05 setembro, 2014

Terror econômico, político e midiático: o Gigante integral da “ditadura”.

Terror econômico, político e midiático: o Gigante integral da “ditadura”. 


Últimas variações sobre o tema da formação, no país da eterna emergência.


(Elaborado para a Mesa: Terrorismo de estado, mídias e informação, no Seminário “Terrorismo de Estado, Direitos Humanos e Movimentos Sociais, FE/USP, 2, 3 e 4 setembro de 2014).

Cláudio R. Duarte

1-

Um olhar para a conjuntura, no Brasil, nunca pode se descolar de sua estrutura, que é sempre determinante. Vamos rever aqui os "acontecimentos de Junho" sob o prisma do conceito de formação – a partir da singularidade desse conceito no país.

Por que as Jornadas de Junho aparentemente malograram ou não tiveram a continuidade esperada dentro de um movimento de massas sonhado pela esquerda mais atuante e valorosa nessas mesmas jornadas? Ao que tudo indica, aliás, não teremos algo como um Novo Junho, pois as brechas para isso estão sendo sistematicamente fechadas pelo Estado policial-carcerário construído sob o guarda chuva dos governos existentes, culminando no evento da última Copa do Mundo.

E por que, ao contrário de um Novo Junho, estamos prestes a eleger, com forte apoio no voto jovem e supostamente inconformista, uma candidatura feita de improvisos, tergiversações, de fragmentos de ideologias em decomposição, sem base, sem estrutura, sem forma, sem programa – a não ser, por certo, os de uma agenda neoliberal, fundada na flexibilização, na privatização, nas Ongs e no auto-empresariamento? Ou, como alternativa, estamos na iminência de reeleger o Partido das alianças e conciliações difíceis de engolir, o Partido que, supostamente feito por trabalhadores, pôs o crescimento do capital em primeiro lugar, como condição para programas baratos de inclusão social e de respingos de orçamento para as questões sociais, mantendo a máquina econômica capitalista funcionando com base em dívidas cada vez maiores? Sem mencionar que ambos pautados em identificações ou concessões enormes ao senso comum reacionário. Se há um legado palpável de Junho -- apesar de contraditório -- eis aí o Gigante Coxinha como saldo.
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2-

Partimos do diagnóstico feito pelos bons pensadores do Brasil: o país é uma formação social moderna, capitalista, definitivamente incompleta, uma formação evanescente ou uma espécie de pseudo-formação de âmbito social nacional. Foi o que veio a se chamar subdesenvolvimento periférico (ou modernização conservadora, acelerada e forçada em 64, não obstante retardatária, hipertardia, dependente, e assim por diante).

Vale lembrar, uma formação moldada pelo traço negativo herdado do escravismo colonial: o que se forma aqui aparece sempre já em ruína, daí a marca de sangue e morte, exalando por todos os poros. Aquilo que se forma no país – seja em âmbito social, econômico, político, cultural, estético ou subjetivo -- dá sempre sinais de falta de substância, de inconsistência, de miséria. Uma ausência de forma propriamente dita, que marca o objeto formado com o signo do precário, do improviso, do insubsistente. Uma eterna emergência que leva a nada ou à ruína iminente. Uma “formação supressiva”, enfim, segundo o termo de José Antonio Pasta ("Volubilidade e ideia fixa", Sinal de Menos 5, 2010).

Não que falte qualquer forma. Há um processo particularmente moderno de formação em curso, avançado e vanguardista a seu modo, que se inverte em produção do retrocesso. Naquilo que se forma, portanto, talha-se a marca da violência, o horror de uma desfiguração incurável do conteúdo. Daí a fugacidade, a morte iminente, a descontinuidade em toda linha e em toda dimensão. Na economia, o sistema de plantations e a produção voltada para a exportação primária; na política, o Estado oligárquico; na sociedade, a rígida hierarquia, a desigualdade e o racismo brutal etc. É o oposto de um movimento bem logrado e enraizado de constituição dialética. Daí a busca das "raízes do Brasil" (Sérgio Buarque de Holanda), se é que esse empreendimento comercial tinha alguma. Um ser social que não se constitui é um ser que, passando no Outro, não volta enriquecido de seu processo de reflexão e alienação, mas um ser que se perde no Outro, e resta na “dialética rarefeita entre o não-ser e o ser-outro” (Paulo Emílio Salles Gomes, Cinema: trajetória do subdesenvolvimento, 1973).

