. A esfera do crédito e a economia como um todo ganha vida própria, torna-se "animada", vira "fetiche automático". O mercado funciona objetivamente como um Sujeito Automático*, enquanto os interesses reais dos homens são coisificados, emudecidos, deixados de lado.
Ainda pelo lado objetivo, o capital segundo Marx é a forma abstrata básica de mediação social, que se materializa - isto é, se coisifica - a cada etapa do processo de reprodução do capital, mas não é ela mesma uma coisa. O capital é uma relação social histórica entre trabalho assalariado e investidores de dinheiro, tendo em vista a produção de valor e mais-valia. Concebido como relação social ele deixa de ser "coisa natural" e "eterna": é uma relação social que pode ser superada (superar o capital é superar o trabalho alienado etc.). O capital, como totalidade processual e contraditória, é uma relação social dinâmica, envolvente (por isso conquista o mundo), autônoma, fora de nosso controle, e é por isso que Marx chama o valor-dinheiro, no circuito capitalista (D-M-D´: Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro+lucro), ou seja, o capital em curso de valorização, de "sujeito automático"* (O Capital, cap.5). Só que este "Sujeito" necessariamente se concretiza, se cristaliza, se coisifica, em várias formas materiais: no papel-dinheiro, nas máquinas de uma empresa capitalista, na força de trabalho em operação na fábrica, nas mercadorias em estoque, e em todos os rendimentos: na renda da terra, na esfera do crédito, no salário etc. Estas são as várias manifestações materiais do capital - sem autonomia real e totalmente dependentes do processo global de reprodução do capital. O processo de valorização do capital engloba todos estes momentos. O capital, como movimento contínuo de crescimento e acumulação do dinheiro, reifica-se e desfaz sua reificação a cada ciclo econômico, para continuar a se reificar novamente em outros processos produtivos, em novas relações sociais, em novos espaços construídos etc. Superar a reificação é superar essa forma de mediação alienada que domina o mundo, tornando-nos meras manifestações de si, como se fôssemos corpos alugados de um espírito diabólico.
Em suma, pode-se dizer que a reificação é tanto subjetiva (uma naturalização, uma ideologização ou mitologização conceitual do real), quanto um processo objetivo, produzido pela materialização do capital, historicamente necessária e determinada. Assim, a reificação subjetiva tem razão de ser. Ela já não é um mero "erro" conceitual, um "falsa consciência" que é dissipável com um estalar de dedos, com um esfregar de olhos. Em certo sentido, como diz Anselm Jappe, a consciência fetichista é a consciência "correta" de uma realidade invertida, fetichista, quase-metafísica (a metafísica do "sujeito automático", o capital), ela sim, uma realidade falsa, pois nos transforma em "coisas" ou nos faz identificar patologicamente processos sociais a relações entre coisas, formas sociais abstratas à própria materialidade técnica e coisal do mundo e, por fim, identificar desastrosamente pessoas a coisas ou instrumentos, a lidar com as pessoas apenas através da máscara de interesses econômicos egoístas e não de forma livre e solidária.

Crítica da cisão (ou dissociação/clivagem) de gêneros (ou sexos)


Crítica da forma-sujeito moderno



Crítica imanente (negação determinada) / superação (Aufhebung)

Crítica objetiva que desenvolve as contradições internas de seu objeto, até este se constituir ou desaparecer, alcançando sua "verdade".
Este é o "nervo da dialética" (Adorno). Pois esta última poderia ser definida como uma máquina de triturar visões de mundo (concepções morais, ideologias ou utopias) positivas e externas ao tempo histórico. O grande mal da crítica externa é pensar que já tem previamente a verdade, afirmando-a dogmaticamente contra o seu objeto, contra o próprio mundo (protótipo disso é a religião).

"A refutação não deve proceder de fora, isto é, não deve partir de pressuposições que se achem fora daquele sistema, às quais ele não corresponde (...). A verdadeira refutação tem que penetrar na força do adversário, e colocar-se no âmbito de seu vigor; atacá-lo fora dele mesmo, e sustentar suas próprias razões onde ele não se acha não adianta em nada no assunto" (Hegel, Ciência da Lógica).

Por isso Hegel recomenda:

"renunciar às incursões pessoais no ritmo imanente do conceito; não intervir nele com uma sabedoria arbitrária adquirida alhures – esta abstenção é, ela mesma, um momento essencial da concentrada atenção ao conceito" (Hegel, Fenomenologia do Espírito).

É por isso que em Marx não temos mais, a rigor, a afirmação de uma "filosofia", de uma "moral" ou de uma "utopia" estranha ao assunto que visa criticar. A dialética marxiana não parte de fundamentos ou essências ontológicas a priori. Seu objeto não é a práxis humana em geral ou o Homem, pois este aliás ainda não é "real": ele vive ainda, segundo Marx, sua pré-história* e como tal é apenas pressuposto em seu discurso crítico. Restringe-se então a falar sobre um objeto plenamente histórico – o valor-capital: trata-se de limitar-se à sua negação determinada, seguir e desenvolver o seu movimento contraditório, e não professar suas próprias opiniões ou pontos de vista subjetivos contrários.

Já o céptico que nega algo abstratamente, em bloco, sem examinar o conteúdo e as razões de seu oponente, é sempre também dogmático. E é por isso que o oponente, quando não é realmente negado por dentro e vencido por sua própria força, sempre retorna das cinzas num infinito perverso (o "mau infinito" de Hegel).

Em Marx trata-se, então, da "crítica da economia política": do exame de uma doutrina que tende a naturalizar todo o existente, partindo de seu conceito histórico fundamental – o valor, o fetiche do tempo médio de trabalho social; trata-se, em suma, da crítica de um conceito-realidade que determina e dá sentido à sociedade burguesa como um todo; e, aqui, o principal: um crítica feita segundo os próprios critérios lógicos desta sociedade:

"Verifica-se aqui", diz Marx em O Capital (no Cap. sobre a "Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro"), "no plano puramente econômico, isto é, do ponto de vista burguês, dentro dos limites do juízo capitalista, do ponto de vista da própria produção capitalista, sua limitação, sua relatividade, que ela não é nenhum modo de produção absoluto, mas apenas histórico, um modo de produção correspondente a certa época, limitada, de desenvolvimento das condições materiais de produção" (Livro III, t. I, p.186, S.Paulo, Nova Cultural, 1988).

Isto significa que Marx não tirou da cartola qualquer "teoria do valor", nem a postula ou a defende positivamente (como no marxismo tradicional), mas é porta-voz de sua crítica interna. Assim, em O Capital, no processo de apresentação (Darstellung) do sistema – da forma-mercadoria aos desenvolvimentos enlouquecidos do capital-fictício, passando pelos porões sombrios da acumulação primitiva sanguinária –, as representações (Vorstellungen) ideológicas da economia política perdem a cada momento suas máscaras, vindo à tona toda sua inverdade (verdade relativa), quando não todo o seu fingimento e dissimulação (Verstellung).

A crítica imanente é, portanto, sempre objetiva, opondo-se a pontos de vista externos, moralizantes, fora do contexto. Neste tipo de crítica, portanto, temos a própria racionalidade social, fundada no valor (ele mesmo "negado" e invertido em "sujeito automático", ibid., Liv. I, t.1, p.126), se autocriticando através do confronto de sua realidade com seus pressupostos ou ideais: assim, por exemplo, no processo de acumulação do capital, na extração de mais-valia e monopolização de todos os meios de produção pelo capital, os ideais sociais de igualdade e liberdade no mercado invertem-se necessariamente em seu contrário – em desigualdade e coação, em miséria e violência. Do mesmo modo também entende-se que "o próprio capital é a contradição em processo" (Grundrisse): é o próprio capital que, na fome de se auto-valorizar, tende à crise de sobre-acumulação e à auto-desvalorização no tempo histórico, corroendo seu próprio fundamento determinado (trabalho). O capital não tende a cair por objeções morais ou catástrofes naturais externas a ele, mas pela sua própria lógica contraditória. O valor levado ao infinito tornar-se-ia riqueza social, o trabalho levado ao infinito torna-se-ia tempo de não-trabalho social. Isto então depende da consumação da crítica imanente.

Mas é neste momento, então, e somente aí, que surge o impulso para o momento transcendente da crítica: o passo fora do sistema totalitário, para levar além da forma-valor dos produtos, além de toda sociedade burguesa. Entrava aqui a ação revolucionária dos "indivíduos livremente associados", para ir além de mercado e Estado, muito além, enfim, de toda centralidade imposta por um metro único que sujeita a todos, tal como faz o trabalho social abstrato. Ainda aqui este seria, segundo Marx, o resultado pressuposto criado pelas próprias leis internas do capital: seu executor final seriam os homens proletarizados, conscientes de que um outro mundo já é possível, através da luta pelo uso social das forças produtivas desenvolvidas no seio do próprio capitalismo.

No entanto, neste ponto, é preciso quebrar o feitiço da crítica dialética puramente imanente. É suficientemente claro para todos que a verdadeira emancipação não virá do colapso do sistema, por inércia de sua lógica contraditória imanente. Mas é claro também que uma "espiritualização dialética" forçada do proletariado, posto como sujeito-objeto idêntico da história, não rompe o laço do fetiche dialético, da realidade monetarizada que se automovimenta. Pois pode-se acusar o materialismo histórico de logicizar metafisicamente (ou se quisermos dialetizar ontologicamente*) o papel das forças produtivas* (proletariado incluso): daí toda sorte de teleologias abstratas imputadas ao processo histórico. O "marxismo ortodoxo" de Lukács, que fazia predominar o "método dialético" sobre todo o conteúdo histórico, abraça aqui o positivismo e a metafísica.

A teoria do colapso* e da revolução proletária não significam ainda emancipação, pois esta não pode ser deduzida de nenhuma teoria – antes será um fenômeno puramente social consciente e não uma conseqüência natural da dialética do valor. Tal momento interno da consciência só é realmente transcendente e emancipatório se levar além da abstração real* do valor, isto é, se realmente suprimi-lo (aufheben): não se trata de repor a lei do valor intacta sobre seus próprios pés (a utopia histórica de uma circulação simples não "desviada" e "envenenada" pelo capital), mas talvez de negá-la mais profundamente que apenas uma negação determinada (limitada ainda ao interior da forma-valor), típica da superação (Aufhebung) hegeliana (que é sempre, como lembra Adorno, a negação de uma negação: portanto sempre afirmativa, ontologizante, conservadora do conceito criticado, sem conseguir romper a imanência).

