01 setembro, 2012

Ascensão, crise e resistência do indivíduo na pintura moderna

Ascensão, crise e resistência do indivíduo na pintura moderna
- um simples esquema didático -


Cláudio R. Duarte


1- A pintura pode ser lida como um fenômeno histórico, social e mesmo geograficamente determinado, como uma das camadas fundamentais que formam a cultura e o imaginário social. 

Por meio da representação pictórica, pode-se analisar como o conceito de indivíduo nasce lentamente no fim da Idade Média, como se afirma cada vez mais a partir do Renascimento e do pleno triunfo da burguesia, mas também como, de maneira contraditória, ele vai entrando em crise a partir do realismo e do impresionismo até finalmente explodir, se fragmentar e quase desaparecer na pintura modernista.

Na base desse processo há certamente as várias transformações históricas da economia, da política e da sociedade burguesa no Ocidente. 

Ao fim do trajeto, pode-se pensar que o modernismo, quando refletiu profundamente sobre a arte e a prática social de seu tempo, tentou imaginar um novo indivíduo e uma nova ideia de espaço social, expressando-se como uma crítica do indivíduo burguês isolado, abstrato, egocêntrico, sempre idêntico a si mesmo e separado do contexto social para fins de dominação do homem e da natureza.


2- Sabe-se como a idéia de indivíduo nasce como tal a partir do Renascimento europeu. É possível perceber isso perfeitamente quando se analisa imagens da Idade Média. Tome-se como exemplo a imagem da Fig. 1 a seguir. A falta do que nós, modernos, chamamos "indivíduo" torna-se imediatamente evidente em vários de seus elementos.

De início, notemos como a representação é anônima, típica de um tempo em que a arte não era ainda um ramo do mercado. O seu tema faz parte do imaginário coletivo tradicional: o sepultamente de Cristo, um tema típico de uma época histórica em que o indivíduo é inseparável da comunidade cristã medieval.

(Fig. 1 - ANÔNIMO. O sepultamento de Cristo. De um Saltério manuscrito de Bonmont. 1250-1300.)

Essa quase ausência do indivíduo se põe claramente nos vários elementos do quadro: o destaque dado à figura divina ao centro do quadro, a quase falta de expressão dos rostos, a própria semelhança de fisionomia entre eles (seja entre os anjos ou entre os apóstolos e as mulheres). Aliás, temos aqui uma semelhança geral: das cores (um quadro quase monocromático), das vestes, dos gestos, quase simétricos.  Assim, temos uma composição completamente em equilíbrio, feito de pares: dois anjos ao fundo, duas crianças no primeiro plano, os dois apóstolos, as duas Marias, e assim por diante. Trata-se, para nós modernos, de um quadro profundamente estático e monótono, traduzindo menos o desespero do que um congelamento do tempo e da ação, assegurado pelo congelamento das figuras com olhos vidrados. A falta da perspectiva linear (veja-se as linhas dessimétricas na linha do túmulo na cabeça de Cristo e a linha formada pela capa de João) restringe o espaço de cada ser, que se amontoam na tela. O fundo dourado limita a visão à superfície bidimensional, e a profundidade fica apenas esboçada.

Ora, cerca de algumas décadas após essa figuração, por volta de 1310, quase tudo se modifica. Na figuração de Giotto, temos um dos primeiros artistas que poderíamos denominar "moderno", ou melhor, protorenascentista e protomoderno. Agora, o indivíduo aparece como algo evidente, isto é, torna-se uma figura visível e palpável: Cristo e todas as figuras ganham uma figuração mais humana e realista, deixam de ser bonecos com olhos esbugalhados. As cores variam, as roupas ganham contornos precisos e mesmo particulares, a fisionomia das personagens se define, todos entram em movimento e esboçam gestos individuais, as cores variam bastante. Principalmente, como tema central, os rostos ganham expressão, uma profunda lamentação diante do corpo de Cristo. A árvore do saber colocada na ladeira, simbolicamente desfolhada, esboça uma ideia de razão e de mundo humano. A profundidade começa então a ser melhor delineada, sugerindo um horizonte humano. Assim também todos ganham espaço na tela, deixam de se amontoar uns sobre os outros.



