10 junho, 2005

ZOOGLIFITO: homem, pedra, animal

ZOOGLIFITO
homem, pedra, animal
Cláudio R. Duarte

A memória da escravidão vai lenta e firmemente sendo apagada ou segregada nos subúrbios da paisagem. Talvez não de todo, pois nela os animais são como sintomas de um recalque histórico. Tal como o negro africano foi um dia capturado, transportado, vendido e tratado no trabalho como um animal - se é que sua vida se distinguia do trabalho -, os animais hoje são descobertos como os "negros de ganho" que sempre foram. Face à dominação do homem pelo homem - relação que permeou toda a história até aqui - a dominação dos animais talvez não parecesse um problema ou uma ferida aberta, da mesma forma como hoje a domesticação do homem pelo trabalho capitalista, tanto mais precarizado quanto mais pobre em capital é o país, não parece uma condição de escravo animalizado. Contudo, no presente histórico, permeado por imenso progresso técnico, na sujeição dos animais, que tanto se confunde com a dos homens, como que brilha mais uma vez esta mácula transhistórica, marcada cegamente na testa da natureza e dos próprios homens: diante das imensas possibilidades da técnica mais moderna, pode vir à tona o absurdo da continuidade desta mácula. Na crise da sociedade do trabalho, aos animais sobram menos restos de comida, menos dinheiro para o banho ou para o veterinário explorador. O cão que é posto para vigiar a casa no subúrbio infestado pelo crime vive sob o risco da morte, não menos que o cão policial farejador de bombas ou de pernas de assassinos. A caça e a pesca indiscriminadas vão despovoando os céus, mares e campos que doravante, somente nos livros, aparecerão como seu hábitat natural. O burro açoitado tem de puxar a carroça velozmente sem ter a idéia que o trator, seu concorrente na propriedade alheia, poderia já ser generalizado e aliviar seu sofrimento. Mesmo o pai semi-escravo de um trabalho sem sentido no escritório, que chega cansado em sua senzala bem-aparelhada, bate na mulher, que desconta na filha e esta no primeiro bicho de estimação que aparecer pela frente, na reabilitação em cadeia do esquema pré-histórico da troca e da vingança. Algo desse esquema, aliás, aparece em negativo nos filmes baratos que retratam o contra-ataque selvagem das cobras ou das piranhas, reeditando pela milésima vez a baleia de Melville.

Por isso, talvez, os animais mais venerados - e muita gente, na frieza geral da sociedade burguesa, só consegue amar realmente seus bichinhos - são apenas os mais dóceis e previsíveis, aqueles que foram super-domesticados na história, aqueles que oferecem menos resistência aos ataques de amor, ódio e caprichos de seu dono. Mas se o adestramento ou a castração não atingiu todo reino animal, apesar das fazendas, dos circos ou zoológicos, coisas muito piores hoje vêm lhes destruir a qualquer momento, como a vivisecção para os testes farmacêuticos, a manipulação genética e a matança em massa nos mega-frigoríficos de uma sociedade obesa, obsoletamente hiper-carnívora, ou, no limite, pior, a extinção total de seu hábitat, de sua cadeia alimentar e, assim, de milhares de espécies anualmente. Todos os animais hoje são virtualmente objetos da propriedade e da dominação, que, se não servirem para alguma utilidade mercantil, são como ratos e baratas, causadores de medo e estimulantes do comportamento violento, animalesco, dos "senhores e possuidores da natureza" (Descartes).


A imagem do animal, hoje, é o espelho da condição dos homens sujeitos do trabalho: somente ela, talvez, como uma espécie de zooglifito, lhes revela cabalmente sua própria situação. A liberação da tortura e da destruição animal depende, porém, dos animais em que vêm se convertendo os homens neste entretempo: de sua auto-percepção como "animais à venda", que não deveriam mais tolerar sua auto-domesticação e auto-destruição, nem a dos animais. Para converterem-se realmente em homens, os homens têm de aprofundar sua ferida narcísica e se identificar à condição humilhante dos animais. Só assim eles transcenderiam sua animalização forçada pelo trabalho e abririam a chance de humanizar as condições de vida dos animais, deixando de reduzi-los à matéria passiva de seus projetos bestiais.

(abril / 2005)

Um comentário:

anabaptista disse...

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