Tal momento interno transcendente tem, assim, dívida para com o materialismo*, jogando-o contra a dialética, sempre fundada num sujeito transcendental. Pois esse momento interno da consciência e da organização prática anti-sistêmica tem algo de externo, espontâneo e contingente, absolutamente não fundado num Sujeito a priori ou na mera realidade material. É somente um pressuposto não fundado, um possível realizável na consciência e na ação histórica real, vivida, corporal, desejante, comunicativa e talvez mesmo não-racional (por oposição à "razão instrumental" moderna). Depende sobretudo do entendimento mútuo sobre a produção e o consumo da riqueza social, livres do cárcere de ferro do valor.

Atenta à história e a suas possibilidades mais ricas, esta "consciência" (que já não é mais uma consciência, mas práxis social comunicativa) se intromete no livre curso do mundo, questionando também de fora sua racionalidade abstrata, fundada no valor, isto é, no sujeito burguês monadológico, trocador privado de mercadorias. Tal parece ser, enfim, a novidade da superação marxista (e, a bem dizer, adorniana) em relação à superação hegeliana. Só isso leva além da dialética, além do mundo preso ao feitiço moderno da totalidade e da contradição social.

Neste sentido, para concluir, a crítica do valor torna-se uma metacrítica: a crítica da crítica objetiva que o valor-capital, enquanto sujeito automático, faz a si mesmo; ou em outros termos, a crítica materialista, prático-sensível, que leva além, suprimindo as leis imanentes da "metafísica real" do valor-capital.
Crítica do valor
Crítica que visa à superação prática do fundamento de todo o sistema produtor de mercadorias* - a forma-valor - de onde se erige a essência do sistema social moderno enquanto modo de produção de capital.
No reducionismo empirista e sociologista do marxismo vulgar fez-se somente a crítica da burguesia e da propriedade privada dos meios de produção, mantendo-se o valor e suas derivações lógico-históricas (dinheiro, mercadoria, divisão capitalista do trabalho capitalista, cisão de gêneros, razão formal-instrumental, produtivismo, lógica acumulativa, Estado, mentalidade racista e antisemita, sociedade do espetáculo e cultura industrializada etc.) como fundamentos mais ou menos "invariantes" da socialização do homem. A crítica do valor, ao contrário, entende a forma-valor como historicamente determinada, como modo de socialização fetichista há muito obsoleto, tirando as conseqüências funestas dos processos sociais presididos por esta forma social.

Dialética

Num sentido materialista*, é a teoria e o método de exposição do automovimento do dinheiro na sociedade capitalista – ou, melhor dizendo: "dialético", num sentido rigoroso, é tão somente o movimento objetivo e auto-reflexivo da valorização do valor*, erigido em "sujeito automático"* (capital). A dialética sistematizada por Hegel é tão-somente a especulação metafísica* e ideológica*, historicamente exata e conseqüente, do movimento econômico cego e fetichista* da sociedade burguesa moderna. Falsa é, portanto, a tentativa de imortalizá-la como condição humana ontológica* ou princípio positivo demiurgo da natureza e da vida em geral. A dialética torna-se então uma teoria historicamente determinada, tal como a teoria do valor.

Como método, a dialética sempre dependerá da Razão (Vernunft) especulativa, vale dizer, do postulado teórico da unidade dos contrários – e aquilo que isso significa concretamente: a totalização e unificação coercitiva e violenta das diferenças reais num fundamento* subjetivo. E é desta unificação racional especulativa de todas as determinações analíticas, postas pelo Entendimento (Verstand), que se pensa qualquer movimento como superação* (Aufhebung): todo o Ser, toda a realidade natural e cultural é deduzida a partir da razão do sujeito monadológico, e assim forçosamente espiritualizada e reconciliada na Idéia transcendente. A "filosofia do sujeito" e o panlogismo são congênitos ao pensamento dialético. A dialética, assim, mesmo que invertida pelo materialismo, é inseparável do idealismo* absoluto de Hegel. Pois o materialismo não pode recusar o idealismo metafísico de forma abstrata, mas precisa restringir-se à sua crítica imanente* (seguindo a lição da própria dialética hegeliana): é assim que o valor apresenta-se como fundamento "metafísico-real" da sociedade moderna, pois esta opera verdadeiramente como uma metafísica social, historicamente determinada, tal como pressupõe a teoria marxista do "fetichismo da mercadoria"*.

Assim, o postulado metafísico do desenvolvimento histórico-natural das contradições - de que tudo na realidade está em proccesso de construção ou destruição - remete socialmente ao movimento cego e contraditório do valor, feito "por trás das costas" dos agentes reais que, fazem sim a história, mas sem o saber. Por isso, deve-se levar a sério o teorema hegeliano de que "a substância é sujeito" (Fenomenologia do Espírito, Introdução): o valor – cuja substância é o trabalho – é a fonte originária do Negativo que, erigido em Sujeito (valor capitalizado), a tudo transforma, mobiliza, inter-relaciona e subsume, estabelecendo mediações, superando as contradições que ele mesmo pôs para si, enfim, reproduzindo seus pressupostos e sobrevivendo mumificado, como que repousando em si mesmo, como o único sujeito verdadeiro da modernidade. E se para Hegel isto era o triunfo da Razão, para o materialismo trata-se da destruição da realidade social-natural e da própria racionalidade ocidental. Com a forma dialética de pensar, o Iluminismo projeta pela última vez a esperança da reconciliação social, mas também o cativeiro da imanência eterna à forma-valor, assegurado inclusive, nos Princípios da Filosofia do Direito, pelos cães de guarda do Estado forte.

O mistério social constituído pelo fetichismo é esclarecido pelo pensamento dialético materialista justamente através da pesquisa da mediação real dos vários momentos da vida – aparentemente isolados, positivos e externamente diferenciados – pela totalidade* do processo de valorização do capital. Para o materialismo isso corresponde ao rebaixamento de tudo a simples meio instrumental da valorização, e por isso, ele dirige-se, tal como diz Adorno na Dialética Negativa, ao particular, àquilo que resiste sob o peso esmagador do falso universal, isto é, àquilo que nega, se move e escapa às redes da troca mercantil. A contradição é sentida dolorosamente. Não pode ser simplesmente apagada por um furtar de olhos, para o desejado reino da pura diferença e do imediato (como no pensamento pós-moderno atual), mas tem de ser enfrentada pela crítica imanente. Pois quem pensa sem dialética na sociedade da mercadoria é vítima da contradição lógica, e cedo ou tarde é obrigado a se contradizer subjetivamente. Pois tudo no capitalismo tende a se inverter em seu contrário: a troca de equivalentes torna-se troca de não-equivalentes e desigualdade social, a racionalidade individual torna-se irracionalidade social, a atividade concreta "consciente" torna-se trabalho abstrato inconsciente, o humanismo torna-se anti-humanismo*, ou, este último, o anti-humanismo, pretensamente destruidor da metafísica, torna-se a apologia das condições sociais realmente metafísicas e violentas do existente (pós-modernismo). O próprio valor desvaloriza-se no tempo e torna-se potencialmente riqueza material sem valor.

Como sempre, o marxismo tradicional* quis ontologizar aquilo que é historicamente determinado: agora a dialética. Em suas mãos ela virava bruxaria metodológica. Como "dialética do processo de trabalho" (o próprio Marx nas linhas em que segue as especulações hegelianas a respeito da atividade produtiva em geral), como "dialética da luta de classes" (o proletariado convertido em "sujeito oculto" da modernidade, tal como em Lukács), como "dialética da natureza" (Engels) ou ainda, talvez no pior dos casos, como no "ABC da dialética materialista" (Trotsky) ou nas "leis da dialética (do socialismo científico)" (Engels, Stalin etc.) temos a conversão da dialética num método subjetivo, como pura Forma platônica que se aplica a qualquer conteúdo da realidade. O marxismo falsamente ontologizado simplesmente ignorava que jazia sob seus pés apenas o fetichismo da mercadoria, vale dizer, a projeção neurótico-obsessiva dos desvarios da forma-valor sobre a mera materialidade do mundo.
Dominação sem-sujeito
Caráter histórico específico da dominação social no capitalismo: a forma-valor rege a sociedade de modo quase-objetivo (coisificado*), mediato (indireto), impessoal (anônima) e descentrado.
A dominação social capitalista se diferencia historicamente de todas as outras formas de dominação, pois é fundamentalmente: a) quase-objetiva e coisificada (já que são relações sociais universais coisificadas, que sujeitam a totalidade dos homens à valorização do valor); b) mediata e indireta (mediada por relações sociais abstratas, pela propriedade e a troca de dinheiro/mercadorias); c) impessoal (as relações não são mais de mando pessoal, como no pré-capitalismo, mas relações anônimas, onipotentes, que sujeitam a própria classe dita "dominante"), d) descentrado (o poder não se localiza simplesmente num ponto fixo, como o Estado ou a Empresa, mas no contexto mais amplo das relações sociais do mercado global).
A rigor não existe a "classe dominante" como um fato primeiro ou último essencial, ou, ao menos, ela mesma está no poder subjetivo de modo apenas aparente, pois sempre está sujeita à concorrência e às imposições das relações fetichistas e coisificadas. O verdadeiro sujeito é o próprio processo de capitalização do valor. O burguês ou o Estado detêm certamente postos de comando, mas eles mesmos são apenas "personificações" ou "máscaras de caráter" do fetiche-capital. Esta compreensão impõe um conceito de superação e emancipação social para além do marxismo tradicional: não adianta mais "tomar o poder para mudar a vida", mas mudar a vida destruindo o poder descentralizado e impessoal, sem-sujeito do sujeito-capital. Claro que isso implica na luta ampliada contra os que detêm o comando empírico do capital e das forças estatais, mas o seu objeto (ou melhor, seu sujeito), já é outro (a totalidade das relações sociais capitalistas).

Duplo Marx

Emancipação

Conceito consolidado no Iluminismo* e que correspondia ao mero auto-esclarecimento da consciência dos indivíduos (Kant) e à instituição da condição moral cidadã e "civilizada" dos sujeitos e pessoas jurídicas no meio naturalmente contraditório da sociedade burguesa moderna, totalmente explorador e dominador. Era um conceito ideológico* portanto, pois impossível de alcançar. Tal conceito limitado deixava na sombra, isentas de crítica, as formas fundamentais da socialização pelo valor*.