(Fig.2- Giotto, A lamentação diante de Cristo, 1310.) 
3- Vejamos agora o que se passa no Renascimento. Tomemos dois quadros a óleo do pintor holandês Van Eyck, fruto de suas viagens pelo norte da Itália. Na Virgem do Chanceler de Rolin (fig. 3), o indivíduo moderno se insere literalmente no tema tradicional religioso.

  (Fig. 3. Jan VAN EYCK, A Virgem do Chanceler de Rolin, 1435.)
A virgem Maria, o menino Jesus, um anjo se materializam em plena cidade europeia, no seio do capitalismo comercial nascente. Ao fundo, a perspectiva linear perfeita, com ponto de fuga no meio do arco central, nos abre a visão detalhada da cidade, do rio, dos navios, da ponte, das propriedades, da catedral e dos prédios municipais, representando enfim cada indivíduo que vive na cidade (ver essa tela em alta definição no site do Museu do Louvre). O realismo é cabal, e tudo parece contar para um olhar dominador: desde os pássaros e flores até o mais ínfimo indivíduo ao longe, os detalhes do piso e da arquitetura, das roupas, da coroa etc. A fisionomia e a expressão piedosa do chanceler é completamente configurada.

O plano vertical, representado pelo anjo e pelas colunas, convive com a abertura total do plano horizontal, de uma perspectiva que leva ao infinito, para além das montanhas. O tema religioso se mistura ao tema secular. A burguesia é posicionada frente a frente com o sagrado, mas também se abre para a paisagem humana secularizada. O quadro anuncia assim o domínio do mundo pelo comércio, indicando de onde vem o seu poder de distinção social. A grande burguesia parece pedir aqui a autorização divina para conquistar o mundo em nome de Deus.



(Fig. 4- Jan Van EYCK. O casal Arnolfini, 1434.) No segundo quadro de Van Eyck, da mesma época e com a mesma técnica da tinta a óleo, temos uma cena íntima na vida de um jovem mercador italiano e de sua futura esposa. Os detalhes realistas desse quadro são impressionantes e quase falam por si mesmos. Notemos no entanto a figura detalhadíssima do cão, pintado pêlo a pêlo, como um símbolo da fidelidade, as frutas murchando na mesa, anunciando talvez a passagem do tempo, a noiva soltando as chinelas vermelhas ao fundo e erguendo o vestido delicadamente, fazendo um certo volume no colo e simbolizando talvez o nascimento de um possível herdeiro da fortuna da família.
As cores escuras e austeras caem para o lado do homem, as cores vivas (verde e vermelho, sugerindo fertilidade e paixão) para o lado da mulher; enfim, a janela e a porta abertas, o espelho ao fundo fazem refletir a imagem das costas do casal e de mais dois seres, que testemunham a cena das bodas no quarto, sugerindo também o próprio pintor no ato da pintura. De fato, Van Eyck assina o quadro acima do espelho, escrevendo "Johannes van Eyck esteve aqui, 1434", em latim. A janela e a porta de onde entra a luz anunciam uma paisagem exterior, o local de onde "surge" a riqueza desse novo mundo burguês em plena formação.  A comunidade que resta parece ser a comunhão do amor. Já o pequeníssimo detalhe da lama nos tamancos do jovem Arnolfini, aliás voltados para o lado de fora do quarto, não enganam: essa riqueza vem da sujeira mundana do comércio internacional, como que prenunciando as conquistas ultramarinas europeias.  

