22 fevereiro, 2006

A ESPERANÇA NAS RUÍNAS - Dialética de esperança e pessimismo nos frankfurtianos

A ESPERANÇA NAS RUÍNASDialética de esperança e pessimismo nos frankfurtianos


Cláudio R. Duarte

1- Pessimismo - otimismo: prisão na imanência
O que fazer frente a um mundo que proíbe sistematicamente qualquer pensamento radical, utópico, transcendente ? Segundo muitos foi esse o paradeiro final da chamada Escola de Frankfurt, particularmente o de Adorno, Benjamin e Marcuse: o pessimismo, o impasse, a aporia. Somente Habermas teria ido além, reencontrando caminhos de realização do "projeto moderno". Ora, Habermas foi aquele que, distinguindo teoricamente uma esfera dos sistemas e uma do mundo da vida, desvinculando razão instrumental e razão comunicativa como dois continentes abstratamente separados, restaura a "positividade" no interior do sistema moderno do terror econômico, almejando completar o seu projeto político. Seu otimismo é fruto de uma retirada reformista estratégica. Neste sentido regride em relação à Teoria Crítica mais antiga, fundada na crítica radical à sociedade da mercadoria e da total administração, mesmo que as contradições contidas nesta estivessem como que "congeladas" pela ação recuperadora do Estado de "Bem-Estar Social". Daí a sua radicalidade crítica firmemente sustentada: manter a crítica categorial ao sistema mesmo num momento de aparente paz social "democrática".
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Segundo Habermas, a crise do capital, deixando de ser econômica, agora era basicamente "crise de legitimação". Trocando em miúdos, mais ou menos isso: se a lei do valor-trabalho "explode", se o Estado keynesiano pode contornar via crédito todas as crises, então, interessa agora arrumar outras justificativas para a sociedade moderna continuar se modernizando, só que resguardando um esfera pública "livre", donde possa-se conversar e respirar tranqüilamente. Tratava-se de fundar um "novo consenso", criar uma nova razão ideológica para o fetiche do dinheiro, desprovido da substância de trabalho, continuar sujeitando a todos mais suavemente. É claro que nunca se fala isso tão às claras, é só num trecho ou outro que vem à tona os pressupostos sistêmico-funcionalistas conservadores da teoria habermasiana:
"O enfoque da filosofia da práxis [marxismo] sugere que o contexto sistêmico da economia organizada de modo capitalista e seu complemento estatal é mera aparência que se reduzirá a nada com a extinção das relações de produção. Nem sequer se coloca a questão de saber se os subsistemas regidos pelos media [Poder e Dinheiro] apresentam propriedades com valor funcional independente da estrutura de classes." (Habermas, O discurso filosófico da modernidade. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p.95).
Realmente, diria o bom burguês, os mecanismos cegos e supercomplexos da divisão do trabalho, em grande parte apenas "técnicos" (!), a cadeia infinita de mediações capitalistas e burocráticas do mercado e do Estado etc., além de insuperáveis, nos "facilitam a vida", têm ótimo "valor funcional independente" ! Realmente, basta pensarmos no desastre que acontece com a vida dos povos e com o meio ambiente, sob a tutela desse reino do capital !

