24 agosto, 2006

QUAL ´POLÍTICA´ APÓS O BLOQUEIO DA POLÍTICA ? (Obervações sobre teoria e práxis na época de falência das esquerdas)

Qual “política” após o bloqueio da política ?

Observações sobre teoria e práxis na época de falência das esquerdas
Cláudio R. Duarte



Ponto Zero (ou, onde estamos e nos posicionamos):
O voto nulo como forma de deslegitimação do processo político é uma negação abstrata da política. Será que realmente temos de escolher entre votar ou não votar ? Por que excluir da ação alguns campos de luta tradicionais ? Sempre achei que uma luta anticapitalista se dá em múltiplas frentes, da mais simples, paliativa, dentro da institucionalidade até a mais ampla e radical, fora da ordem estabelecida. Ora, hoje o capital esmaga-nos em todas as frentes. É claro que uma negação da eleição pode levar a algo importante em momentos mais radicais de um movimento emancipatório - mas hoje evidentemente não é esse o nosso caso. A antipolítica precisa da "paciência do conceito" para ser efetivada. Desta forma, acredito que neste momento precisamos escolher alguma via. Pense-se nos enormes recursos do Estado: no limite eles podem salvar vidas, dar ainda certa dignidade de vida para os mais pobres e abrir nichos de reflexão e democracia em frente ao autoritarismo latino-americano. Vamos entregar o Estado às mãos da burguesia mais uma vez ? (PSDB, PT, PSOL etc.: tout la même chose ?). Creio mesmo que a opção pelo "voto nulo" hoje é uma submissão ainda maior ao espetáculo: ficar assistindo aos grupos que controlam o poder estatal se perpetuando ad infinitum - sem contra-propostas de ação eficazes. Coroamos nossa impotência com mais impotência. Enfim, a ruptura com a máscara de "cidadão burguês" não se dá por mero voluntarismo e negações abstratas da ordem. Saber usar essa máscara imposta - ceticamente, sem deixá-la colar no nosso próprio rosto - também faz parte de uma educação anti-capitalista.

 
Ponto 1 (ou, como a teoria e o campo do político foram sendo sistematicamente bloqueados e neutralizados pela ordem do capital)


Comecemos pelo mais evidente: antigamente talvez os intelectuais jogavam no campo teórico. Estavam longe da práxis efetiva, tinham um ideal de formação herdado dos gregos, que passava pelas letras, pela filosofia, pela vida contemplativa - numa palavra, pela “ideologia” no sentido clássico. Mesmo o marxismo não se podia conceber como um puro movimento prático, sem teoria e sem valores éticos implícitos que lhe davam um sentido. O interesse era transformar o mundo depois de bem interpretá-lo, na justa confluência de crise necessária do sistema capitalista e movimento revolucionário consciente. Hoje cada vez mais, porém, os intelectuais passaram para o campo prático. E quase sempre do modo mais rasteiro, sem verdadeiramente incorporar a teoria outrora sustentada. É o fim da teoria, senão da própria crítica. Renascem o positivismo e o "realismo político" mais descarados. Formando meros técnicos, atuando como consultores diretos de empresa, ou virando políticos eleitoreiros, a coisa se inverteu: “nunca fomos tão engajados”, como diz Roberto Schwarz. Já sabemos no que deu: no Brasil, após o bom marxismo nacionalista, industrializante, desenvolvimentista desembocamos no neoliberalismo de FHC e no neopopulismo liberal, corrupto e assistencialista de Lula. Onde a esquerda “radical”, “socialista”, “democrática” ? Hoje, sabe-se que ela administra do alto os bons negócios para o grande capital. O Banco Central, blindado, comanda o executivo. O executivo apenas re(a)ge (a)o país globalizado com medidas provisórias e políticas emergenciais. Para ferrar tudo com o selo do mesmo, o congresso nacional tem base conservadora. O resto é estratégia de legitimação de tudo o que está aí, sob a ameaça da bancarrota pelo super-endividamento estatal. Esta parece ser a tendência do fim da instituição política, do “político”, sem sua verdadeira superação dialética.
 