 (Fig. 5- Hans HOLBEIN, Georg Gizse, um mercador alemão em Londres, 1532.)
Um século depois, um quadro de Hans Holbein, outro grande pintor renascentista holandês, permite-nos visualizar como a burguesia quinhentista já se deixava representar de forma "pura", sem mistura ao tema religioso, comunitário ou amoroso. O indivíduo burguês isolado -- Georg Gizse é um mercador alemão em Londres -- aparece representado de forma realista e muito detalhada. Note-se como é retratado num ângulo oblíquo, como que pego de surpresa em seu trabalho diário, com as moedas e os papeis de contabilidade nas mãos e na mesa (na realidade distribuídos pelos quatro cantos da tela), a pena, os livros, todos os apetrechos de seu mundo particular. Sem dúvida, aqui, temos uma grande valorização burguesa do trabalho. O roupão preto por cima do colete vermelho, a cor da distinção social da nobreza, o chapéu recobrindo os cabelos, o quarto aparentemente apertado - fazem conviver dois tempos sociais diferentes, mas a transição para o mundo burguês, do comércio e do trabalho, é muito clara. Na mesa, o vaso de flores parece querer lembrar nostalgicamente do campo, saudando ao mesmo tempo a conquista da distância e do afastamento em relação à natureza. Ele já configura aí o tema da coleção de objetos que irá predominar como tema no clássico gênero "natureza morta". As cores sombrias num quarto sombrio, o preto, o vermelho escuro, o metal e a madeira, reforçam esse distanciamento da natureza. Além disso, note-se como o burguês é agora menos um corpo do que apenas uma cabeça e uma mão que calculam e registram. Sua expressão é séria e mesmo triste. Seu espaço de vida pode se reduzir ao seu gabinete de trabalho, uma atividade abstrata por certo lucrativa, que se conecta ao mundo social por meio do dinheiro e da escritura comercial.

4- Resumindo muito e deixando de lado as grandes transformações da pintura nos séculos após a Renascença, abstraindo também toda a discussão das razões estilísticas e os contextos locais mais específicos dos pintores, voltemos os nossos olhos rapidamente para 4 momentos que anunciam a crise da burguesia consolidada e de sua ideia de indivíduo burguês isolado. Veremos assim um quadro de Pieter Brueghel (um "maneirista"), outro de Rembrandt (um pintor na transição para o barroco), por fim, um de Gustave Coubert ("realismo") e um de Claude Monet ("impressionismo"). 


Pieter Brueghel pinta quase sempre o indivíduo inserido no coletivo. Sem abandonar o retrato de indivíduos singulares e a visão em perspectiva da paisagem local, suas telas resistem à abstração do meio social e geográfico. Assim, o meio geográfico e social se impõe à forma de sua pintura: nas cores, nas linhas do desenho, na própria angulação do ponto de vista. O homem, a criança, o velho, fazem parte de uma comunidade, de um modo de vida, de um espaço social concreto, mesmo que em dissolução. O estilo maneirista dá um espaço para o outro existir independentemente do olho do sujeito que contempla a tela.
Assim, pode-se ver claramente como não há nada de estático ou de isolado em suas telas. Elas são dotadas de ação e movimento. Elas reúnem o alto e o baixo, a direita e a esquerda, perpassando as várias camadas da sociedade de seu tempo. Daí uma tendência ao detalhamento e à miniaturização do desenho. O camponês, o pastor, o pescador, as crianças brincando, o triunfo da morte sobre a multidão, a gente miúda povoando as ruas, nas quatro estações do ano, tudo isso vale tanto quanto figuras elevadas como José, Maria, os apóstolos (cf. O censo em Belém ou São João Batista pregando) ou Ícaro (cf. A queda de Ícaro).
 Nesse quadro de 1560, Brincadeiras infantis (fig.6), o que chama mais a atenção é o ângulo da representação, a partir do alto, que permite abarcar uma totalidade social e espacial em movimento, sem a subjugar completamente os objetos a um ponto de vista único, estático, centralizador, autoritário.
Ou pelo menos, nesta tela de Brueghel temos a ilusão de mais de um ponto de fuga: um na casa do meio, outro na rua lotada de crianças que se alonga em diogonal no quadro do canto inferior esquerdo ao canto superior direito (criando a perspectiva dominante da tela), outro ainda que conduz ao rio, às árvores e ao resto da cidade. Essa focalização plural, portanto, quebra a perspectiva centralizadora do retrato burguês e impõe ao espectador uma atividade contínua, um livre passeio do olhar pela tela em busca das crianças e de suas brincadeiras específicas. Talvez seja a comunidade que ainda resta no mundo moderno, um mundo que vai se fragmentando em indivíduos concorrentes e isolados, o mundo sério e totalmente ordenado do trabalho e dos negócios. Por isso, as telas de Brueghel não são nunca límpidas e inteligíveis de imediato, sempre impõem uma leitura atenta, pois retratam o movimento e mesmo a confusão da vida real.
  