No Marx maduro, ele corresponde à passagem da Pré-história* à História do Homem ou à constituição da "sociedade comunista". Sabe-se como Marx foi "econômico" em dizer qual seria o conteúdo emancipatório concreto, restringindo-se à crítica resoluta do mundo existente. Mas freqüentemente esta posição auto-refletida e bastante avançada para a época vinha ainda misturada com conteúdos predeterminados por um certo humanismo* e racionalismo (ver iluminismo*) da sociedade do trabalho*, tal como no mito do "homem total" ou da "reconciliação universal de homem e natureza".

Hoje, muito se fala em emancipação, a começar por aqueles que acusam a "esquerda" de incapaz de dar-lhe um conteúdo concreto. Há também os que abandonaram o conceito, engavetando-o nos mitos racionalistas dos séculos XVIII e XIX. Mas há também os da velha guarda marxista ou anarquista, aqueles que parecem já ter um plano da "vida justa" pronto, saindo da própria teoria marxista ou anarquista consolidada, num dogmatismo empoeirado e anacrônico.

Uma crítica do valor, consciente de seus limites teóricos de fundamentação (ver Relação teoria e práxis*), procura restringir-se a um conceito crítico-negativo de emancipação social: não tira da cartola um programa pronto, positivo, utópico, dos conteúdos da sociedade emancipada concreta, mas limita-se a um juízo crítico-negativo: a partir da crise do valor, limita-se a dizer que a sociedade verdadeiramente emancipada é somente aquela que suprime – e portanto não é mais – um sistema produtor de mercadorias*; trata-se portanto de resumir-se a superar as contradições específicas da socialização pelo valor*. Visa apenas à totalidade histórica da modernidade, não à construção autoritária de um "novo ser humano" ou de uma sociedade perfeita. A teoria deixa, assim, de subordinar a prática. A emancipação concreta, se ela vier, será construída na discussão coletiva, no próprio fazer-se diário da práxis, para além do valor e do trabalho.

Essa posição crítico-negativa é negada abstratamente hoje por dois tipos de reação teórica e prática que sabotam a noção radical de emancipação. Debatendo-se com os resultados funestos da "emancipação negativa" feita pelo capital, temos: a) uma tentativa constante de administração da crise e de reformas internas à sociedade do trabalho (humanismo de "esquerda responsável" ressurrecto: neokeynesianismo, New Labour, habermasianos etc. ) ou: b) o clima festivo pós-moderno em meio ao colapso da modernização*, uma apologia do sujeito narcísico pretensamente descentrado e liberado das cadeias repressivas da modernidade (anti-humanismo pós-moderno, pós-estruturalista). Tal recusa abstrata recai assim nas contradições do humanismo* e do anti-humanismo*, como duas figuras idênticas à emancipação negativa* do valor: uma definindo a emancipação como mero controle externo dos abusos do "capital" (definindo, assim, o "homem emancipado" como aquele que tem dinheiro para viver dignamente), outra jogando simplesmente o conceito no lixo.

Em nossa definição do conceito procuramos evitar tais becos sem saída. Restrito à realização prática da negação do valor, o conceito de emancipação é, também, "formal" ou "aberto", pois livre de conteúdos predeterminados por um sujeito ou essência humana dados, típicos do humanismo: o conteúdo conceitual do termo "Homem emancipado" fica aberto e disposto à diferença social, espacial e temporal, às múltiplas necessidades e desejos, e assim, à organização social consciente – concretamente situada e cambiante – das forças produtivas sociais. A vida concreta de cada um não cabe à teoria determinar. Mas diferente do anti-humanismo contemporâneo, o homem se determina minimamente, preenche historicamente de conteúdo sua forma, e nesta medida afirma sua autonomia flexível e consciência histórica – mas sem subjugar as diferenças, sem ilusões de totalidade*.

Emancipação negativa
Processo inconsciente de possível supressão do reino da escassez e da necessidade.
Quando as forças produtivas crescem, socializam-se pelo mundo, fazendo a forma-valor perder sua substância (trabalho social abstrato), desponta no horizonte a possibilidade real de emancipação da sociedade da mercadoria. Mas se ainda assim o valor* e o trabalho* continuam a se impor de modo fetichista como as condições fundamentais de relação entre os homens, alcança-se apenas uma sociedade mais selvagem, de reprodução vital cada vez mais miserável (fome, desemprego), precária (subempregos, destruição de direitos) e conflituosa (violência, guerra civil, militar). Tais são os frutos podres da crítica automática que o capital faz a si mesmo. Temos assim, na expressão de Robert Kurz, uma "emancipação negativa", um "comunismo das coisas" e não dos homens (Kurz, O Colapso da Modernização).

Espetáculo (sociedade do espetáculo)
Predomínio completo da abstração real da forma-mercadoria sobre as várias esferas da vida, da produção ao consumo, transformando-a num mundo de imagens cada vez mais alienadas e separadas do controle social consciente.
O conceito surge com Guy Debord e os situacionistas franceses para designar o caráter extremamente alienado das relações sociais modernas, especialmente no período da acumulação fordista* e da guerra fria entre capitalismo e socialismo de Estado. A superprodução de mercadorias do período levou à necessidade das políticas estatais keynesianas* contra a crise (evitando a superprodução de capital e o subconsumo). Os situacionistas, apesar dos traços de marxismo tradicional, levaram a sério a crítica do fetichismo da mercadoria*.

O "espetáculo" é a forma de exposição última e mais desenvolvida do poder alienado do mercado e do Estado, isto é, da lei do valor e suas várias mediações, sobre todos os homens; estes foram, assim, reduzidos a meros seres contemplativos de todo este poder, através da forma suprema da abstração em imagens, sobretudo as imagens midiáticas, fragmentadas e descontextualizadas. "Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação" (Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo, §1, 1967).

Desde então a ideologia não é mais um discurso autônomo nos reinos da abstração filosófica. Os espectadores passivos vivem realmente a "ideologia materializada", uma espécie da "religião do vulgar" (Marx), cínica e positivista*, da economia clássica. Quando se olha por trás da cortina vê-se o mundo capitalista exatamente como ele é: "o mundo da mercadoria é assim mostrado como ele é, pois seu movimento é idêntico ao afastamento dos homens entre si e em relação a seu produto global" (ibid. § 37). O fetichismo não é uma mera ilusão, mas uma ilusão real. Como compensação e adorno à vida degradada, estendem-se as formas de pseudo-uso e pseudo-atividade, não de uma sociedade da abundância, mas de uma "sobrevivência ampliada" (ibid., § 40).

O "espetáculo" não é portanto o reino do consumo (como na leitura jornalística, universitária ou pós-moderna dos situacionistas), mas o da produção das abstrações mercantis que penetram todas as esferas da vida cotidiana, até a liqüidação do indivíduo. "O espetáculo, que é o apagamento dos limites do eu e do mundo pelo esmagamento do eu que a presença-ausência do mundo assedia, é também a supressão dos limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda verdade vivida, diante da presença real da falsidade garantida pela organização da aparência. Quem sofre de modo passivo seu destino cotidianamente estranho é levado a uma loucura que rege de modo ilusório a esse destino, pelo recurso a técnicas mágicas. O reconhecimento e o consumo das mercadorias estão no cerne dessa pseudo-resposta a uma comunicação sem resposta. A necessidade de imitação que o consumidor sente é esse desejo infantil, condicionado por todos os aspectos de sua despossessão fundamental. Segundo os termos que Gabel aplica em outro nível patológico, 'a necessidade anormal de representação compensa aqui o sentimento torturante de estar à margem da existência' " (ibid. § 219).

Estranhamento
Um dos elementos ou momentos internos do fenômeno do fetichismo* das relações sociais modernas. Tais relações aparecem sempre como "fantasmagorias" (Marx), como coisas estranhas, antagônicas e fora do controle social, pois se impõem "por trás das costas" dos sujeitos envolvidos. O estranhamento é a forma básica de enrijecimento, antagonização, objetificação e coisificação de todas as relações sociais no contexto da socialização pelo valor.


Fetichismo (Fetiche da mercadoria)