Ponto 2 (ou, as raízes podres da política socialista burocrática modernizadora)
É verdade que com o colapso do “socialismo real”, a esquerda já tinha sido abalada profundamente. Perdia-se definitivamente o horizonte das transformações históricas radicais prometidas pela teoria. Ninguém mais podia ser ingênuo em acreditar numa revolução socialista nos moldes russos, chineses ou cubanos. Revolução e terrorismo de Estado se identificavam. O marxismo soviético, na figura de seus portadores burocráticos, assumiu os papéis mais esdrúxulos e inesperados: o de acelerador da modernização retardatária industrializante, de parteiro de uma acumulação primitiva do capital, criando ex ante uma classe trabalhadora até ali incipiente, o de disciplinador das massas camponesas para o trabalho alienado, o de forjador de uma nação mítica, o de vigia e instigador de populações migrantes imensas, o de manipulador de uma cultura conformista e realista, o de torturador e carcereiro daqueles que lutavam pela livre expressão, oposição e auto-determinação de recursos sociais coletivos (sovietes). O socialismo real foi tudo, menos socialismo. A prática ficou aquém da teoria crítica, ou, identificou-se com uma forma congelada dela e se tornou paranóia ditatorial.


Ponto 3 - (ou, como os movimentos sociais de base foram perdendo força depois dos anos 90)


No mesmo período, na periferia latina, do lado de cá, de baixo, os movimentos sociais não-oficiais foram crescendo, já sem qualquer referência socialista ortodoxa, num suspiro renovador e libertador, sem ideologia estrita mas objetivos práticos bem precisos, para em seguida passar a uma fase de refluxo, já no final dos 90. Após as mobilizações sociais de massa no Brasil dos anos 70 e 80, aparentemente um verdadeiro renascimento da sociedade civil brasileira, indo do novo sindicalismo às comunidades eclesiais de base, dos movimentos por moradia aos movimentos mais fugazes, mas praticamente eficazes (luta por creches, melhorias na educação, transportes, luta pela democracia parlamentar etc.), entramos numa espécie de conservadorismo e conformismo manifestos. O MST talvez seja uma exceção a esse quadro de refluxo. Junto a esse, ou mediado por esse, vem um restabelecimento completo do poder de controle do capital sobre o trabalho, através dos métodos pós-fordistas ou flexíveis, além do desmonte neoliberal do Estado, dos direitos e das garantias sociais. Hoje, naturalmente estamos longe de um movimento global de recusa do sistema, nem mesmo de negação crítica da política institucional, já combalida. O governo Lula é, salvo engano, sinal claro disso. Enquanto isso, o pobre, isolado em sua casa, dessindicalizado, “despolitizado”, danado no trabalho mais precário e miserável, se sustenta como pode, colocando todos de casa para trabalhar, fazendo bicos e virações, se restabelecendo mental e corporalmente com a tv, a igreja, o futebol, as diversões baratas e os confortos minimamente cotidianos da vida moderna.