Na base dessa lógica de alienação e morte, portanto, temos uma fraca distinção entre Sujeito e Objeto, o eu e o outro, o público e o privado, a ordem e a desordem, o real e a ideologia ou o real e a mais brutal irrealidade. Eis o que destroi todo limite, toda análise, todo ser propriamente configurado. Essa falta estrutural de limites vem da célula matriz do domínio colonial: Casa-Grande e Senzala. Aqui, desde sempre, a dimensão do Outro, da Diferença, do Tempo, e do Direito, o elemento que regula e impõe limites à fusão do mesmo e do outro, é como que posta entre parênteses e virtualmente suspensa, podendo ser sempre eliminada sob o capricho dos poderes e potentados do momento. Brás Cubas é o protótipo dessa formação supressiva e desse sujeito deformado, que tem na cultura apenas uma casca vazia e um meio para a transgressão da norma (Cf. Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo - Machado de Assis, 1990).

As ideias modernas de cultura e civilização sempre tiveram a ver com a cidade, com o urbano, com os direitos de cidadania, num mundo ameaçador modelado pela guerra social instituída pelo capital. Ora, no Brasil, o que se pôs foi a cidade comercial, agroexportadora, depois a cidade industrial, finalmente explodida e implodida como uma espécie de anticidade (Henri Lefebvre, O direito à cidade, 1967), isto é, como repressão de demandas sociais, anticivilização ou cidadania restrita. A ideia de civilização torna-se aqui menos um conjunto de formas de desenvolvimento cultural ampliado e criação do sujeito autônomo e emancipado do que o louco império do mundo dos negócios – o reino absoluto da forma celular da alienação: a forma-mercadoria, que demole todo limite civilizatório. No pecado de origem, os indivíduos aqui não vendem “livremente” o "seu" tempo de trabalho, mas são vendidos por inteiro, como escravos. Da tortura e do estupro nas senzalas às salas de tortura nas ditaduras, à repressão policial militarizada e truculenta e à criminalização das lutas sociais, sem esquecer das mediação produtiva, feita de espoliação integral de recursos e descartabilidade do trabalhador nas grandes obras, eis o resultado dessa forma coisificada de socialização. Noutras palavras: no país, é como se a forma da economia suplantasse toda forma civilizacional (não puramente dedutível do sistema capitalista). 

No Brasil, o processo de "subsunção formal e real do trabalho ao capital" (Marx) tende, assim, a se tornar quase absoluta. É com ela que se instaura o estado de exceção permanente, que não precisa se converter em uma "ditadura" política em sentido técnico estrito do conceito. Mas se trata de um estado de exceção virtual, sempre iminente, enraizado numa base econômica violenta. Seu ideal ou finalidade seria flexibilizar toda forma contratual ou legislação social, política e ambiental, no limite eliminar todo contrato coletivo de trabalho e toda lei de regulação da exploração econômica. Na base social elementar, não temos uma "sociedade salarial" integrada como classe trabalhadora, constituída como camadas médias remediadas, tal como formada na Europa dos chamados "anos dourados", mas uma "superpopulação relativa" singular: um "proletariado precarizado" ou "precariado" permanente (Ruy Braga, A política do precariado, 2012, p.18), informal, flexível, móvel, migrante, social e politicamente instável, dificilmente constituindo-se como “classe” para si, como classe em luta. O "material humano" excelente para uma ótima extração de mais-valia absoluta, em composição com a mais-valia relativa. Segundo Chico de Oliveira, o capitalismo ornitorrinco brasileiro tornaria quase todo o tempo de trabalho em trabalho não-pago, em que “desaparecem os tempos de não-trabalho”, num entrelaçamento dessas duas formas de extração de mais-valor (Francisco de Oliveira, O Ornitorrinco, 2003, p. 136).

Nesse contexto, dominação pessoal e impessoal compõem um todo entrelaçado, de modo que os donos do capital são também os “donos do poder” (o Estado patrimonialista, de R. Faoro).

3-

Nossa tese é esta: por trás do terror político desse estado policial que se montou, herança da ditadura de 64, e dessa mídia monopolista e conservadora, que aterroriza a todos dizendo que o PT é “comunista”, a mídia monopolista que agora dirige a massa informe a mais quatro anos de consenso neoliberal, há uma espécie de totalitarismo ou terrorismo econômico de base. É este que ameaça e destrói toda forma antagônica, toda oposição, toda consistência política da esquerda.