Naturalização (coisificação*), inversão e autonomização alienada das relações sociais fundamentais da sociedade burguesa.
Tal processo de fetichização se dá em dois níveis: um subjetivo, outro objetivo. Vejamos:
1) Subjetivo: uma mistificação da consciência dos trocadores no mercado, que tendem a pensar que as "coisas" em si mesmas possuem valor por suas qualidades materiais ou técnicas (e não em virtude de uma relação social, isto é, pela média do tempo do trabalho socialmente necessário, isto é, pela quantidade de trabalho ABSTRATO): esse é o lado "subjetivo", ideológico, do fetichismo da mercadoria, também compreensível como coisificação subjetiva da realidade. Os produtos do trabalho social, neste sentido, ganham uma espécie de "alma" estranha, uma qualidade "supra-sensível", que os torna um análogo do ídolo fetichista das comunidades pré-capitalistas.
2) Objetivo: uma mistificação objetiva do próprio processo histórico, pois os produtores mercantis, a partir do momento que só entram em relação através da troca mercantil, ou seja, através do que têm a oferecer no mercado, pelo meio cego e mudo do dinheiro e da mercadoria (sua relação é, antes de mais nada, entre os produtos de seu trabalho, entre a coisas que portam, e não uma relação puramente social, comunicativa, intersubjetiva), eles são constrangidos a se movimentar cegamente sob o comando e o sentido inconsciente da leis da valorização e da acumulação que regulam seus produtos - algo que eles mesmos produzem diariamente mas que agora os comanda e co-determina, como um fetiche. A lei do valor torna-se uma espécie de "apriori" naturalizado de toda produção. Marx é bastante claro quando diz que as relações sociais entre os trabalhos privados aparecem como elas são: "relações coisificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas" (O Capital, Livro 1, cap.1, § 4, "O caráter fetichista da mercadoria", S.Paulo, Nova Cultural, p.71). O fetichismo, portanto, não é uma simples "falsa consciência" ou uma mera aparência ou ilusão da consciência, mas uma realidade prática espessa, opaca, coercitiva, feita aparência socialmente necessária. O fetichismo é um modo básico de relação sócio-econômica, que se torna virtualmente o modelo de toda a experiência, um "fenômeno total", no sentido de Marcel Mauss. A noção de Aparência, aqui, ganha realmente a espessura de um momento do real - institucional, prático, efetivo - dentro de uma totalidade (o modo de produção). Já não é um DISCURSO ideológico autonomizado como na ideologia (um discurso separado de uma práxis unitária, que seria positiva em si mesma). Doravante concebe-se que é o real mesmo que SE ESTRUTURA FRAGMENTARIAMENTE como APARÊNCIAS relativamente autônomas, com discursos próprios de autolegitimação, como MOMENTOS AUTONOMIZADOS de um processo social basicamente cego (valorização do capital). No fetichismo moderno, o processo histórico sai realmente do controle geral da sociedade, mesmo do Estado, porque cada um produz ou oferece seu produto-mercadoria de modo privado, isolado, para um mercado anônimo, sem a discussão prévia da produção social (o que, como, onde, quanto e para quem produzir). Dessa maneira, a forma-mercadoria se impõe "por trás das costas" dos envolvidos, ordenando-lhes o preço das coisas, os ritmos do trabalho social, a forma de consumo, o material dos produtos etc. A modernidade constitui, apesar de toda secularização, uma espécie de "metafísica real" (Marx), que se torna o próprio processo de produção.
Em resumo: o fetichismo é a naturalização (ou coisificação do valor, que aparece como qualidade natural das coisas, de um máquina por exemplo, que parece somente poder funcionar como meio de produção de capital), a inversão (as relações socais se invertem em relações entre as coisas trocadas; assim por exemplo também, não é mais o operário que movimenta a máquina, mas o contrário) e a autonomização (as coisas e os processos sociais parecem ganhar, e de fato ganham, vida independente) das pessoas e das relações sociais, quando elas são mediadas pela produção mercantil. O fetichismo da mercadoria vai se complexificando na apresentação de O capital, até se tornar o fetichismo do dinheiro (sem deixar pistas de qual é a fonte de sua substância: o trabalho abstrato), depois o fetichismo do capital (o capital como mera coisa, e não como uma relação social), quando este último se torna o "SUJEITO AUTOMÁTICO"* do processo de acumulação (capítulo 5- A transformação do dinheiro em capital). O limite do fetichismo aparece na forma da renda da terra e do capital a juros, o "fetiche automático"(Marx), onde as relações sociais de produção aparecem totalmente coisificadas, invertidas e autonomizadas na simples propriedade de um pedaço de terra (que dá direito a uma renda) ou no dinheiro especulativo (que dá direito a juros), sem dar sinal algum de sua relação com o trabalho social abstrato, que deveria produzir sua substância. É assim que as relações sociais modernas tornam-se completamente coisificadas, invertidas e estranhadas em relação aos homens.



Forças produtivas


É tudo aquilo que constitui meios para a produção social: as condições naturais, as ferramentas, as máquinas, a própria atividade prático-sensível dos homens, e hoje sobretudo os robôs e os saberes tecnológicos da 3ª Revolução Industrial*. No marxismo tradicional e sua doutrina do materialismo histórico*, as forças produtivas foram destacadas e autonomizadas do contexto social e cultural, num movimento objetivo, fixo e ontológico* a priori, que "prevalece sobre as relações sociais e culturais". Estabelece-se assim uma metafísica* da história e do inexorável progresso, fundados otimisticamente numa metafísica do trabalho e das forças produtivas.

Fordismo
Processo automatizado de trabalho, onde os empregados ocupam postos de trabalho fixos, numa fortíssima divisão técnica do trabalho que acaba acarretando enorme produtividade (gestos repetitivos e cansativos, brutal divisão de trabalho manual x intelectual etc.).
Designação sociológica moderna para a fase de desenvolvimento da produção moderna de mercadorias que se estende aproximadamente de 1920 até 1980. Denominação em homenagem a Henry Ford, que inventou a esteira rolante na montagem de automóveis. Com isto podiam ser eliminados do processo de trabalho industrial os últimos restos de habilidade artesanal. Os "fundamentos da direção científica das empresas", do engenheiro americano Taylor, isto é, a decomposição de processos de produção e sua recomposição sintética, sob o comando da lógica econômica do entrelaçamento "ótimo", somente podiam ser realizados em grande escala em virtude da produção na esteira rolante de Ford. Assim tornou-se possível, para muito além da indústria automobilística, a produção em massa em muitos setores que até então escapavam ao cálculo de valorização da administração de empresas. Somente após a Segunda Guerra Mundial impôs-se o fordismo universalmente. As novas indústrias de produção em massa não apenas se tornaram o centro de uma acumulação de capital sem par, mas também o de um "modelo social", de um modo de viver "racionalizado", marcado pela totalização do trabalho abstrato em combinação com uma "cultura do tempo livre" compensatória e uniformizada. Desde o início dos anos 80, o fordismo está se esgotando em todos os aspectos: crises ecológicas, desemprego industrial em massa, terciarização ("sociedade de serviços") e novas técnicas de organização "flexível" da produção (o chamado pós-fordismo), além das recentes formas de pauperização e colapsos sistêmicos em várias partes do mundo provocaram críticas numerosas do modo de vida fordista.

Formas embrionárias
Termo usado por Robert Kurz (Antieconomia e Antipolítica) para designar a constituição de formas sociais antagônicas e emancipatórias* dentro do sistema produtor de mercadorias*. Poderia incluir desde as formas de resistência e crítica teórica até as formas de produção e consumo para além desse sistema.

Fundamento

Humanismo


Filosofia moral surgida na época moderna (Renascimento, Iluminismo etc.) que parte de uma definição a priori de ser humano e coloca-o na posição de sujeito consciente de suas relações sociais. Neste sentido, é parte da ontologia* ou metafísica* da modernidade, pois funda o homem pela subjetividade monológica, teleológica e instrumental.

Na Introdução à crítica da economia política (publicada como introdução aos Grundrisse), Marx diz que estaríamos na "pré-história* da sociedade humana". Entre outras coisas isso significa que só com a superação do capital teríamos condição de dizer, sem cair em contradição, o que seria uma sociedade humana. Deste ponto de vista, estaríamos na história do capital, não do homem.Esta é uma questão posta pela dialética*: não pode haver definição a priori do que seja o homem antes da posição de suas condições de realização como ser auto-determinado. A verdade, na dialética, vem no fim do processo. Por isso é que o marxismo não é, estritamente falando, um humanismo (nem um anti-humanismo): não postula uma filosofia do homem.

Deste modo também, rompe-se com o moralismo, abrindo-se para a crítica imanente* do que existe. No máximo, Marx pôde estudar as condições sociais e históricas das sociedades humanas em geral (como nos ensaios sobre as formas pré-capitalistas nos Grundrisse). Mas Marx mesmo recusou escrever sistematicamente sobre a história ou o homem em geral. Não fez Antropologia, mas sim, crítica imanente (portanto específica) do sistema capitalista. Na dialética* marxiana, o homem é um devir: como ser real é apenas um "pressuposto", ou, digamos assim, um feixe de possibilidades infinitas, abertas na história. Historicamente o homem pode se determinar e se pôr como racional, bom, mau, egoísta, livre, escravo, burguês, proletário, democrata etc. Mas estas se tornam concepções metafísicas quando discutidas fora da história e absolutizadas como condição humana geral ou natural. O que significa que não podemos hipostasiar nenhuma dessas determinações (o que significaria fundar o homem subjetivamente, de forma a priori, de acordo com uma concepção moral de mundo monológica), porque todas elas são finitas, transitórias e podem ser superadas na história. Além disso, nenhuma delas coloca a possibilidade da auto-determinação (infinita) do homem social (o que implica necessariamente a superação da subjetividade monológica e idêntica a si mesma). Neste sentido, a aposta histórica de Marx - e trata-se tão somente disso - é justamente que o Homem pode ser livre, vivendo numa sociedade racional, isenta da exploração e da dominação social. Trata-se da afirmação da singularidade social de cada um. Somente isto corresponderia à realização do conceito de humano: a abertura do homem às possibilidades infinitas de sua AUTO-DETERMINAÇÃO, contidas na superação do trabalho mercantil. Não mais nem menos. Com efeito, Marx escreve nos Grundrisse:
“o trabalho não aparece mais até o ponto de estar incluído no processo de produção, mas o homem se relaciona como guardião e vigia do processo de produção".
O homem deixa de ser "trabalhador", ou seja, capacidade ou força de trabalho, mera subjetividade sem objeto. Por isso, a velha questão da "ontologia do homem", no final, é explodida na questão da criação de diferenças múltiplas, não mais numa "identidade natural" ou "condição humana" universal-transcendental, fixa ou eterna. Quem quer afirmar o que é o homem num período de sua pré-história (de hetero-determinação) simplesmente cairá na metafísica do capital, tal como o marxismo tradicional e sua forma de ontologia social do trabalho. O homem realizado é simplesmente uma abertura para o bom infinito.


Idealismo
Filosofias que pressupõem que a Consciência e a Razão precedem o ser, a realidade efetiva, formando um mundo à parte, racional em si mesmo, constituindo e determinando a realidade efetiva. Torna-se assim, um fundamento ontológico a priori, possuindo todos os defeitos da ontologia e da metafísica.
Ideologia
O lado espiritual-discursivo da reprodução do fetichismo da mercadoria*. Enquanto discurso preso à lógica da identidade, a ideologia é uma tendência à abstração idealizante e parcial do processo econômico-social ou, ainda, uma tendência científica (de base positivista*) à naturalização completa da totalidade* deste processo social de alienação e coisificação, realmente produzido pela lógica da valorização do capital*.
No tradicional conceito de ideologia do marxismo sempre apareceu a noção de uma mistificação de classe, forjada por um grupo de ideólogos relativamente isolados da práxis pela divisão do trabalho – um véu discursivo que se antepõe e oculta a totalidade* essencial das coisas, legitimando a sociedade existente (o interesse de uma classe se apresentando como interesse geral). É, portanto, o discurso de uma "aparência socialmente necessária": uma visão de mundo necessariamente classista, presa nas superfícies do processo social, incorreta e parcial pois incapaz de concebê-lo e narrá-lo na sua integridade prática. Mas isso não por déficit de universalidade ou generalidade, ao contrário – antes por excesso, ou seja, por falta de concretude e materialidade histórica das representações. Como aparência necessária também era menos uma vontade de manipulação do que uma "consciência falsa" inerente à posição de classe. Neste sentido, Marx reservava o termo à religião e à filosofia idealista*, a hegeliana e suas derivações alemãs em particular; alfinetava assim, sobretudo, suas abstrações fraseológicas morais transcendentes, que não davam quase nenhum sinal do processo econômico "real". Este era posto, então, como a base real de onde emana o discurso ideológico, o que significa que para os comunistas não bastava combater um discurso mas a práxis que lhe dá sustentação necessária. Ideólogo por excelência é o que combate apenas idéias e não a prática existente que as constitui.