Ponto 4 - (ou, o problema objetivamente necessário de sustentar a negação anticapitalista sem base social):
Neste contexto, como pode-se sustentar a negatividade de uma teoria crítica “sem base social” ? A base social vai voando pelos ares, pela fragmentação e a individualização progressivas. O refluxo dos movimentos vivos se dá em meio ao fluxo pleno dos movimentos mortais e destruidores do capital. Um movimento emancipatório, porém, se cria apenas na prática coletiva e social mais ampla, não simplesmente com indivíduos isolados ou grupos “práticos” de agitadores profissionais, como no bolchevismo arqui-modernizador. Assim, que não alimentemos ilusões sobre nós mesmos, sobre nossa própria "forma-sujeito" de cidadãos burgueses: nossa circulação mercantil é baixa. Sejamos críticos também dos que querem imitar ipsis literis as táticas revolucionárias do passado, como se estivéssemos na França da Comuna, ou dos situacionistas, sem estar prestando atenção direito no tipo de sociedade que estamos vivendo hoje. Vivemos um individualismo de massa, com erosão acentuada do que foi uma vez um “sujeito” (mesmo burguês), com consciência autônoma, com tempo, espaço e disponibilidade para o debate formador, nem para o discurso cidadanista.
Os situacionistas, com efeito, provavelmente serão cada vez mais considerados os últimos “heróis” da modernidade, pois já eram de fato românticos e quase anacrônicos naquela época, pois contavam com uma subjetividade que há muito já estava solapada. Daí terem que estudar o marxismo a partir da alienação, do social e cotidiano não-capturado pela economia, da crítica ao fetiche etc. Também eles devem ter sido rotulados de pára-teóricos, grupo radical utópico etc. No nosso país isso talvez seria confundido, no dia seguinte, com apresentação terrorista ou uma espécie de circo popular de vanguarda (se na Praça da Sé, as pessoas dariam talvez esmolas no final, afinal todos querem a paz da troca justa até no lazer). E lá vamos nós às votações e passeatas contra a Alca, o Nafta (a favor do Mercosul talvez ?), contra os focos de guerra sanguinária, etc. às discussões e comícios do PSOL, PT etc., aos acampamentos do MST refletir, pesquisar, lendo e apoiando a imprensa do-contra, comprando livros de editoras subversivas ou socialmente menos subservientes ao deus-dinheiro. Mas, sobretudo, trabalhamos aqui na metrópole, onde a coisificação, a dessolidarização e a desumanizaçã0 parecem mais fortes, principalmente naquele trabalho que um dia parecia que “formava”.

Ponto 5 - (ou, a ilusão imediatista: a falsa resolução do "passemos diretamente à práxis")
É possível e é preciso pensar as contradições desse processo. As contradições se agravam, mas, paradoxais que são, não têm resolução, não armam grandes conflitos manifestos. A culpa é nossa, "meros intelectuais". Onde está a saída, a placa escrita “exit”? Daí, por um impulso inevitável, surge a velha solução nas mentes sem reflexão: então, vamos à práxis do possível ! Sim, mas engajar-se no que está aí, prestes a vencer, nas águas correntes ? Mas a quantas contra-correntes mais fundas e quantos redemoinhos estão sujeitos um rio ?

Ponto 6 - (ou, qual práxis dentro do sistema ainda é possível ?)
Ou seja, qual práxis possível ? Claro que todo esse processo de destruição social faz também rebaixar as esperanças utópicas e radicais, na teoria de cunho marxista em primeiro lugar (enquanto isso o pós-modernismo, o pragmatismo, a pop filosofia viram moda), e na prática social da esquerda em geral. Todos viram sociais-democratas, querem discutir apenas a cidadania incompleta e os direitos perdidos. Este movimento é geral, da filosofia ao socialismo de botequim. Todos parecem, no máximo, uns Mangabeira Unger disfarçados. A teoria da esquerda (tradicional) rebaixa-se: fica muito aquém de seu objeto e das possibilidades radicais que ele sugere. Se o PT ainda falava em socialismo em 89, hoje fala (na medida em que ainda pode falar sem parecer mentira descarada) em mercado consumidor de massas, conquista de governabilidade, em administração competente, ética na condução dos negócios (se é que ainda é possível algo assim !), em país competitivo e esquerda politicamente “responsável” (pelo menos o baixo escalão assim ainda se vê), ademais tudo isso sujeito a todo tipo de aliança para se manter no poder e se reeleger. Tudo tende à prática emergencial e assistencialista, que nem mais reformista é, mas apenas conservadora, estabilizadora de um patamar de inflação anual, de uma taxa de juros estável ou regulada, e, no grau mais alto de sua perpectiva, num retorno ao grau zero da circulação simples (o "Banco do Povo"), para que valha plenamente um mercado popular, com alguns direitos, enfim um fetichismo da mercadoria "mais humano", mas não o do grande capital explorador. A famosa reforma agrária é engavetada e vai sendo adiada. Porém, perto da avalanche neoliberal, isso não pareceu, na época, realmente uma conquista da esquerda ? Levar um ex-operário, líder de um partido de esquerda, à presidência!! (por mais besteiras que tenha dito ou feito, fora toda mentira e todo conservadorismo econômico que tenha praticado etc.). Muito do que se falava não é mera ideologia, tal como a reforma agrária e outras propostas de distribuição de renda. Representam espinhos para a administração capitalista do poder.