Em Rembrandt, o jogo barroco de luz e sombra também oferece resistência ao olhar penetrante e sedento de transparência. Há no entanto retratos realistas hiperdefinidos, mais à maneira do estilo renascentista. Nesse retrato (fig. 7) de uma mulher burguesa, tipicamente puritana, temos a consolidação do retrato do indivíduo burguês, agora reduzido a um simples rosto. O indivíduo se reduz à pura face, num olhar vazio, quase morto-vivo, diríamos, se não fosse um leve esboço de sorriso. O corpo se esconde completamente. O burguês é uma cabeça que pensa.


(Fig.7- REMBRANDT, Haesje Von Cleyburg, 1634.)


Mas, se nos voltarmos para a representação da classe dos trabalhadores modernos, que emerge tardiamente aliás, como na visão realista de Gustave Coubert sobre os quebradores de pedra (fig. 8), veremos já a crise avançada do indivíduo e da individualidade. Nos retratos de Coubert, o indivíduo aparece muitas vezes de costas ou de lado, absorvido pelo seu trabalho, que se estende da manhã até o fim da tarde, apagando a paisagem de nossa vista. Não há mais o foco nos indivíduos isolados, mas no seu esforço coletivo, nos corpos submetidos à atividade prática, sabemos que dominada pelo capital. Não o homem, mas o trabalho é quem ganha assim toda a dignidade e todo o valor. O homem agora vai se tornando um simples número, numa multidão informe.    

(Fig. 8- Gustave COUBERT, Os quebradores de pedra, 1849.)

Finalmente, no caso do impressionismo de Claude Monet (fig. 9), a cidade aparece como ela é, na superfície de suas ruas: como uma reunião de gente quase indistinta, em movimento, ofuscada pela luz intensa e as construções que se impõem ao campo de visão do observador, numa profusão de corpos vestidos com a casaca preta burguesa, vistos do alto por mais personagens indistintas, vestidas com a mesma casaca. O que há de belo no quadro -- o choque de luz em tons pasteis em contraste com o aspecto de formigueiro da multidão, em suma, a exteriorização visual de uma realidade urbana complexa -- é também o que há de triste e desolador quando se pensa no que realmente vai se convertendo a cidade moderna, que mais isola do que reúne as pessoas, após o fim desastroso da Comuna de Paris (1871), neste momento de triunfo do mundo capitalista e imperialista (com a expansão da dominação da África e da Ásia). O espaço tende então a grandes massas que se impõem ao campo de visão, explodindo a sua possibilidade de ordenamento e simbolização claras. Forçando um pouco a visão, talvez, eis o prenúncio figurativo das guerras imperialistas do século XX: de um lado, um espaço convertido em uma massa de luz ofuscante, sugerindo a riqueza e a possibilidade de descoberta de todo um mundo, de outro uma multidão opaca, evanescente e indistinta de concorrentes no mercado.

(Fig. 9- Claude MONET,  Le boulevard des capucines, 1873).





5- A partir desse momento, a representação pictórica do indivíduo começa a se  a se deformar, a se desintegrar até finalmente desaparecer da tela. Ao mesmo tempo, ela tende a ressurgir como problema e como pesquisa de uma nova subjetividade, de um novo indivíduo, não-burguês, coletivo e cooperativo, de várias outras formas, agora já abstratas, não figurativas, ou pelo menos não plenamente figurativas.

Trata-se de um processo de crise do indivíduo e do mundo que o possibilitou até aqui. Isso certamente tem a ver com um protesto diante do mundo capitalista, que constrange e deforma os indivíduos reais, tornando-o apenas parte de uma massa administrada pelo poder.

Os prelúdios da arte modernista estão, na virada do século, em Paul Gauguin, Henri Rousseau, Van Gogh, Edvard Munch e James Essor. Na era da ascensão do grande capital e do Imperialismo, os indivíduos reais começam a escapar ao desenho, à representação e à simbolização tradicionais. A arte não consegue mais representá-los de uma maneira clara e universal. Quando Paul Gauguin começa a representar os povos periféricos na América Central, na África ou no Taiti, ele tem de ampliar todo o acervo histórico da pintura até redescobrir o desenho, as cores, o ponto de vista. Veja-se essa tela de 1887.