"Esta soma de forças de produção, de capitais, de formas sociais de intercâmbio, que cada indivíduo e cada geração encontram como algo dado, é o fundamento real daquilo que os filósofos representaram como ‘substância’ e ‘essência do homem’, aquilo que eles endeusaram e combateram (...). A dissolução real, prática, desta fraseologia, a remoção destas representações da consciência dos homens, só será efetivada por circunstâncias alteradas e não por deduções teóricas" (Marx e Engels, A ideologia Alemã (I- Feuerbach). São Paulo, Hucitec, 1984, pp.56 e 59).

Em si mesma, porém, a ideologia não era totalmente falsa, pois conceitos genéricos como "homem", "autoconsciência" ou "liberdade" não são em si mesmos puro engodo, mas apenas abstratos e fantasiosos face à "miséria alemã": inverdade era apenas a sua pretensão de corresponderem à prática efetiva. A crítica da ideologia era então concebida como crítica imanente* de fraseologias idealistas do tipo "o homem" ou "o espírito absoluto" fazem a história (em vez do processo social total de produção), i.é, crítica das especulações filosóficas sem lastro social material, visando suprimi-las e, assim, realizá-las (tratava-se da "supressão e realização da filosofia"). A crítica da ideologia, em suma, era um ataque às visões de mundo genéricas e utopias* morais que não levavam em conta o processo econômico real enquanto tal, mas simplesmente projetavam lógicas subjetivas na história social. Se há um momento de verdade na ideologia, no entanto, na prática ele é quase insignificante: é que a Ideologia Alemã reduz todos os pressupostos lógico-conceituais a meros fatos genéricos com interesse limitado apenas na "ordenação do conhecimento". Daí também, a recusa historicista (nominalista e mesmo pragmática) quase total da lógica conceitual hegeliana, dos pressupostos conceituais do discurso crítico, apesar do uso do termo hegeliano "superação"*:

"O comunismo não é para nós um estado que deve ser estabelecido, um ideal para o qual a realidade efetiva terá que se dirigir. Denominamos comunismo o movimento efetivo que supera o estado de coisas atual" (ibid. p.52).

O proletariado vive, no entanto, segundo a Ideologia Alemã, em meio às idéias dominantes da sua época, tal como reproduzidas pela classe dominante. Não obstante, teria em suas mãos, em larga medida, a arma objetiva para furar a nuvem ideológica filosófica, religiosa e liberal; nesse sentido, a economia política e sua crítica eram o antídoto à ideologia:

"Para a massa de homens, isto é, para o proletariado, tais representações não existem e não necessitam, portanto, ser dissolvidas, e embora esta massa ainda tenha representações teóricas desse tipo, tais como a religião etc., há muito tempo estas foram dissolvidas pelas circunstâncias" (ibid. p.59).

A ideologia, enquanto discurso relativamente autônomo de uma classe intelectual dominante, teria assim seus dias de alienação* contados. Pois o proletariado, pela sua posição objetiva no processo de trabalho, estaria mais ou menos imune a ela: a própria modernização se encarregaria de derrubar as quimeras idealistas.

[No entanto, no marxismo tradicional (Lenin, Stalin, Gramsci) e na sociologia do conhecimento alemã (Karl Manheim), confundiu-se o conceito de ideologia com "interesses de classe": surge assim a noção de ideologia proletária, ideologia camponesa, ideologia burguesa etc.]
***

Em certo sentido, o marxismo da Ideologia Alemã é positivista* ou no mínimo um materialismo histórico* vulgar que reduz tudo ao plano econômico empírico: "ali onde termina a especulação, na vida real, começa também a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens (..) A filosofia autônoma perde, com a exposição da realidade, seu meio de existência" (ibid. p. 38). E ainda: "todo problema filosófico resolve-se simplesmente num fato empírico" (ibid.: p.68).

É só no discurso marxiano da maturidade – o da crítica da economia política – que a história vai ser apresentada com a armação lógico-conceitual da dialética*. E é aqui que o conceito de "fetichismo"* tende a completar ou superar a noção de ideologia. Pois aqui, o reino do abstrato é tanto espiritual quanto real: a média abstrata do tempo de trabalho social realmente se impõe por trás das costas dos indivíduos como aparente força natural. Isto tem múltiplas conseqüências para o conceito de ideologia.

1) A forma-mercadoria ou forma-valor, inicialmente mera aparência (troca de equivalentes na circulação simples), torna-se fundamental, mas se invertendo, na produção capitalista de mercadorias, negativamente numa essência (troca de não-equivalentes na exploração da mais-valia e produção do capital). A ideologia, assim, é apenas o lado espiritual da reprodução do fetichismo da equivalência dos trabalhos. Em certo sentido, os ideais normativos da equivalência geral (justiça e igualdade social), da liberdade individual do sujeito (da livre iniciativa e concorrência) e da associação fraterna dos sujeitos (cidadania, Estado democrático) já se realizaram. São frutos derivados da exposição dialética da forma-valor. Se assim é, não se trata mais de realizar a filosofia iluminista*, burguesa e liberal (igualdade, liberdade, fraternidade) mas de suprimir a sua falsa realização. Não que o discurso ideológico tenha desaparecido portanto, mas se descobre agora que a "ideologia" estará operando, por assim dizer, no interior do próprio processo produtivo do capital, como "sujeito automático", na célula da própria socialização radical feita pelo mercado. O maior ideólogo e crítico de si mesmo é a força violenta e negativa do capital: o sujeito que destroça tudo que é sólido: ética, tradição, pensamentos bem fundados ou utopias, planos políticos, inclusive capitais menos produtivos etc. Os homens apenas reproduzem passiva ou ativamente, com suas representações imanentes ao sistema, as diferentes e contraditórias posições do movimento do capital.

2) A verdade discursiva (e a inverdade real) está no todo do processo contraditório de valorização (apresentado e narrado inicialmente por Marx). O proletariado, assim, distante de ter a arma intelectual objetiva ou, digamos, o acesso privilegiado à totalidade para furar a nuvem ideológica, está inserido no cerne do processo ideológico-fetichista da valorização: é obrigado a pensar por equivalência, se comportar produtivamente, concorrer entre si no mercado, lutar por status etc. No processo de modernização, o que se dissolve para ele são as idealizações filosóficas mais especulativas de uma vida autônoma no reino do espírito. Aparentemente, o "proletariado" – a forma mais miserável do sujeito burguês – tem a tendência ao pragmatismo, ao realismo político, ao individualismo possessivo, que acaba por dissolver a própria noção de classe e interesse de classe. O sofrimento coletivo é sublimado ou reprimido/deslocado (Freud) como questão psíquica individual.

3) Deste modo também, não é simplesmente mais uma classe onipotente que pensa de forma incorreta a totalidade do processo e domina a sociedade com suas idéias, brotadas de sua "falsa consciência", ou mesmo através de planos maquiavélicos conscientes, mas é o próprio processo social autonomizado que é cego e dominador em si mesmo, criando a necessidade de sujeitos que pensem processos estratégicos de dominação individuais, grupais ou de classe. O processo ideológico torna-se assim muito mais contraditório, obscuro e difícil de captar em seus múltiplos aspectos e interesses. Em certo sentido, a economia política clássica, com status científico, como em Smith e Ricardo (diferente da mera apologia da economia vulgar), mostra positivamente as coisas "como elas realmente são": "como relações coisificadas entre as pessoas e relação social entre as coisas" (Marx). Esclarece realmente processos, embora de forma limitada. Desta perspectiva, o pensamento fetichista é o pensamento correto (positivista) de uma práxis falsa. O problema é que, ideologicamente – aí o interesse do conceito de ideologia – ele transforma a coisificação fetichista num processo totalmente natural e intransponível.

4) Ideologia não é mais questão, também, de uma consciência intelectual que têm certa autonomia frente à práxis econômica, mas de uma práxis economicista usurpadora, materialista vulgar, que vai ganhando autonomia completa frente à consciência dos homens em geral, cindindo e determinando todos os níveis da vida moderna (política, arte, direito, moral, religião, família, gêneros, psiquismo etc.).

5) Por fim, não se trata mais de ideais éticos e morais subjetivos que não têm correspondência prática efetiva, mas de uma práxis tautológica, fundada no trabalho abstrato, que anula sistematicamente as tentativas de normatização e legitimação social exteriores, se colocando como sentido de si mesma (o trabalho com fim em si mesmo), exigindo instituições, comportamentos e rituais de obediência incondicional às leis da valorização do valor e suas derivações ou mediações políticas, morais etc. (Pode-se pensar, assim, por exemplo, em ideologias filosóficas, políticas, artísticas, religiosas etc. que reproduzem e adaptam em graus diferentes as coerções da realidade fetichista).

6) Mas, mesmo que se tenha consciência do fetiche coisificado e automático, ele continuará operando e se reproduzindo. Como Marx já tinha proposto para o conceito de ideologia, somente a prática social transformadora, para além do trabalho e da mercadoria, pode suprimir a "aparência socialmente necessária".

Iluminismo e Crítica do Iluminismo


Keynesianismo

Nome dado à doutrina econômica desenvolvida pelo economista inglês John Maynard Keynes. Em seu livro A teoria geral do emprego, do juro e da moeda (1936) defende que o Estado deve intervir na economia capitalista com o objetivo de evitar crises como a de 1929. Contraria-se, portanto, a tese liberal da supremacia do mercado, através dos pesados gastos públicos na economia, especialmente nos setores com maior capacidade de geração de emprego, tal como a construção civil. A experiência soviética de planejamento estatal e o keynesianismo influenciaram muito a política econômica dos EUA ("New Deal") na década de 30 e, mais tarde, no pós-guerra, ajudaram a consolidar a ordem mundial através do chamado "Estado de Bem-Estar Social", principalmente nos países desenvolvidos. Elevou-se ao máximo, assim, o fim em si mesmo irracional do trabalho abstrato, a título de manutenção da estabilidade social, do crescimento e da modernização.

