13 maio, 2006

UM ARCHOTE DOS TEMPOS SOMBRIOS - Karl Kraus e a crítica da linguagem da mercadoria

Um archote dos tempos sombrios
Karl Kraus e a crítica da linguagem da mercadoria
"La bourse est la vie" (Kraus)
Cláudio R. Duarte
Uma leitura concentrada no jornal diário com inflexível presença de espírito crítico sempre colhe absurdos lingüísticos da sociedade fetichista. Procurando a esmo, logo se encontra algo:
"Notícia boa: SP quebrou recorde de consumo de energia às 18h21 do dia 26: as indústrias, funcionando a pleno vapor, gastaram 19.639 W" (Folha de SP, 03/05/06, E-2).

A exatidão dos números, a do recorde na utilização de energia, apenas encobre a falta de questionamento de seu sentido: o dispêndio abstrato de energia serve a quem, para que, a qual custo prático e sensível ? A única questão nas outras linhas do jornal é, pelo contrário, o futuro desse crescimento, dada à dependência de termoelétricas movidas a gás boliviano. Ou seja, uma questão nacionalista.
Próximo à Primeira Guerra Mundial, um escritor de língua alemã, Karl Kraus (1874-1936), já divisava o mesmo tipo de fenômeno na linguaguem cotidiana:
"´Esta guerra tem servido...´Sim, sim, esta guerra tem servido!"; e comenta ainda sarcasticamente, o autor: "É com razão que, nas reflexões sobre cultura e a guerra, constantemente se ouve dizer que os outros é que são utilitaristas. Esta concepção provém do idealismo alemão, que cercou de uma aura mesmo os gêneros alimentícios e os laxantes". E noutro trecho: "Eu posso provar que se trata mesmo do povo dos poetas e dos filósofos. Possuo um rolo de papel higiênico publicado em Berlim e contém em cada folha uma citação de um clássico apropriada à situação."
Mas as situações do mundo burguês como que pedem e produzem seu próprio comentário, através da maquinaria da imprensa e da propaganda:
"Certa vez, por entre o barulho de uma rua de trânsito louco, ouvi este pregão: ´Bar cavaleiro da rosa - o cantinho mais aconchegante do mundo!´ Perante experiências destas, a posição mais favorável do ponto de vista estratégico de pouco sossego pode servir."
* *