Isso mostra como os pararadoxos, quando lidos mais de perto, tornam-se ainda conflitos vivos com a ordem. O sociólogo do trabalho Ricardo Antunes tem razão: em 2001 houve manifestações anti-capitalistas no mundo inteiro. Certo, mas será que eles têm alguma discussão real ou um projeto anti-capitalista ? Depois de Davos, do Fórum Social de em Porto Alegre etc. “e daí”? Os zapatistas vão mais longe do que a média, certamente, pois lutam pelo direito legal das terras camponesas, pela democracia étnica, e em geral pela auto-determinação nacional do seu país (contra os EUA), enfim, nem separatismo anti-imperialista, nem socialismo. Lutam, por enquanto, para serem sujeitos burgueses "reconhecidos" e "diferenciados" - apesar de tudo, "dentro do sistema". Pouco ? Não, já escorreu muito sangue aí para algumas conquistas históricas relativas. Voltemos ao Brasil. No debate de 2002, para alguns esquerdistas do PT, num raciocínio correto do ponto de vista lógico, obter a presidência em 2002 seria uma expropriação do fundo público em nome do “social”, contra a burguesia e o capital rentista. Era uma possibilidade, mas de fato não ocorreu (por mais defensável que seja o projeto "renda mínima") e não ocorrerá... talvez por falta do tal fundo público (todo comprometido com a dívida do Estado) !? Questões a discutir ! De qualquer jeito, eis aí questões políticas abertas ainda atuais, mesmo que postas dentro da ordem existente.


Ponto 7- (ou, sobre uma posição não-ingênua da teoria em relação à práxis hoje)
 
Note-se que em todos esses casos de esquerdização do poder, a dita “crítica anticapitalista” não serve (ainda) para NADA, pois tudo seria muito bem feito do mesmo jeito sem ela (e melhor ainda sem ela), sem o apoio imprescindível de Marx, Lukács, Debord, Adorno, Kurz ou de fóruns sindicais ou internéticos de discussão. À boa teoria crítica resta o lugar afastado (mas não desligado) do não-imediatismo, estrategicamente recolhido nos textos e nas boas discussões de alguns grupos de intelectuais atuantes, mas que não se dobram simplesmente à ditadura da atualidade. É assim que ela guarda seu grão resistente de verdade teórica, que é potencialmente prática - já que se trata de uma teoria “crítica”. "Saber esperar" também faz parte da crítica que vai além do espetáculo, como lembra Debord (A Sociedade do Espetáculo, § 220).
É bonito ver a história do séc. 19 e perceber como Marx podia olhar quase para toda a Europa e ver as práticas socialistas que ele ajudou a construir com sua ação teórica se avolumarem, e de alguma forma, tornarem-se mundo. Salvo, é claro, naqueles pontos em que a teoria construída ia aquém da prática mais avançada (Comuna de Paris p.ex.), em que ela teve de aprender coisas fundamentais e se modificar (autogestão, crítica dos anarquistas ao Estado etc.). Salvo também naqueles pontos, numerosos, em que hoje se percebe que tal teoria nunca entrou em prática de forma radical (crítica efetiva ao fetiche da mercadoria, do trabalho abstrato etc.). De fato, a teoria pode ir além da prática possível exigindo o que hoje é impossível. Teoria e Práxis não coincidem sempre, apesar de nunca desaparecer o seu elo indissolúvel. A teoria mais avançada sempre se nutre da práxis - mas não vice-versa. O marxismo vulgarizou essa relação crítica, mediada, sob o mandamento da Unidade monolítica de teoria e práxis. Exigir uma correspondência imediata entre ambas, subordinando tudo à prática, é sufocá-la. É isso, aliás, que vemos todos os dias em nossa vida quotidiana, reduzida então à tautologia rotineira da vida administrada - literalmente, em quotas do sempre igual. Aí já se antevê inclusive um ódio por qualquer momento autônomo que não pertença ao trabalho produtivo, à banalização da semana de 5 dias de trabalho e 2 dias de descanso.