 (Fig. 10 - Paul Gauguin, Um beira-mar na Martinica, 1887).
  A dificuldade da representação, nesse momento já pós-impressionista (simbolista, em vários quadros), torna-se evidente -- nenhum rosto vai plenamente delineado, uma perspectiva embaçada e deformada, em que sobressaem as manchas coloridas, dificilmente presentes na natureza real, em vez do desenho nítido. As cores vivíssimas sugerem um refúgio de vida e riqueza no mundo tropical: o vermelho, o verde, o rosa, o amarelo  nos trajes, nas árvores, nas flores, o belíssimo azul do mar, a montanha cinzenta e a cidade evanescente ao fundo. Tudo aqui, no entanto, apenas aparenta calma e harmonia - pois o que significa, nesse contexto histórico, o barquinho no mar senão o comércio colonial ou os negros na praia senão uma história de violência e escravidão? Temos então uma cena tipicamente colonial - pacificada de maneira ideológica, falsa, mentirosa, o que aparece nos detalhes um tanto contraditórios que permanecem na composição e permitem criticá-la a partir de si mesma: todos os negros estão ali a trabalho, ou pelo menos numa pausa para a rotina do trabalho. As flores e as vestes coloridas não escondem em primeiro plano o destaque da tábua de mercadorias a serem vendidas no mercado. Em suas telas, Gauguin revela e esconde as contradições do Novo Mundo, recria o mito da vida, da inocência e do erotismo dos "primitivos" em pleno domínio do morto e descolorido do Colonialismo.

A verdade do período colonial parece muito menos ideológica na obra de Henri Rousseau, um ex-cobrador de impostos que se torna pintor autodidata aos 40 anos.  Sem a técnica cultivada e aperfeiçoada dos grandes mestres, Rousseau cria uma "arte ingênua", com traços de infantilidade. Vejamos a fig. 11.
(Fig. 11- Henri Rousseau - "A guerra", 1894)
 A figura mitológica da Discórdia passa velozmente por cima de tudo, portando uma espada e um archote incendiário que nada ilumina. Ela vem acompanhada de um Cavalo cego, na verdade sem olhos, saltando de um lado ao outro da tela. As pessoas nuas, aparentemente civis (e não soldados), estão um tanto deslocadas da cena, que parece se passar num campo de batalha descampado. Elas são como bonecos mortos, inexpressivos, como a própria Discórdia, todos traçados com linhas angulosas e petrificadas. Estão em pedaços e vão sendo comidas pelos pássaros, mas ao mesmo tempo já estão sendo engolidas pelos torrões de terra, nem bem a Discórdia tenha passado. É que ela nunca para de passar, parece sempre retornar ao mesmo ponto. Ela não pisa o chão e é captada num movimento congelado; aliás o vestido branco esfarrapado nos lembra algo desse congelamento. Aqui, não se trata de uma realidade que foi simbolizada, mas de um signo alegórico que desceu à terra e se abateu sobre a vida real. A natureza se desfigura nas nuvens vermelhas (de fogo e sangue?) e nas folhas negras e murchas das árvores; o fundo parece repetir eternamente o mesmo tema do quadro no primeiro plano. Eis aqui o prenúncio da Guernica de Picasso, que reconheceu sua dívida para com Rousseau. Muito pouco temos aqui, portanto, de "primitivo", de "infantil" ou de "ingênuo". O primitivismo da composição apenas reproduz o primitivismo da civilização industrial e seus conflitos.

Numa outra tela de Rousseau (fig. 12), em seu estilo mais característico, temos novamente um choque: uma fina dama em plena natureza selvagem equatorial? É o justo oposto das cenas coloniais de Gauguin. Rousseau nos faz lembrar que o luxo e a riqueza da Europa têm uma ligação obscena com o que acontece nos trópicos. As figuras chapadas, a proporção e a perspectiva deformadas se ajustam perfeitamente para a expressão de um mundo coisificado e deformado. Não se trata de uma natureza "idealizada", muito menos representada fielmente como um espelho. Em suas telas do período, essas florestas escondem caçadores, macacos, leões ferozes ou damas fantásticas como essa, que equivalem simbolicamente a essas mesmas feras selvagens.

(Fig. 12 - Henri Rousseau - Mulher caminhando na floresta exuberante, 1905).