Há 70 anos atrás morria o inclassificável escritor Karl Kraus, o principal responsável pela revista Die Fackel ("O archote"). Para se ter uma idéia da enormidade de sua produção, foram 922 números, em cerca de 30.000 páginas, na maioria escritas por ele mesmo, além de coletâneas de poemas e peças teatrais como Die Letzten Tage der Menschheit ("Os últimos dias da humanidade"), Die Dritte Walpurgisnacht ("A terceira noite de Walpurgis") e a comédia Die Unüberwindlichen ("Os invencíveis"), a primeira feita para ser encenada durante 9 horas seguidas. Tudo somado, nos deparamos talvez com a mais extensa obra literária jamais escrita.
Sua matéria predileta foi a linguagem - ou melhor, a anatomia da linguagem num determinado contexto social, o da imprensa burguesa de seu tempo: "O maior evento local, presente a cada momento em toda parte, é o menos observado: a irrupção do caixeiro na vida intelectual".
Karl Kraus foi um mestre do aforismo, composto pela frase cortante, pelo dito sarcástico, pela ironia ácida, pelo jogo com o duplo sentido, e por isso também, um cultor da crítica de tradição dialética, como reconheceram Benjamin e Adorno. "Há escritores que podem expressar em vinte páginas", diz ele, "aquilo para o que, às vezes, preciso de até duas linhas".
Kraus fitou de perto o poder na linguagem e armou a linguagem para combater o poder. Sente isso no corpo. "Uma antítese", diz ele neste sentido, "parece apenas uma inversão mecânica. Mas que conteúdo de experimento, de sofrimento e de conhecimento é preciso adquirir até que se possa inverter uma palavra!"
Pioneiramente percebeu ele a conexão, tão contemporânea nossa, entre ideologia liberal, pragmatismo (ou Realpolitik) e cinismo, cristalizados no reino da opinião massificada. "O pensamento é um filho do amor. A opinião é reconhecida na sociedade burguesa". Kraus não suporta as meia-verdades do que ele chama "opinião". Julga as coisas sem concessões, pelo seu próprio conceito. Do mesmo modo, "o aforisma", diz ele, "jamais coincide com a verdade; ou é meia-verdade ou é verdade e meia." Seu gesto é de resistência à identificação, negatividade em relação ao que parece positivo. Daí as variações, a profusão de aspectos de uma mesma coisa, de aforisma para aforisma.
A ele, o jargão jornalístico ou científico, a frase feita, o estereótipo, o decalque adjetivado do mundo existente, a busca estratégica do efeito retórico eram sinal freqüente de coisificação do espírito. Contra isso, uma longa argumentação poderia ser ineficaz. Kraus divisou bem a impotência da crítica face ao cinismo atual, para o qual tudo vale, contanto que seja a favor do interessado. Daí talvez o recurso à tirada seca e ágil. "Um aforisma não pode ser ditado à máquina de escrever. Demoraria muito".
Kraus imerge nas deformações históricas da linguagem e se utiliza de seus próprios meios para expor seu ridículo. "Eu só domino a linguagem dos outros. A minha faz de mim o que quer". Nosso autor, um "artista servidor da linguagem" (como se autodenomina), tem uma sorte de "ouvido absoluto" ("Um escreve porque vê; o outro, porque ouve") para a barbárie circulante na linguagem da imprensa e das ruas. "O verdadeiro inimigo do nosso tempo é a linguagem. Ela vive em entendimento direto com o espírito que o tempo faz revoltar-se. É aqui que pode gerar-se a conspiração que a arte é". A forma krausiana do aforismo, neste sentido, imita o poder para desconcertá-lo; nas suas tijoladas, sente-se a sentenciosidade, a imponência, a rigidez, a agilidade e a força do próprio poder. Com o tempo, porém, basicamente depois da Primeira Guerra, ele foi cada vez menos se utilizando do aforisma, adotando textos mais longos, cada vez menos fechados em si, explodindo sua aura de completude. Sinal de que até mesmo a forma breve pode se tornar utilizável para a repetição do mesmo, para o poder ?
* *
Ponto culminante da lógica da mercadoria para Kraus foi a eclosão da grande guerra na Europa. "O que agora mais importância tem é aquilo que agora menos importa: o sangue e o dinheiro". Mas este tipo de hipocrisia é coisa de tempos antigos. A guerra tem diretamente a ver com o comércio, e só o diabo pode agora se envergonhar disso:
"Se tivessem contado ao diabo, que sempre teve uma enorme paixão pela guerra, que um dia haveria homens para quem a continuação desta representa um interesse comercial, que eles nem se dão ao trabalho de disfarçar e cujo produto ainda os ajuda a ocupar um lugar de destaque na sociedade, ele teria dito para irem contar isso à avó dele. Mas depois, quando se tivesse convencido do fato, o inferno teria ficado abrasado de vergonha e ele não teria outro remédio senão reconhecer que por toda vida fora um pobre diabo!"
A convivência promíscua de cultura e barbárie, esclarecimento e destruição, não se envergonha mais de si. "O mal nunca prospera melhor", diz Kraus, "do que quando lhe põem um ideal à frente."
A relação entre discurso, mercado e guerra, foi amiúde observada por ele:
"´Conquistar o mercado mundial´; por os negociantes assim falarem é que os soldados assim agiram. Desde então fazem-se conquistas, embora não a do mercado mundial".
Ou neste texto mais longo, cheio de apontamentos interessantes:
"Entre a linguagem e a guerra pode verificar-se por exemplo a seguinte relação: o fato de a língua que mais cristalizou na frase feita e no artigo de armazém declarar também a propensão e a disposição para substituir a substância por um sucedâneo da inflexão de voz, para achar convictamente irrepreensível em si própria aquilo que nos outros só é motivo de crítica, para denunciar indignadamente aquilo que também se tem o hábito de fazer, para prender toda a dúvida num emaranhado de frases, e para afastar sem custo como um ataque inimigo toda a suspeita de que nem tudo está em ordem".
Nestas condições, todo discurso é discurso do poder, cheio de táticas de camuflagem e estratégias de ataque e contra-ataque:
"Eis a eminente qualidade de uma língua que hoje se parece com aquele produto acabado cujo escoamento constitui o objetivo na vida daqueles que a falam; ela brilha como uma auréola e já não tem senão a alma simples do honrado burguês que nem por sombras tinha tempo para cometer uma ação reprovável, porque a sua vida só foi dedicada e gasta no negócio e, se não foi bastante, fica uma conta a descoberto".
Como na guerra, no discurso quotidiano reina a pura falta de tempo qualitativo, isto é, o tempo abstrato do utilitarismo. A guerra, com toda sua brutalidade e velocidade de escoamento, é só a continuação mais extrema da barbárie vivida diariamente no mercado dos homens. A normalidade capitalista já é este mercado: "Tudo o que é alegado falsamente contra uma condução bárbara da guerra tem por alvo, sem que o ódio disso se dê conta, uma condução bárbara da paz."
Daí um de seus mais fortes veredictos, constante de seu livro Nachts ("Noite Fechada", de 1919):
"O estado em que vivemos é o verdadeiro apocalipse: o apocalipse estável."
Daí também uma sentença desesperadora como esta, no final de seus Sprüche und Widerspruche ("Ditos e desditos", de 1909):
"Não se vive nem uma vez."
Só que isso não precisa ser entendido metaforicamente. A morte lenta dos sentidos, segundo Kraus, é diária:
"A missão da imprensa é a de difundir o espírito e, ao mesmo tempo, destruir toda a capacidade de assimilação." Isto é, na verdade, "o jornalismo serve apenas aparentemente ao dia-a-dia. Na verdade, destrói a receptividade espiritual da posteridade."
A destruição da experiência e o desencantamento são reais,
"As palavras de um poeta, o amor de uma mulher, são sempre coisas que acontecem pela primeira vez."
Ou ainda:
"Logo fará dez anos que nunca mais recobrei os sentidos. A última vez que tornei a mim, fundei um jornal de combate".
É que Kraus não se resigna à mera contemplação da mercadoria:
"Os povos que ainda adoram fetiches jamais descerão ao ponto de supor que a mercadoria tem alma."
A crítica da "sociedade do espetáculo", da mesma forma, foi prenunciada muitas vezes por ele:
"Política é efeito cênico (...) política e teatro: o ritmo é tudo; o significado nada."
ou ainda, "Não há mais produtores, apenas mais representantes".
E apesar da alienação social geral, Kraus tinha claro para si a participação ativa dos homens na reprodução do sistema que os aprisiona. Numa época de cinismo generalizado, a ideologia perde seu sentido original. Como que parafraseando o Evangelho e Karl Marx, ele escreve:

"Senhor, perdoai-os, porque eles sabem o que fazem."
Mas isso, sem manter ilusões com o sistema democrático capitalista. Aliás, de passagem, diz numa seção de Ditos e Desditos: "´Deixar de ilusões´: é então que elas começam". Já numa bela definição das origens da democracia burguesa, ele desfere:
"A democracia divide os seres humanos em trabalhadores e ociosos. Ela não foi instituída por aqueles que não tem tempo para o trabalho."
Reconhece ele, assim, como fundamento do sistema e da própria democracia, a divisão alienada do trabalho:
"Nossa cultura de três gavetas: trabalho, lazer e instrução; quando uma está aberta as outras se fecham."
Ou nesse outro texto: "Toda vida no Estado e na sociedade reside na pressuposição tácita de que o ser humano não pensa. Uma cabeça que, em todas as situações, não represente um receptáculo vazio terá dificuldades no mundo."
Numa inversão dialética, é justamente da falta de tempo - do tempo abstrato do mercado -, a posição da qual o autor fala e pode sustentar sua escrita:
"Desprezemos as pessoas que não têm tempo. Lamentemos as pessoas que não têm trabalho. Mas os homens que não têm tempo para o trabalho, que sejam invejados!"
Pois é da alienação básica do tempo, convertido em mercadoria, que se erige todo um sistema social, com suas coisificações lingüísticas. Já não se escreve, nestes tempos, "a bolsa e a vida", mas "a bolsa é a vida". A arte de Kraus se converterá então em algo negativo:
"A arte só pode nascer da recusa. Só do grito, não da aquietação. A arte, chamada como conforto, abandona com uma maldição o quarto onde a humanidade agoniza. Faz da desesperança o caminho para a realização plena."
(janeiro - maio /2006).

Um comentário:

Anônimo disse...
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