Ponto 8 - (ou, como é impossível uma crítica social pronta e acabada)
Mais a frente um pouco, também será bonito ver o movimento situacionista já em 58, mais ainda em 68, mas não muito mais do que 69 e 70, pois ele também envelhece e perde seu impacto social. É o indivíduo que depois de expurgar a todos se viu quase sozinho com sua vontade de sujeitar o mundo a sua própria vontade. Faltou-lhes a "paciência do conceito", diria um hegeliano mais experiente. Assim, há coisas teóricas dos situacionistas que estão aquém da práxis atual (que perderam seu momento histórico e foram ultrapassadas) e coisas para além dela (crítica da vida cotidiana alienada, das necessidades, do trabalho etc.). E isso se repete em toda a tradição crítica que ainda vale alguma coisa, após o enterro teórico-prático do bolchevismo e do socialismo real: no anarquismo, no marxismo “heterodoxo” (frankfurtianos, deleuzianos etc.), nos autores conselhistas, no socialismo utópico etc.
Assim sendo, num momento de reavaliação de significados e sentidos, deve-se reconhecer que não há “teoria crítica” suficientemente madura. Krisis ou Exit estão longe de ter analisado a fundo e com rigor o fôlego de reprodução do sistema. Mesmo a análise da "crise do valor" é complicada, sem evidências suficientes, pois as contra-tendências atuam o tempo todo. Subestima-se, a meu ver, a capacidade de reprodução da forma do valor, enquanto sobrestima-se o papel objetivo das forças produtivas da Terceira Revolução Industrial, inclusive no processo de erosão do trabalho abstrato. A administração política-estatal da crise, provavelmente, é mais resistente do que se decreta nos textos escatológicos sobre o fim de tudo e de todos, menos do fetichismo que faz tudo perdurar. Muitas vezes, Kurz desvaloriza por completo, numa atitude abstrata e insensível, todos os movimentos sociais, taxando-os de mero imobilismo imanente, totalmente impotente. Assim fica difícil às vezes, em questões práticas, de se diferenciar do estruturalismo objetivista de um Althusser, em que pelo menos ainda havia algum conflito, alguma "luta de classes". Desta forma, não se consegue e não se quer ver realmente o movimento que está debaixo, camuflado, pelo fetichismo do dinheiro especulativo ou sob a forma genérica do "sujeito mônada-dinheiro"(Kurz). Tende-se a localizar o movimento apenas no puro “fetiche automático” do capital, quase que depositando todas as esperanças numa quebra sistemática dos mercados, no "colapso objetivo". Kurz, aliás, não consegue explicar porque países como Japão, mesmo tendo a mais alta tecnologia microeletrônica, não têm grandes taxas de desemprego, e continuam a crescer. O caso da China também é uma incógnita. Arriscar tendências, além de um certo ponto, torna-se mera profecia, que nem mesmo as bruxarias do "método dialético" podem legitimar. Provavelmente não é possível dizer qual o limite absoluto do sistema, pois se ele existe se se baseia, em última análise, não no valor (que é um resultado sempre a ser reposto), mas na flexibilidade da prática humana (diria até do corpo humano) e nas relações sociais que daí se apóiam - pois as pessoas, para sobreviver, aqui na periferia, em São Paulo ou na África, nós já sabemos muito bem, se adaptam e suportam tudo, qualquer trabalho, mesmo na fome e miséria mais terríveis. Analisar as formas da crise na periferia e a reprodução precária do sistema é o mais importante, e mesmo aqui há limitações estruturais do que se pode ou não dizer.
 