O marxismo tradicional, com simpatias estatizantes, hoje se identifica como marxismo neokeynesiano, contrapondo-se diretamente ao neoliberalismo monetarista. Alista-se voluntariamente na reprodução da sociedade da mercadoria e do trabalho, agora em trapos e farrapos, através da utopia da geração de empregos, do estímulo à economia mercantil simples (micro-empresas, subempregos "regulamentados", popularização do crédito), do planejamento e produção do espaço (infraestrutural, urbano, turístico-hoteleiro etc.) e diversas outras atividades de simulação do valor (que postergam ao máximo a sua realização como trabalho produtivo), dando estímulo ao crescimento econômico nacional – aparentemente infinitamente sustentável pela dívida pública.

Marxismo Tradicional

Caracteriza-se pelas doutrinas do materialismo histórico*, pela ontologia* do trabalho e do valor, pela crítica circunscrita à exploração e distribuição da mais-valia* e pela relação positiva para com o processo de modernização*, que poderia ser supostamente "controlado" ou "invertido" através da política* e da democracia estatista.

Materialismo
Filosofias que pressupõem que o ser, a natureza, os objetos materiais, a linguagem, as relações sociais são dados objetivos anteriores ao mundo subjetivo, condicionando a consciência e a prática social. Neste sentido, contrapõe-se ao idealismo. O termo "materialismo histórico" foi usado pelos marxistas tradicionais para caracterizar o pensamento de Marx e Engels, baseando-se na doutrina do predomínio ontológico das condições sociais objetivas (principalmente econômicas) sobre a consciência social. Estabelecem-se, assim, as famosas teses do predomínio das forças produtivas (base) sobre as relações sociais (estrutura) e a consciência (superestrutura jurídica, ideológica, cultural) e a da história como a história da luta de classes e a sucessão de modos de produção. O processo de trabalho é posto como fundamento trans-histórico do homem, eternizando-se assim relações historicamente transformáveis. Neste sentido, o materialismo dos marxistas possui todos os males de um pensamento, historicamente contextualizado e necessário, que foi injustificadamente ontologizado (ver ontologia*). O próprio materialismo "histórico" foi desistoricizado, portanto, e pôde se tornar metafísico, um princípio doutrinário violento-inviolável.

Mais-valia

Mobilidade do trabalho

Característica essencial da força de trabalho abstrato no moderno sistema produtor de mercadorias: ser móvel, flexível, adaptável às demandas da valorização e acumulação de capital. Implica a mobilidade do trabalhador tanto no sentido espacial (migrações) quanto no sentido profissional (mudanças de emprego, de setor etc.) e formativo (desqualificação e requalificação constantes etc.).

A força de trabalho no capitalismo se determina formalmente, segundo Marx, por uma dupla "liberdade":
- liberdade para se vender no mercado de trabalho;
- liberdade (despossessão) dos meios de produção fundamentais.

Essa dupla sujeição formal do trabalho ao capital é a razão de sua "mobilidade forçada", sendo esta a condição fundamental da própria acumulação de capital. O conceito de "mobilidade do trabalho" foi reconstruído pelo sociólogo francês Jean-Paul de Gaudemar a partir desse desenvolvimento marxiano. Em seu sentido mais amplo, a "mobilidade do trabalho" seria a flexibilidade imposta à mercadoria força de trabalho através de seu uso capitalista. Este uso é sempre um "uso dos corpos", o disciplinamento dos homens para torná-los trabalhadores no sentido pleno da palavra: meras "forças de trabalho", simples "mãos-de-obra". Por isso Gaudemar fala na produção de "corpos dóceis", seguindo Michel Foucault (Vigiar e Punir).

"A tendência geral", diz Gaudemar, é "produtivizar todo o trabalho, para fazer estender pouco a pouco sobre todas as coisas a esfera do trabalho produtivo" (Mobilidade do trabalho e acumulação de capital. Lisboa, Ed. Estampa, 1977, p.14). O conceito de "trabalho abstrato"* implica a abstração e redução de todas as atividades humanas à produção de mercadorias. O autor aponta assim o movimento histórico de deslocamento do trabalho para as esferas de valorização do capital (a passagem da subsunção formal à subsunção real do trabalho ao capital*) e os modos de intensificação e produtivização desta mão-de-obra (a transição e a composição da mais-valia absoluta e mais-valia relativa*). Nesse movimento os homens tiveram de aprender à força a ser flexíveis, adaptáveis, móveis e indiferentes ao conteúdo concreto de sua atividade. "Ser móvel quer dizer estar apto para os deslocamentos e modificações de seu emprego, no limite, tão indiferente ao conteúdo de seu emprego como o capital o é em relação a onde investe, desde que o lucro extraído seja satisfatório. Pouco importa o emprego, desde que o salário recebido em troca seja satisfatório" (ibid., p.190).

A economia política clássica, segundo Gaudemar, sempre pressupôs de forma naturalizada e reificada* a mobilidade perfeita da mercadoria força de trabalho, associando-a à manutenção do equilíbrio econômico e ao aumento da produtividade em geral. O autor indica como o Estado usa a mobilidade do trabalho como instrumento de administração e adaptação da mão-de-obra disponível para os fins da acumulação: incentivando ou vedando movimentos (i)migratórios, assegurando a produção de força de trabalho (expropriação, acumulação primitiva) e reproduzindo diretamente as condições de vida do trabalhador, controlando natalidade e mortalidade, regulando jornadas e contratos de trabalho, desenvolvendo formação técnico-profissional adequada ao capital, travando fluxos excessivos para o setor terciário etc. No limite estamos com a administração da população trabalhadora como um todo, diante daquilo que Foucault denominou "bio-poder". O trabalho tem de estar permanentemente disponível para o uso do capital, desterritorializado, móvel, abstraído das condições objetivas do trabalho (meios de produção), neste sentido, "sujeito"*, "livre como os pássaros" (Marx). Interessante notar, no entanto, é como tal flexibilidade ou mobilidade do trabalho aparece na superfície social (discurso ideológico) como direito do sujeito trabalhador à livre locomoção, à liberdade de melhores condições de compra e venda de sua força de trabalho etc.

A essa mobilidade forçada, segundo Gaudemar, podem contrapor-se estratégias de contra-mobilidade, de auto-mobilidade ou imobilidade coletiva do trabalho: lutas operárias contra as demissões, luta pela auto-gestão ou contra as formas de divisão técnica capitalista do trabalho, lutas da imigração, lutas urbanas (contra despejos, recusa de segregação espacial periférica, luta por melhoria nos transportes, etc.), lutas no campo educacional (pela formação ampla e não puramente técnica e voltada para o mercado), até o limite, talvez, da paralisação da produção capitalista - o salto do continuum da história sonhado por Walter Benjamin.

Modernização

Na sociologia universitária marxista e seus parentes, foi admitida positivamente como um conjunto de etapas sucessivas do desenvolvimento econômico-industrial e social capitalista que levaria para além das sociedades rurais tradicionais. Guardava todo o otimismo no progresso inexorável da humanidade. Para a crítica do valor, implica a imposição social de todas as formas historicamente fundamentais da socialização pelo valor*: trabalho, mercadoria, dinheiro, capital, política, Estado e as formas abstratas, fetichistas ou mor(t)almente cínicas, do pensamento racionalista moderno (razão, equivalência, identidade, verdade, fundamento, sujeito etc.). São todas essas formas sociais modernas que perdem o seu referencial com o abalo da valorização do valor. Daí a idéia de "colapso da modernização" (Kurz).

Ontologia
Doutrina filosófica sobre o Ser, respondendo questões genéricas sobre a natureza dos entes do mundo. Desde Aristóteles a ontologia era parte da metafísica, procurando a verdade invariante sob a superfície de fênomenos naturais e sociais fugidios, transitórios, plenamente históricos. No melhor de Marx, a ontologia funciona criticamente, ou seja, como forma de apreensão histórico-negativa do real fetichizado, isto é, moldado pelas formas sociais capitalistas. Ontologia então é sinônimo de que o devir se coisifica em "segunda natureza"* e é bloqueado. A forma-valor é um ser social real, objetivo, portanto, tem uma espécie de "ontologia", com uma cristalização estrutural de determinações e posições sociais no mundo, um conjunto de leis objetivas quase-naturais, que dominam a sociedade de forma fetichista, inconsciente, coisificada etc. Mas se o valor é um ser histórico, finito, superável, então só é possível uma "ontologia negativa" dele, isto é, a ontologia do desastre que é viver sob o domínio do valor. A objetividade do mundo da mercadoria é uma falsa objetividade, fundada numa aparência social autonomizada.
No marxismo tradicional, a ontologia virou ontologização positiva das leis do capitalismo: categorias como valor, dinheiro, trabalho (em sua dupla fácie: abstrato-concreto), Estado etc., ou ainda, toda a separação de esferas (masculino e feminino, cultura e economia etc.) passou a ser identificada a-historicamente, de forma abrupta, ao ser do homem e do mundo em geral.


Positivismo

Forma de doutrina materialista vulgar, com origem na filosofia de Auguste Comte, que tende a reduzir toda a realidade, inclusive a social e a psicológica, aos fenômenos empíricos, sensíveis à observação e à experimentação, passíveis assim de serem estudados com os mesmos métodos "objetivos" das ciências naturais.
A realidade social-natural coisificada é então constatada e aceita como algo dado e sujeito a leis naturais regulares e previsíveis. O positivismo é uma forma de naturalismo cientificista, engendrando a pior parte do Iluminismo autoritário e tecnocrático ao reduzir todas as questões práticas (éticas) às deliberações pretensamente neutras da Ciência e da Técnica. A realidade histórica e natural, caracterizada pela pluralidade, ambigüidade, pelo devir, pelo conflito e antagonismo social (como no caso do capitalismo), é descrita e catalogada em categorias fixas, isoladas e sem mediação, num processo sintético arbitrário e externo à própria coisa. É a forma última do desencantamento iluminista do mundo, totalmente inconsciente de si – o modelo "científico" da consciência fetichista. No positivismo a teoria e a crítica dialética* são dispensadas como o último bastião da metafísica. Elas são trocadas pela confirmação do realmente existente e pelo auxílio na administração eficaz da maquinaria social. Daí seu lema clássico: "ordem e progresso".