Daí a persistência do "gigante" da ditadura: repressão política de movimentos sociais, coerção estatal sobre o todo, monopólio estatal ou privado da economia, incluindo monopólio midiático, moral conservadora e familista, abertura ao capital estrangeiro, industrialização em marcha forçada, sem liquidação das oligarquias regionais, endividamento externo, degradação ambiental monstruosa. O conceito de terrorismo, aqui antevisto, é o mesmo que Henri Lefebvre (A vida cotidiana no mundo moderno, 1967) anteviu no estado burocrático francês pré-maio de 68: um "terror difuso", que esconde sua violência latente e a guarda como último recurso supremo. O terror da economia política: um Estado que programa e codifica as necessidades sociais enquanto necessidades econômicas de crescimento e acumulação de capital, e que, para isso, bloqueia de saída o próprio pensamento de alternativas a tudo isso. Crescer, acumular, ampliar – mesmo saúde, educação ou moradia nada mais são, dessa ótica, do que meios de reprodução da força de trabalho, vale dizer: instrumentos de gestão biopolítica do precariado (escolas técnicas, moradias e saúde primários, abertura de frentes de trabalho selvagens, programas sociais emergenciais etc.) e de possível inserção do país como potência regional subimperialista na América do Sul. 

O “terror” instaurado pelo PT e pela mídia é nada mais, assim, do que o terror da economia autonomizada: o fetiche do crescimento cego, imposto pela globalização do capital, fundado em produção acelerada e destrutiva do espaço, em dívidas bilionárias e ganhos assegurados para as elites do agronegócio, da indústria e do setor financeiro, rentista e especulativo. Mas como sabemos, para o capital e sua mídia reacionária, isso nunca é o bastante. 0,9 de crescimento do PIB é pouco comparado ao patamares chineses, indianos ou chilenos, o dos 5, 7 ou 12% anuais. Como se 1% de US$ 2,5 trilhões, da maneira como é gerado, não tivesse impactos sociais e ambientais gigantescos (cf. os índices de desmatamento e poluição recentes na Amazônia, Nordeste e Centro-Oeste). Mais uma vez estamos imersos no "mito do desenvolvimento econômico", há muito apontado por Celso Furtado (1974), quando dizia durante a crise do milagre econômico brasileiro: "Cabe, portanto, afirmar que a ideia de desenvolvimento econômico é um simples mito. Graças a ela, tem sido possível desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades que abrem ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em objetivos abstratos, como são os investimentos, as exportações e o crescimento". Além disso, é como se a crise estrutural do capital não estivesse instaurada e posta em nosso próprio horizonte, já tomando a própria América como um todo, a Europa e o Japão, como se os lucros e sobrelucros monopolistas pudessem ser mantidos a longo prazo sem uma brutal exclusão da massa e sem mais desemprego, políticas neoliberais, privatizações etc. A isso, o Estado responde com sua política de administração da pobreza, tomando a população como objeto político.

Ora, a grande mídia pressiona e aterroriza ainda mais os governos e a população se as metas econômicas absurdas não são cumpridas. Para ela, o céu é o limite. O que importa é fazer a roda da acumulação girar mais velozmente sempre. A corrupção petista, como se sabe, é apenas um álibi, para estigmatizar de vez os partidos de esquerda em geral – para tirar qualquer demanda social da agenda puramente neoliberal e economicista das classes dominantes (em que se encaixa confortavelmente parte das classes médias). Como se sabe, nesse Estado patrimonialista a corrupção é estrutural, ainda maior quando a direita o controla. Este então o terror econômico que elimina o dissenso político, no limite se tornando, como propõe Agamben, uma “guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político”. “O estado de exceção apresenta-se como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo” (G. Agamben, Homo sacer, 1994, p. 13). Essa eliminação não precisa ser física, nem a democracia chegar de fato ao absolutismo. Ela tende a ser anulação política da oposição, o que é aliás bem mais "produtivo" para o sistema, que pode contar com massas permanentes no exército de reserva de trabalho precário e assim continuar a comprimir salários, obter consumo, manter sua máquina eleitoral, suas promessas de acumulação etc. (Cf. o argumento de Paulo Arantes, Extinção, 2007 e O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência, 2014). 

Desde 64, nunca se governou tanto com medidas provisórias, na estratégia de fuga para a frente: tanto para a aceleração do crescimento como para apagar incêndios sociais emergenciais, visando neutralizar a oposição anticapitalista, toda semente de anticapitalismo, com mais crescimento do capital.