Talvez possa-se falar em "colapso da valorização" (como tendência desigual no tempo-espaço, e nunca um limite absoluto!!), mas não da relação de valor ou mercantil (o que pressupõe a propriedade privada). Provavelmente é isso que acontece: as coisas continuam a "valer", simulando mais valor que possuem. É a ditadura da forma - sem substância. Ou para ser mais exato: ditadura do "valor de troca" e da "propriedade privada", de todas as cadeias de equivalência asseguradas pelo Estado. Isso me faz pensar que a crise econômica é muito contornável ainda pelo Estado. Não há, a rigor, crise econômica do capital... as taxas de lucro continuam estáveis (ou não ?!), o crescimento em várias regiões do mundo continua, mesmo que num nível menor que depois da segunda guerra. O crédito, por definição lógica, pode ser "infinito" (afinal, qual o limite da "crença" nas instituições democráticas do mercado ?) e, de fato, não acho que há limites práticos visíveis para ele hoje. O padrão ouro foi substituído, no limite, pelo padrão baioneta, isto é, força militar (EUA, OTAN etc.). Se ainda não estourou não é possível ficar fazendo fé que estourará. É a velha mania marxista de esperança na "tendência objetiva", como se as políticas reprodutoras do Estado não dessem também sinais infinitos de estarem mais vivas do que nunca. A meu ver, então, a crise da valorização, por enquanto, em vez de "crise econômica e política", é somente crise social (o desemprego, a miséria, reproduzindo uma desigualdade brutal, acirramento dos conflitos racistas, xenófobos etc.).
Neste sentido, não há bloqueio efetivo da política em geral, mas apenas da política de esquerda mais radical. Desconsiderar isso seria cair num determinismo economicista. Por isso acho que precisamos estudar seriamente: por que e como as pessoas se adaptam, mesmo na crise mais brutal ? Que estruturas culturais e psíquicas ainda sustentam a ordem existente (e isso em cada país, em cada cultura etc) ? Papel importante nesta reprodução é feita pela classe média, que opera controles fundamentais na ordem social (indústria cultural, pesquisa tecnológica etc.), mas também como horizonte sedutor de ascensão social para os mais pobres. É daí que a política reprodutora do sistema extrai sua força e sua legitimação. Por outro lado, a superação do capitalismo não ocorre por nenhuma "tendência objetiva". Só a crise subjetiva com uma correspondente organização e de-cisão coletiva "revolucionária", múltipla e não-hierárquica, poderia tentar a ruptura com o sistema, ou seja, a superação de nossa forma comum de "sujeitos monetários-sem-dinheiro", ou, na conceituação clássica, de nós, "proletários" (o termo aqui não indica especificamente algo como a classe dos operários industriais "produtivos", mas algo mais amplo: aqueles que, não tendo nenhum controle sobre sua própria vida, têm o interesse de destruir suas correntes para auto-abolir sua condição de suportes do sistema fetichista). Aquilo que os grupos Krisis e Exit chamam de "proletariado" e "luta de classes" são formas sociológicas completamente reduzidas e historicamente demarcadas (o operário fabril produtivo e a luta por salários e reconhecimento jurídico). Tais conceitos, apesar de tudo, podem ser reutilizados de forma negativa (tal como Marx os cunhou), para descrever as lutas transcendentes ("luta de classes anticapitalista"), acionadas por interesses sensíveis ("proletários", por que não ?) contra as abstrações reais do capital e seus representantes (as instituições burguesas e estatais).
Assim sendo, não pode-se subscrever, vivendo num outro contexto diferente do alemão, todas as suas análises econômico-sociais. Há muitas coisas do contexto latino-americano e brasileiro que não se adequam à teoria geral da decadência do sistema tal como perpetrada pelos alemães, sempre instalada num nível muito alto de abstração teórica. (A própria questão da "crítica do sujeito iluminista", por exemplo, fica amiúde "fora do lugar" dentro da sociedade periférica, onde o tal sujeito não se efetivou completamente tal como na Europa: aqui entra em jogo, em termos muito amplos, a justa diferença entre a estrutura psíquica do neurótico e do perverso).