Na passagem para o século XX, a pintura entra em crise. Por um lado, ela busca promover o espanto, desnaturalizar o olhar do observador e os objetos representados. Trata-se de furar a representação e o simbólico; no limite, trata-se de destruir a perspectiva e buscar a materialidade mais funda, mais crua e também mais enigmática do real, buscando o que escapa à representação.

Mas por outro lado, ela se torna simplesmente estéril e redundante, uma simples repetição por outras vias do que acontece no mundo completamente dominado pela indústria cultural, pela imagem e pelo espetáculo.

Isso pode ocorrer da forma mais paradoxal, como no díptico de Andy Warhol para Marylin Monroe, aparecida morta em 1962 (fig.13), em que a imagem estandardizada da atriz é atacada e como que desmanchada, mas resiste à prova afinal, perdendo a sua cor, aliás totalmente artificial, mas não o sorriso e os contornos. De um lado a Marylin "viva", como uma pura superfície construída pela mídia e a indústria cultural, de outro a Marylin que vai se desfazendo como estrela midiática. É como um mito moderno, que, sem nenhum conteúdo substancial, reproduz-se mecanicamente quase do mesmo jeito, como um puro esquema fantasmagórico nas cinquenta vezes em que se repete. Marilyn, Marilyn, Marilyn, Marilyn... o indivíduo burguês é esse nada superficial e intercambiável, tal como uma lata de sopa industrializada (outro tema famoso de Warhol). Ao mesmo tempo, não se sabe se Warhol critica ou ajuda a consolidar o mito. Provavelmente faz os dois ao mesmo tempo.

(Fig. 13 - Andy Warhol, Marilyn diptych, 1962). 

Uma crítica política mais fundamental ao indivíduo burguês isolado, sem as ambiguidades desconcertantes da art pop e do formalismo da arte abstrata, é encontrada na arte de Asger Jorn, Karel Appel e de outros pintores do grupo CoBrA (iniciais das cidades de Copenhage, Bruxelas e Amsterdã).  
(Asger JORN, É preciso vestir a fortuna da felicidade, 1962, 81 x 55 cm).
O gesto dominador  do burguês não poderia ser mais exemplar. O fraque típico, o cigarro no canto da boca, as duas mãos ocupadas segurando bonecas ou modelos de mulheres vestidas de maneira chique com peles ou penas de animais, o horizonte paisagístico inexistente. O segredo está nas pernas do sujeito. São as pernas de uma criança ou de um palhaço, bem como a máscara na lapela, que denunciam que o burguês não tem uma realidade própria e vive apenas da dominação do trabalho alheio.




Nos quadros de Jorn e Appel temos todo um outro conceito de sujeito e indivíduo: aqui o indivíduo é relido em sua multiplicidade formativa. Em "Tu eras tal" (Asger Jorn, 1956), temos múltiplas cabeças de mulher unidas a um centro difusor. A tinta espalhada conjuga desenho e cor:

Ou ainda, nessa Cabeça e pássaro de Karel Appel:

O olho direito (da figura humana), a boca e o pescoço aparecem em preto. Não há olho esquerdo bem definido, senão um tênue esboço. Quanto ao pássaro, temos de ver tudo projetado sobre o rosto, fazendo transformar partes do corpo humano em animal: o olho direito vira a cabeça do pássaro (o olho do pássaro está delimitado de azul), a boca se torna asa, o pescoço se torna a segunda asa. O corpo do pássaro aparece em vermelho.
O sentido inteiro do projeto CoBrA aponta para isto: um indivíduo que é coletivo e cooperativo, e que vive em harmonia com a natureza, redescobrindo o que há de natureza em si. Além disso, o desenho harmoniza o homem com o traço infantil, com a realidade do sonho e de criança resistente em cada um de nós, num desenho livre das convenções... uma espécie de expressionismo político, enfim, que emula o esforço de gente tão díspare quanto Miró e Pollock (Para um ensaio crítico sobre Pollock: ver meu ensaio - "Extratos de Pollock". Sinal de Menos nº9, 2013 (www.sinaldemenos.org). 
Nesse outro trabalho de Jorn temos uma População impopular (1956) - assim deve aparecer a multidão rebelde para o olhar do Poder estabelecido:   



Um comentário:

Anônimo disse...

muito bom Cláudio! ta de parabéns . gênio