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4-

As jornadas de junho podem malograr à medida que não conseguem, como exceção momentânea instaurada, se tornar a regra, ganhar não somente as ruas como acontecimento, mas inverter as regras do jogo de maneira permanente, polarizando a sociedade em campos antagônicos e instituindo novas formas de “governo” anticapitalistas. Hoje, tensionar o Estado exigindo re-formas radicais levaria, no limite, à explosão da forma vazia da mercadoria e da gestão estatal burocrática da miséria. O social contra o econômico e o político instituídos.

Em seu lugar, infelizmente, o gigante que se erige é o gigante de uma falsa unidade “nacionalista”, conciliatória, de fundo evangélico, neoliberal e/ou protofascista.(Cf. Cláudio R. Duarte, "O gigante que acordou - ou o que resta da ditadura? Protofascismo, a doença senil do conservadorismo", Revista Sinal de Menos, edição especial, 2013, on line). No fundo dessa falta de antagonismos explícitos, encontra-se o nosso velho problema de formação: ausência do trabalho de base e de politização das massas insurgentes de junho, que, assim, são mais ou menos facilmente capturadas pelo espetáculo midiático-partidário-oligárquico contínuo. O meio informacional hoje apenas reproduz o informe de nossa má formação constitutiva.

Como diz um companheiro militante simpático ao PT, sem descurar a autocrítica necessária do processo instalado:

“A verdade é que, apesar da retórica, a esquerda abandonou a luta ideológica e política militante com o povão. Para muitos militantes de partidos de esquerda, falar de mobilização de massas populares, numa perspectiva concreta, é grego. Para outros é melhor ficar esperando por explosões conjunturais como junho de 2013, pois em “tempos normais” não conseguem mobilizar quase ninguém para luta social. O resultado é que o povo brasileiro se encontra desorganizado, desinformado e desmobilizado, apesar de ter melhores condições para lutar hoje. 


Se tinha a faca e o queijo na mão para construir uma grande força social e política com as classes populares e parte das camadas médias,  percebe-se que a esquerda não teve prioridade no trabalho de base e encontra-se sem raízes nas comunidades, vilas, associações comunitárias e outras formas de vivencia das camadas trabalhadoras e populares. E só de luta ideológica e retórica de esquerda não se mobiliza ninguém”. (Fernando Marcelino ). 


Bibliografia

Giorgio Agamben, Homo sacer, Ed. UFMG, 1994.

Paulo Arantes, Extinção, Boitempo, 2007 e O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência, Boitempo, 2014.

Ruy Braga, A política do precariado, Boitempo, 2012. 

Cláudio R. Duarte, "O gigante que acordou - ou o que resta da ditadura? Protofascismo, a doença senil do conservadorismo", Revista Sinal de Menos, edição especial, 2013.

Celso Furtado, O mito do desenvolvimento econômico, Paz e Terra, 1974.

Paulo Emílio Salles Gomes, Cinema: trajetória do subdesenvolvimento, 1973.

Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, José Olympio, [1936], 1973.

Henri Lefebvre, A vida cotidiana no mundo moderno, Ática, [1967], 1991 e O direito à cidade, Documentos, [1967], 1969.

Francisco de Oliveira, Crítica da razão dualista/ O ornitorrinco, Boitempo, 2003. 

José Antonio Pasta. "Volubilidade e ideia fixa", Sinal de Menos 5, 2010.

Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo - Machado de Assis, Duas Cidades, 1990.

3 comentários:

Revistacidadesol disse...

Cláudio: a essência de junho é a FiP, a Frente Independente Popular, propondo o boicote o voto nulo. Não Marina.

Vc está muito dentro dessa esfera petista ainda. Pensamento atrasado, falido.

Anônimo disse...

A essência de Junho é o MPL e o MTST, a ocupação de assembleias em Porto Alegre e outros lugares, que conquistaram ganhos efetivos, impactando no orçamento público e na política da cidade.

O grande resto é a "multidão" efêmera, sem foco preciso, além das grandes massas despolitizadas, a classe média "coxinha" nacionalista. Outra ainda essa esquerda dogmática que você representa, que imagina que vai fazer diferença fazendo voto nulo. Isso é voto para Dilma. Desobediência civil seria não votar, boicotar em massa. Mas isso você sabe, está longe de ocorrer ainda. Então, deixar de votar é consentir com o vencedor, que pode ser a direita mais funesta.

Revistacidadesol disse...

Deixe de ser politiqueiro e eleitoreiro, Bob Klausen.