Se a teoria perde sua onipotência típica do iluminismo, então, não há passagem simples e imediata entre teoria e práxis, ou melhor, é preciso atentar para os diversos níveis em que elas são formuladas. Como diz Kurz, "com a crise e a crítica do sistema produtor de mercadorias, também se altera a posição da própria teoria. Enquanto crítica radical do valor, ela não pode mais obedecer ao real dogmatismo do dinheiro e tampouco carregar consigo um conceito de razão abstrato, dogmático e externo. A teoria capaz de conceber a si mesma não é mais o comitê central do espírito do mundo, e, por isso, não pode mais servir mais como instância legitimadora de nenhum comitê central político" (Os últimos combates - "A inteligentsia depois da luta de classes", pp.31-2). Mas apelar para uma "humanidade" ou "sociedade" em geral (como faz Kurz neste mesmo artigo) é recair na típica ilusão do sujeito humanista-iluminista, obviamente tão genérico e sem cor quanto o sujeito burguês mônada-dinheiro, que ele procura criticar. Pelo contrário, a noção mais concreta e sociologicamente mais flexível de "proletariado" começaria a englobar então, de modo bastante geral (mas qualitativamente), os interesses sensíveis daqueles que, auto-excluídos da racionalidade do valor (homens e mulheres concretos, com todas as suas peculiaridades: negros, mulheres, crianças, homossexuais, movimentos ecológicos, etc.), não aceitam mais sua posição imanente no sistema, sua posição de classe (sua classificação social hierárquica, como diz Holloway), enfim, sua sujeição ao mercado e ao Estado.
De toda forma, reforcemos mais uma vez: teoria pronta nunca haverá; o ojetivo explícito de uma teoria crítica geral não é se completar como teoria ou "filosofia" (da práxis) (para então se realizar), mas, sendo uma forma de crítica imanente resoluta (com intenções de transcender o sistema produtor de mercadorias), seu objetivo é se tornar paulatinamente desnecessária, porque as práxis emancipatórias específicas já irão criando as suas próprias teorias historicamente fundamentadas, os seus próprios objetivos prático-morais específicos, contextualizados, discutidos socialmente.
Ponto 9 - (ou, sobre a diferenciação de níveis de teoria e práxis):
Em todo esse caminho há um problema fundamental de método. Uma boa parte do pensamento de esquerda ainda confunde ou não diferencia suficientemente os vários momentos ou níveis de profundidade da práxis social, o que torna o debate, em geral, infértil. Na teoria crítica de Marx temos pelo menos dois níveis prático-discursivos rigorosamente interligados de forma dialética: o lógico e o histórico, isto é, o das leis estruturais imanentes da valorização do valor e o do processo de seu desenvolvimento temporal e espacial desigual. Não se trata de leis naturais separadas, abstratas, mas elas mesmas são a forma lógica da história acontecer, não como pura história da liberdade, mas como “história natural”, história coagida. O histórico, em Marx, não é a "pura história" do historicismo, pois é determinado pela lógica sistêmica coercitiva do valor. Dentro do nível lógico, temos também níveis da apresentação dialética das categorias: do livro I ao livro III de O Capital vamos do abstrato ao concreto, ou das determinações gerais à realidade efetiva (onde o fetichismo e a reificação aparecem em seu grau máximo), sem nunca poder esgotá-la.
Do mesmo modo, penso que há diversos níveis de atuação de uma práxis anticapitalista: há movimentos no nível do vivido cotidiano, pequenas lutas e conquistas que conseguimos na empresa, no bairro, na escola, na saúde etc. através da luta individual, de grupos, de classes inteiras. Há movimentos mais robustos, mas ainda no interior da reprodução do sistema capitalista, como o movimento por moradia, serviços básicos, a luta anti-racista, feminista, a tomada autogestionária de fábricas etc., as lutas pela inclusão cidadã (escolar, digital etc.), a luta dos sem-terra etc., além dos sindicatos e partidos (luta para governar, mesmo dentro dos limites estruturais da política hoje, os recursos públicos do Estado). E por fim, há um nível mais amplo e radical da transformação, que necessariamente passa pelo rompimento com as formas burocráticas fetichistas do Estado e do Mercado: mesmo aqui haverá que diferenciar momentos ainda internos, como o de negociação anticapitalista com a ordem estatal vigente, a superação do patriarcado moderno, até a atuação transcendente, como a produção para o auto-consumo, a organização autônoma e coletiva da própria vida, a liberação do tempo do trabalho etc.
Os bloqueios à política e à antipolítica, portanto, são muitos. É forçoso reconhecer que, após tantas derrotas, quase que voltamos ao ponto zero destas lutas.
(Agosto / 2006)