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Trata-se, assim, de fazer uma "renovação" do velho contrato social – à rigor uma agenda política setecentista, puro Rousseau com Kant, atualizados pelo new approach lingüístico-pragmático e os métodos sociológicos funcionalistas. Agora com a novidade da atualização do vocabulário filosófico: os interesses dos cidadãos de mercado, "livres e iguais", passam pelos diferentes "jogos de linguagem" de uma "pragmática transcendental", vale dizer, de uma "situação ideal de fala", em que se chegaria à "verdade" e ao "consenso" através de uma "comunicação sem distorção" entre os falantes; enfim, através de uma ética dialogada promete-se tirar do papel os ideais humanistas da Revolução Burguesa. O monólogo coisificado e enlouquecido do "logos prático" do trabalho abstrato teria agora como que passar "pela argumentação racional" de cada um, para decidir-se, afinal, quem encosta a barriga no balcão e paga a conta. E no final destas contas, não se chega senão no velho distributivismo social-democrata, só que agora, filosoficamente justificado. Suas condições sócio-econômicas reais, em plena era neoliberal, não são nunca tematizadas, tudo se passa como se o idealismo pragmático-transcendental se bastasse a si mesmo. A noção de um novo paradigma pragmático-linguístico, de uma nova "razão comunicativa", tido como mais abrangente que o paradigma da produção e da suposta "razão instrumental" que o engole e o determina de ponta a ponta - como se a crítica do fetichismo em Marx não contivesse em si mesmo uma crítica da razão subjetiva e instrumental, apontando para a unidade dialógica de produção e sociedade -, no fundo não é só uma noção de transformação social muito mais "modesta" (como diz o próprio Habermas), mas essencialmente conformista. O politicismo comunicativo pode, assim, abandonar a crítica da razão instrumental aos socialistas utópicos e aos românticos em geral. Não se discute mais economia, nem política, a menos que se pergunte quais são as condições concretas de seu idealismo intersubjetivo. Só assim afinal se chega cantando vitórias ao continente otimista - e no fundo pessimista - da nova "razão comunicativa", certamente restrita aos nichos abertos dentro dos sub-sistemas colonizadores, que ferem o capital em nada, antes o legitimam com mais força. O "ingênuo" Marcuse, com toda a sua "contradição performativa", ao menos era implacável na crítica da democracia totalitária:
"o slogan ´sentemos e vamos raciocinar juntos´ tornou-se justamente uma piada. Poder-se-á argumentar com o Pentágono sobre qualquer outra coisa a não ser a eficiência relativa dos engenhos de matança - e o seu preço ?" (Marcuse, Contra-revolução e revolta, "Conclusão").
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2- Pessimismo-esperança: fuga na/da imanência
Em Adorno e Benjamin, a esperança só podia ser tirada de uma consciência nua e crua de uma realidade esmagadora: estamos fritos, eis o ponto de inflexão - daí a esperança. Esperança só tem sentido se assumida dialeticamente, em meio à desolação universal do mundo burguês.
"Nas convulsões da economia de mercado, começamos a reconhecer como ruínas os monumentos da burguesia antes mesmo que desmoronem" (Benjamin, Paris, capital do século XIX, "Haussman ou as barricadas").
Só resta algo a esperar para quem não tem mais qualquer esperança de vida boa no interior da ordem estabelecida. Do contrário nutrimos a ilusão de que estamos nadando a favor de alguma corrente do progresso, que não existe, a não ser como o continuum da dominação. Esse o trilho social-democrata de Habermas, combatido preventivamente por Benjamin nas teses Sobre o conceito da história:

"Nosso ponto de partida é a idéia de que a obtusa fé no progresso desses políticos, sua confiança no ´apoio das masssas´ e, finalmente, sua subordinação servil a um aparelho incontrolável são três aspectos da mesma realidade" (Tese 10).

No entanto, ninguém mais que Adorno, Benjamin e Marcuse sabiam que uma outra sociedade, sem o estigma do trabalho e da mercadoria, já é realmente possível. Não se trata de forma alguma de mera "utopia". Pensar o porquê e o como isso é impedido foi sua tarefa intransigente. Num aforisma de Minima Moralia (§ 128), Adorno reflete sobre uma canção alemã:

"Desde que sou capaz de pensar, que me faz feliz a canção ´Entre a montanha e o vale profundo´: a história de duas lebres que se empaturram de grama, foram abatidas pelo caçador, e, ao constatarem que ainda estavam vivas, saíram correndo. Porém, só muito mais tarde eu compreendi a lição aí contida: a razão só pode resistir no desespero e no excesso; é preciso o absurdo para não se sucumbir à loucura objetiva. Deve-se fazer como as duas lebres. Quando o tiro vem, cair fingindo de morto, juntar todas as suas forças e refletir, e, se ainda se tiver fôlego, dar o fora. A capacidade para o medo e a capacidade para a felicidade são o mesmo: a abertura ilimitada, que chega à renúncia de si, para a experiência, na qual o que sucumbe se reencontra. O que seria a felicidade que não se medisse pela incomensurável tristeza com o que existe ? Pois o curso do mundo está transtornado. Quem por precaução a ele se adapta, torna-se por isso mesmo um participante da loucura, enquanto só o excêntrico conseguiria aguentar firme e oferecer resistência à absurdidade. Só ele seria capaz de refletir sobre o ilusório do desastre, a ´irrealidade do desespero´, e de se conscientizar não só de que ele ainda vive, mas de que ainda há vida".
É exatamente isso: só nos extremos - entre a esperança ativa fundamental e o desespero aparente - pode viver a resistência, a luta pela vida verdadeira. Adorno, tal como Benjamin, só pode tirar a esperança da mais forte desconfiança para com o mundo existente. "O caráter destrutivo", dizia Benjamin,