O marxismo tradicional sempre teve um forte traço de positivismo, seja na recusa abstrata da "negatividade dialética" do processo de valorização ou no seu inverso, na admissão das leis da valorização como totalmente naturais, positivas e racionais do progresso social; ou ainda, na solução de compromisso com tais leis: na repulsa pela idéia de transformação radical do existente, tal como indicada por aquela dialética (trocada assim pela administração "social-democrática" do capital, como originado no marxismo de Kautsky).

Pré-história / história
Marx diferencia a sociedade burguesa moderna como "a última forma antagônica do processo social de produção" (...). Daí que com essa formação social se encerra a "pré-história da sociedade humana" (Grundrisse). Segundo Marx, portanto, estaríamos em plena pré-história* do homem - mais uma razão para aplicarmos o conceito de fetichismo, e todas as suas selvagens conseqüências, às relações sociais modernas. A História começaria lá onde a sociedade humana se emancipasse do sistema produtor de mercadorias*. O conjunto pré-história e história corresponde ao esquema pressuposição/posição da teoria dialética*.

Proletariado


Homens e mulheres que foram reduzidos à condição abstrata e negativa de trabalhadores do capital, potenciais ou reais; sua condição é a negatividade e a exclusão: sujeitos sem propriedade e sem dinheiro, excluídos dos meios objetivos de vida, que agora "vivem para trabalhar", para gerar mais dinheiro para o capital; por fim, sua negatividade é autodirigida, imposta a si mesmos como sujeitos. Ao proletariado restaria, segundo o Marx da Ideologia Alemã, somente lutar pela sua auto-abolição como classe, não sua ascensão como sujeito com melhores condições de vida e trabalho no mercado ou com direitos de cidadão burguês. Para resumir em forma de aforisma: a luta proletária é fundamentalmente antiproletária.
No marxismo tradicional, ofuscado pela ideologia do trabalho, o proletariado tornou-se um "sujeito" no sentido positivo e ideológico do termo, tão ou mais honrado que o burguês ("parasita") e erigido a representante da humanidade. O socialismo deveria tornar as pessoas proletários honrados.
Produtividade

Relação Teoria / práxis

Relação capital/trabalho (mais-valia)

Riqueza

Produto material qualitativo de toda produção social, contraposta na sociedade produtora de mercadorias à "riqueza abstrata" - o valor.
A moderna sociedade do trabalho* foi a que mais produziu riqueza em toda a história. Em Marx, o conceito de riqueza se contrapõe imediatamente ao valor na forma-mercadoria.

"A riqueza no modo de produção capitalista aparece como uma imensa coleção de mercadorias" (Marx, O Capital, Cap. 1, §1).

Riqueza é, em primeiro lugar, o conjunto qualitativo de valores de uso*, ou seja, o lado material e qualitativo da forma-mercadoria, produto direto do trabalho concreto*. Mas tal riqueza é medida pelo valor, portanto em mercadoria e dinheiro. O móvel do sistema é acumular riqueza abstrata (valor). É assim que o trabalho passa a ser divinizado moralmente pois é a fonte de toda a riqueza. Novamente o marxismo tradicional entronizou o trabalho como a riqueza ontológica própria do homem.

Mas o próprio Marx, em especial nos Grundrisse, pressupõe que a riqueza deve se libertar do valor e do trabalho: trata-se de realizá-la como riqueza das necessidades e desejos humanos, riqueza da cultura e formação dos indivíduos, agora plenamente diferenciados e autônomos, riqueza conseguida através do tempo livre e da reflexão coletiva, para além do "reino da necessidade" da produção e seus objetos materiais.

Segunda Natureza
Conceito hegeliano que servia para designar o "Espírito Objetivo", isto é, a Cultura objetivada ou materializada nas obras e produtos feitos pela sociedade. A natureza ganha assim forma humana, torna-se matéria dotada de consciência e intencionalidade, pois não é mais puramente natural, mas objeto produzido, e, deste modo, é a "efetivação do reino da liberdade" (Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, § 4). O meio fundamental dessa objetivação social necessária e alienada do espírito, segundo Hegel, é o trabalho humano (manual e intelectual), considerado como ontológico, próprio do homem: restava então a superação (sublimação) dessa materialidade externa para o Espírito se reconciliar consigo mesmo na Filosofia e no Saber Absoluto. O trabalho e sua segunda natureza, portanto, é um momento alienado e falso, embora necessário, da Verdade do Espírito.

No marxismo tradicional, a crítica desse último passo idealista de Hegel levou a uma apologia "materialista" inocente da segunda natureza, na esteira da ontologia do trabalho e do valor da economia política clássica e do próprio Hegel.

Na verdade, Marx usa o conceito de segunda natureza de modo crítico e irônico quando fala em "leis histórico-naturais do desenvolvimento capitalista", em "leis objetivas" (como a lei do valor) ou em coisificação* das relações sociais. Pois apesar de toda atividade cultural produtiva conter um aspecto consciente e intencional, o resultado histórico disso no capitalismo, regido pelo princípio da lei do valor e do lucro, é a realização de um meio social totalmente inconsciente, violento, cego e desumano. A produção não parte da discussão coletiva, mas dos interesses privados e isolados dos produtores; a própria atividade humana torna-se trabalho* em seu duplo aspecto.

A "segunda natureza" passa a ser assim o "reino da necessidade", pois a sociedade aparece realmente como o império da coerção social abstrata, impessoal, quase-objetiva do fetiche da forma-valor. Na filosofia (ver ideologia*) e na realidade esta aparência se petrifica em essência social ontológica, as abstrações históricas valem como realidades fantasmagóricas que comandam os próprios produtores destas relações, a cultura se torna segunda natureza imutável.

Sistema produtor de mercadorias
Conceito crítico mais geral procurando designar a moderna socialização pelo valor, isto é, a constituição histórica de uma sociedade que funciona como se fosse uma máquina cibernética fetichista* de produção de (mais-)valor, através do elo recorrente "trabalho-mercadoria-dinheiro-capital-política". Aponta assim para além da crítica do "capitalismo", pois coloca a base do capital na própria forma-valor (ou mercadoria) dos produtos do trabalho. Existem, desta maneira, conceitos paralelos que enfatizam um ou outro aspecto desse sistema: "sociedade burguesa", "sociedade da mercadoria", "sociedade do trabalho", "sociedade capitalista", "sociedade de mercado e Estado", e, em certo sentido, "modo de produção capitalista" ou "formação econômico-social capitalista", entre outros. A idéia de sistema (totalidade*) aqui é crítico-negativa: como objeto de crítica, a noção de sistema é irônica, pois é também o perfeito mundo caótico das contradições sociais inconscientes e fetichistas*.

Socialismo
Fase de transição necessária para estabelecer os novos fundamentos de uma "sociedade emancipada" ou "comunista", caracterizando-se pela abolição progressiva do capital, do Estado e da lógica acumulativa do valor.
O socialismo, enquanto etapa transitória, só tem sentido hoje como reconfiguração, neutralização e mesmo desmontagem e paralisia das forças produtivas capitalistas, assim como destruição progressiva das relações de produção fundadas na mercadoria e no capital (divisão hierárquica do trabalho, lógica acumulativa e concorrencial etc.), incluindo os aparatos do Estado. Como transição pode-se pensar o socialismo como a combinação de formas sociais opostas, com o convívio de elementos não-capitalistas, mercantis simples e estatais, como "formas embrionárias" que nascem de modo imanente e já transcendentes ao sistema subjacente. Só a luta prática pode levar a cabo essa transição para fora do sistema e superar seus elementos antagônicos. A realidade "pura" do comunismo ou da "sociedade emancipada" certamente não nascerá da cartola de um mágico. Hoje, face ao turbilhão de avanços tecnológicos pari passu a desastres ecológicos eminentes, além do crescimento demográfico ameaçador, escasseamento de recursos naturais e o perigo de destruição ambiental irreversível, o socialismo seria uma transição para um modo comunista de vida em que a produção cega e incessante vai sendo reduzida enormemente. O socialismo seria o regime de destruição do trabalho abstrato, auto-abolição da classe trabalhadora, "desemprego feliz" gradativo para todos, com vistas à instauração de uma sociedade livre do produtivismo e do consumismo. Poder-se-ia pensar, no contra-fluxo do marxismo vulgar, numa "desacumulação socialista". Qualquer outra perspectiva é assassina da natureza e dos homens.
Segundo o marxismo tradicional, o socialismo seria uma fase caracterizada pela apropriação coletiva dos meios de produção através do domínio absoluto do Estado ("ditadura do proletariado") para o "desenvolvimento das forças produtivas" "acorrentadas" pelo capitalismo. Visto desta maneira o socialismo apenas desenvolve a lei do valor para além das limitações da propriedade privada, destravando um produtivismo (e um consumismo) muito mais ensandecidos do que o do próprio capitalismo. A isso o marxismo soviético chamou eufemisticamente de "acumulação primitiva socialista".
"Sujeito automático"


Teoria Crítica
Teoria que autolimita historicamente suas próprias condições de efetividade e validade no tempo e no espaço, sabendo que, como diz Marx, o que importa é transformar o mundo, sem adormecer na teoria tradicional, contemplativa, com pretensões ontológicas positivas*, supostamente neutra e separada ideologicamente da realidade. Ao mesmo tempo, não faz a simples apologia da práxis* social existente: sabe que a transformação prática do mundo da mercadoria não se dará sem uma teoria coerentemente sustentada como crítica imanente* deste mundo. Leva a sério, por isso, a dialética da forma-valor* desenvolvida por Marx.