7 comentários:

Anônimo disse...

Muita teoria você faz aí...

Conhece a teoria daqueles caras que falam dos coletivos, da política dos pequenos grupos (e não das massas - tampouco das elites, já que ser pequeno não quer dizer ser do topo, nem tampouco quer dizer "um pequeno grupo", mas vários), que política institucionalizada não é política, é polícia?
Certa, errada, incerta... Quem saberá?

Base, Estado, Massas...
No meio de tanta teoria, talvez surja a sugestão de que o marxismo não encontrará salvação dentro de si mesmo.

Enquanto isso, existe política além do voto... >;o)

Anônimo disse...

Mas é muito díficil definir um critério, caso se faça a opção de votar ao invés de anular. Sempre tenho a impressão que independente de quem estiver no poder, partido X, Y ou Z; no final das contas este irá se submeter à lógica do capital, pois a política profissional-institucional serve apenas como uma mediadora dessas relações econômicas (na maioria das vezes).
E além disso, sabemos que a intenção dos candidatos e partidos no poder, é permanecer no poder. E a intenção daqueles que não estão no poder, é estar no poder futuramente. São as regras do jogo político-democrático, as eleições servem apenas para eleger os governantes e não para transformar a população em "sujeitos-políticos". Portanto, os discursos políticos invertem-se absurdamente, ou perdem totalmente o sentido quando se faz necessário colocá-los em prática. O partido que estava no poder defendia a posição X, a oposição defendia a posição Y. Quando as coisas se invertem, o partido que defendia X, passa a defender Y e vice e versa, ou seja, a única coisa que realmente parece ser relevante é a disputa pelo poder, o voto do eleitor.
Não vejo uma forma de tentar interferir nesse jogo político-institucional, sem me sentir totalmente lesado no final das contas. Mas o pior é que se eu me abster ou votar nulo, serei lesado da mesma forma.

Se correr o bicho pega e se ficar o bicho come!

Abraço!

utopiadaimagem disse...

O contrário de nada é nada?

Quanto a essa questão do voto nulo acho que você compartilha do mesmo ponto de vista que um amigo meu quando diz que o Brasil não está preparado pra isso. "A antipolítica precisa da "paciência do conceito" para ser efetivada"? Penso que no caso do "Brasil Penta" dessa américa latina, esse momento não chegará pela mesma via que um pequeno país da europa com mais facilidade poderia chegar. A opinião da grande massa média-baixa brasileira (que é quem elege nossos governantes) nunca conseguirá ter consciência política assistindo uma televisão como a nossa nem tendo uma escola (pública ou particular) como a nossa. Então como esperar sentado no divã confortável da razão burguesa observando um quadro como este? Não sou adepto de partido algum, tao pouco tenho aquela fibra à trotskista, mas penso que o Brasil só poderá sonhar com uma melhora depois de uma revolução! Não como a anterior, mas na educação e na cultura! Não "coroamos nossa impotência com mais impotência" votando nulo, nem penso que isso seria uma "negação abstrata da política", mas o contrário. As primeiras faíscas de desenvolvimento na conciência política do brasileiro só pode acontecer com a revelação concreta de um grande número de votos nulos e consequente propaganda não-anárquica (já que a mídia condena e direciona a opinião pública)... eu percebo que muita gente está acordando...

Anônimo disse...

Saludo a don Claudio desde México.Excelente crítica,pero se advierte la reminicencia estatalista que separa la política de la economía,legitimando la interlocución con las burocracias.El "límite" que señala Kurz no intenta fijar fecha,pues afirma que este período puede abarcar todo el presente siglo,además de que sus trabajos sobre la crítica del valor-lo afirma él mismo-,están en elaboración.jvc.

Anônimo disse...

Sua corrente teórica é criticada num texto recente. Dá uma olhada em: http://www.aparenciasdoreal.blogspot.com/

Marcelo Luiz Zapelini disse...

Se a eleição mudasse alguma coisa, penso que não existiria.

Unknown disse...
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