"tem a consciência do homem histórico, cujo sentimento básico é uma desconfiança insuperável na marcha das coisas e a disposição com que, a todo momento, toma conhecimento de que tudo pode andar mal. Por isso, o caráter destrutivo é a confiança em pessoa. O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas eis precisamente por que vê caminhos por toda parte (...). Nenhum momento é capaz de saber o que o próximo traz. O que existe ele converte em ruínas, não por causa das ruínas, mas por causa do caminho que passa através delas." (Imagens do pensamento, "O caráter destrutivo"].
Também em Adorno o mundo tem de se revelar como ruína:
"A filosofia, segundo a única maneira pela qual ela ainda pode ser assumida responsavelmente em face do desespero, seria a tentativa de considerar todas as coisas tais como elas se apresentariam a partir de si mesmas do ponto de vista da redenção. (...) Seria produzir perspectivas nas quais o mundo analogamente se desloque, se estranhe, revelando suas fissuras e fendas, tal como um dia, indigente e deformado, aparecerá na luz messiânica" (Minima Moralia, § 153).
Somente um tal tipo secularizado de perspectiva poderia ser um bom ponto de partida para transformar radicalmente a realidade dada no verdadeiramente outro. Onde há um falso otimismo, como na sabedoria satisfeita de frases como "nem tudo anda tão ruim assim" e de que "a vida continua" - aí reside toda espécie de miopia e obtusidade intelectual, que não leva a lógica do mercado até o seu limite, a sociedade plenamente totalitária. Ao contrário, somente quem perde a esperança em se adaptar ao mundo das mercadorias, engajando-se em sua superação real - já possível aqui e agora - é fiel à verdadeira vida.
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O materialista sabe que as leis histórico-naturais do sistema prescrevem-lhe o ritmo de sua atividade, e, por isso, não pode simplesmente "esperar", passivamente: tem de se adiantar a elas. A esperança é ativa, não uma "paixão triste" (Spinoza), tal como na imagem melancólica dos frankfurtianos que se consolidou entre nós. A esperança prepara e fortalece para a atividade:
"O caráter destrutivo está sempre trabalhando de ânimo novo. É a natureza que lhe prescreve o ritmo, ao menos indiretamente; pois ele deve se antecipar a ela, senão é ela mesma que vai se encarregar da destruição" (Benjamin, Imagens do Pensamento, "O caráter destrutivo").
Este ritmo natural é o mesmo que Benjamin, nas Teses, descreve como a tempestade destrutiva do progresso, que amontoa ruínas até o céu (Sobre o conceito de história, Tese 9). É para rememorar e recolher esta pilha de escombros que a dialética de Adorno literalmente se excede, exagera, leva ao extremo a negatividade do existente. Como em Hegel, o caminho da experiência crítica, o caminho da dúvida (Zweifeln), é também o caminho do desespero (Verzweilflung) (Fenomenologia do Espírito, Introdução, § 78). Mas para além deste, sua inquietude quer conduzir o sistema realmente ao seu limite prático, à sua paralisia completa, numa permanente desindentificação, num deslocamento sempre insatisfeito pelo seu plano de imanência, fazendo-o explodir como imagem ilusória da vida petrificada - real e socialmente necessária hoje, mas completamente obsoleta. A dialética negativa é, segundo a caracteriza Adorno, um "materialismo sem imagens" - desmitologização, iconoclastia. "O caráter destrutivo não idealiza imagens", diz Benjamin. Só na negação determinada, na transcendência prática desta totalidade sistêmica estaria a porta de saída para o outro: o Pangéia, o locus utópico, que, diferente de Hegel, não se pode pintar e garantir positivamente, a não ser esperar e exigir que já não aliene meios e fins, mente e corpo, razão e sensibilidade, produção e linguagem.
"O ponto de fuga do materialismo histórico seria sua própria superação, a libertação do espírito do primado das necessidades materiais na condição de sua plena satisfação" (Adorno, Dialética Negativa, 2ª parte, Conceito e categorias, "Materialismo sem imagens").
Na imanência do capital, o tiro do caçador vem inevitavelmente. Então, fingimo-nos de mortos. Mas a vida está lá fora: damos o fora. "A teoria crítica da sociedade", diz Marcuse no final de O homem unidimensional,
"não possui conceito algum que possa cobrir a lacuna entre o presente e o seu futuro; não oferecendo promessa alguma e não ostentando êxito algum, permanece negativa. Assim, ela deseja permanecer leal àqueles que, sem esperança, deram e dão sua vida à Grande Recusa".
"No início da era fascista", lembra Marcuse por fim, "Walter Benjamin escreveu":
"É só por causa dos desesperados que a esperança nos foi dada."
(set. 2005/fev.2006)



4 comentários:

Tanara Da Silveira disse...

Bah Maikel, acho que te perdi de vista...

Unknown disse...

adorei o seu artigo parabens. Estudo Benjamin, e achei os comentarios mto pertinentes.

pedro disse...

destruiçao e esperança
essa cópula dialéctica...

bom texto...

se nao me engano vi vc por aí na comunidade do Benjamin...

saudaçoes

Unknown disse...

A civilização burguesa se resume [tal como foi retratado em 'Apocalipse Now']a uma família francesa jantando em meio à guerra na Indochina, ignorando a guerra e tratando o planeta como se fosse seu.