O termo originou-se do nome "Teoria Crítica da Sociedade" dado ao grupo que reuniu pensadores europeus, nas décadas de 1930-60, na chamada Escola de Frankfurt (Instituto para a Pesquisa Social): Horkheimer, Adorno, Pollock, Neumann, Marcuse, Benjamin, Lowenthal, Grossman, Sohn-Rethel e outros. Dedicavam-se a uma leitura mais filosófica e crítica do próprio marxismo tradicional* – aquilo que o filósofo francês Merleau-Ponty denominou "marxismo ocidental". Colocaram, assim, o acento na crítica do fetichismo das relações sociais, na esteira de Georg Lukács de História e Consciência de Classe, mas, numa posição independente dos Partidos Comunistas, anteviram os fenômenos de coisificação* da consciência do proletariado e de sua integração na "sociedade administrada" (tecnocrática e positivista*), através da formação daquilo que Adorno e Horkheimer chamaram de "Indústria Cultural" e das políticas de pleno emprego do Estado forte do pós-guerra, o chamado "Estado Autoritário" (nazi-fascista) e o "Estado de Bem-Estar Social" fordista*. Caíram, assim, numa certa ilusão do "predomínio da política", isto é, das formas de "dominação" sobre a mera exploração – historicamente bastante frutífera e justificada (tirando assim o foco central da simples distribuição de mais-valia, escavando a história sombria do Iluminismo* e da razão instrumental na gênese da forma-mercadoria e da pseudoformação pela experiência degradada da sociedade do trabalho) – contudo, numa posição mais ou menos irrefletida pela falta de uma crítica mais bem focalizada nos desenvolvimentos subterrâneos contraditórios da forma-valor. Se hoje a integração feita pelo alto fica interrompida dada a crise do valor agora tornada fenômeno da vida diária (tal como eles mesmos chegaram a dizer no final dos anos 60), a questão do fetichismo da mercadoria torna-se mais central do que nunca, tal como a Teoria Crítica valentemente sustentou nos seus melhores momentos.

Terceira Revolução Industrial
O termo refere-se às novas tecnologias que surgem, sobretudo, a partir do final dos anos 70, com base nas pesquisas do chip microeletrônico, dando origem à informática e à robótica. Além desses setores, surgem, atrelados, as novas telecomunicações (Internet, celular), as novas pesquisas científicas da engenharia genética e da biotecnologia (manipulação de genes a fim de produzir espécies de plantas e animais mais produtivos) e as novas fontes de energia (nuclear, solar) e materiais (fibras óticas, cerâmicas, novos plásticos etc.).

O conjunto destas novas tecnologias, regulado pelas novas formas de gestão pós-fordista do capital (toyotismo, "just in time", produção "enxuta", "terceirização", quebra de hierarquias internas à empresa, "qualidade total" etc.), promove um aumento máximo da produtividade, racionalizando e economizando trabalho humano de modo vertiginoso. As técnicas exigidas na produção social de mercadorias são cada vez mais sofisticadas – chips, robôs, satélites, computadores, telefones celulares, laboratórios etc. –, cujo conteúdo básico é informação, conhecimento, pesquisa e desenvolvimento técnico-científico de um número restrito de cientistas e técnicos, financiados por recursos públicos e privados. Tais foram os frutos contraditórios dos anos de guerra fria (a própria tecnologia informacional surge das pesquisas bélicas e aeroespaciais) e acumulação monopolista aparentemente estável.

As toneladas de mercadorias barateadas produzidas pelas tecnologias da Terceira Revolução Industrial impulsionam como nunca a concorrência, a globalização produtiva e financeira (ver capital-fictício*) e a aceleração contemporânea de todas as transformações da vida social (desemprego, subemprego, flexibilização e qualificação permanente do trabalhador etc.). Mas é este incremento capitalista das forças produtivas* que promove, ao mesmo tempo, a crise da socialização pelo valor* e o colapso da modernização*, forçando os homens a tomarem uma posição: ou libertar-se do valor e do trabalho ou tentar reproduzi-los e simulá-los, deixando as forças produtivas tornarem-se forças destrutivas.

Totalidade

Trabalho (abstrato-concreto)

Forma histórica da atividade produtiva na sociedade produtora de mercadorias, com um papel central na mediação social, pois é a fonte da valorização do capital. O trabalho, como esfera abstrata do contexto social, tem uma dupla dimensão: trabalho concreto e abstrato.
Qual é o papel da produção material na vida social ? Será que ela sempre foi o "centro" da sociabilidade humana, como se diz hoje, no capitalismo ? Talvez não. Então, temos de historicizar o conceito de "trabalho" e limitá-lo às sociedades modernas, isto é, às que giram em torno do mercado e do Estado. Só a modernidade impôs a atividade produtiva como centro ou fundamento da sociabilidade, pois ela está baseada na produção incessante de mercadorias para a valorização de capital. Nas sociedades pré-capitalistas o "tripalium" (ou o labor) sempre foi associado a sofrimento, como condição natural de escravos ou servos, isto é, de pessoas menores, sem autonomia moral e "política". Não havia um "mundo do trabalho", estética e moralmente assumido como positivo tal como ainda hoje existe. Na verdade, a vida social e, por assim dizer, "política" (incluindo o ócio), eram muito mais importantes que o mundo abstrato do trabalho. O ócio e as atividades de reprodução eram mais importantes que a mera labuta. No limite, se estudarmos as sociedades indígenas, veremos que muitas limitam a atividade produtiva ao mínimo: a apenas um momento diminuto do todo de sua reprodução, no inverno praticamente não há nenhum "trabalho" a fazer. São, por isso, "sociedades do ócio" (Sahlins), que recusam o trabalho (tal como o Estado, a propriedade e a acumulação), como desvendou Pierre Clastres. Digamos que aqui há uma "cultura", muito mais integrada que a capitalista, onde a produção material não determina e domina os outros momentos da vida. Caçar, pescar, dançar, cultuar, cuidar dos filhos etc. não são atividades hierarquizadas, nem separadas do todo. Só a modernidade transformou o mundo em esferas excludentes de atividade, "profissionais", com espaços completamente separados: a da arte (com os museus e clubes), a da política (com as arenas políticas especiais), a da vida privada (o lar burguês), e, claro, a do trabalho (a das fábricas, escritórios etc.), que se alastra, predomina e sobredetermina todas as anteriores, como uma espécie de sujeito (sub-jectum). Apenas na moderna "sociedade do trabalho" atividades qualitativas tão distintas como dançar, cozinhar, ensinar, pescar ou cultuar podem ser homogeneizadas sob o nome genérico de "trabalho". Isto é uma violência. Trabalho, portanto, é uma abstração social, mas não como a palavra fruta ou árvore, mas uma abstração real* de todas atividades humanas, quando produzem algo para ser vendido. Quem faz isso é o mercado. Assim, chegamos à definição moderna da atividade produtiva: qualquer atividade que, abstraída de suas qualidades e do controle direto dos homens, pode se tornar equivalente a qualquer outra, porque é medida pelo valor, tornando-se um meio de produzir mercadorias para o mercado e, portanto, de valorizar capital. No capitalismo, o trabalho é sempre "trabalho abstrato", - e abstrato em vários sentidos: no sentido de que está separado completamente dos outros momentos da vida (arte, lazer, política, vida doméstica, destinada às mulheres etc.); no sentido de que é uma atividade produtiva genérica, completamente abstraída do controle e das necessidades reais dos produtores, da finalidade ou da qualidade do que se faz, pois o que importa é o valor monetário que ela traz (trabalho, como meio, torna-se um "fim em si mesmo"); abstrato, ainda, no sentido de que o produtor é um ser abstraído - separado - dos meios de produção, isto é, tornou-se um proletário*, uma pura força de trabalho, um "sujeito" monádico, desenraizado, destinado a perambular pelo mundo atrás de seu sustento, sem objeto disponível diretamente; abstrato, enfim, no sentido de que cada trabalho concreto*, já por si abstrato, é abstraído ainda mais uma vez na troca de mercadorias, sujeita aos padrões de produtividade sociais mais altas ao nível mundial. Este é o mundo do trabalho: o da abstração. "Trabalho", portanto, é a proto-forma da experiência social do terror moderno, marcada estruturalmente pela abstração, pela insensibilidade e o desvario produtivista do homem moderno, constituindo sua alienação e cisão esquizofrênicas, no sentido marxiano e também psicanalítico destes termos.
Valor

Valor de uso

Conceito originário da economia política clássica que se referia à capacidade de um bem de satisfazer necessidades humanas. O valor de uso é o aspecto material, concreto, qualitativo e utilitário da mercadoria. O outro aspecto da mercadoria é totalmente social, abstrato e quantitativo: o valor* (de troca). Após serem vendidas, mercadorias como ferro, papel, madeira ou edifício servem para atender necessidades humanas. Donde a falsa positividade que ganhou tal conceito no marxismo tradicional, tal como seu conceito gêmeo, o "trabalho concreto" (ver trabalho*).

Ora, o valor de uso é apenas o lado concreto da forma-valor, seu suporte material e forma de manifestação qualitativa, assim como o trabalho concreto é a forma de manifestação qualitativa do trabalho abstrato. Isso significa que o valor de uso tende a ser a plasmação material dos interesses lucrativos e destrutivos do capitalismo. É assim que, por exemplo, o capitalismo produz mercadorias "úteis" (pois sempre funcionam para algo) completamente absurdas, irracionais e destrutivas, de um ponto de vista ecológico e social consciente (armamentos, alimentos transgênicos, a própria cidade capitalista com sua enorme quantidade de vias impermeabilizadas, automóveis, latas de cerveja, piscinas privadas, prédios horríveis, bairros miseráveis etc.). Nenhum bem ou riqueza produzido como mercadoria fica intacto ou isento da qualidade adulterada pela forma-valor, pelo interesse trapaceiro e mesquinho do lucro. A técnica da "obsolescência programada" dos produtos – mercadorias feitas para quebrar em pouco tempo – há muito passou a ser a base da produção nas grandes empresas, da mesma maneira como a organização concreta do processo de trabalho nas empresas contém, em sua estrutura técnica planejada, várias determinações coercitivas do trabalho social abstrato: a organização concreta dos postos de trabalho (esteira rolante, ritmos velozes de produção, esquema de vigilância e disciplina, extrema divisão do trabalho etc.) visa especificamente ao controle do funcionário, ao aumento máximo da produtividade e do lucro.

Da mesma forma, o valor de uso não é qualquer "bem" inocente que é simplesmente "apagado" ou momentaneamente "suspenso" pelo valor de troca na hora da compra e venda para então ressuscitar intacta e livremente na casa de seu feliz comprador, mas, ao contrário, uma figura histórica moldada diretamente pelo valor abstrato desde sua origem. Trata-se então de criticar a própria materialidade técnica e qualitativa do mundo produzido pelo trabalho mercantil moderno, pois esta materialidade é apenas uma das potencialidades da técnica conquistada pela humanidade: até hoje a mais desastrosa para o homem e a natureza. Um outro mundo material, uma outra técnica, outras necessidades humanas poderiam ser desenvolvidas para além da forma-valor.

Valor de troca

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