03 março, 2007

FERREIRA GULLAR: PALAVRA SOLTA, ATADA À VIDA

Ferreira Gullar:
palavra solta, atada à vida
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"Ainda há pouco, quando atravessava a toda pressa o bulevar, saltitando na lama, através desse caos movediço onde a morte surge a galope de todos os lados a um só tempo, a minha auréola, num movimento precipitado, escorregou-me da cabeça e caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la." (Charles Baudelaire, "A perda da auréola")
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Ferreira Gullar foi um dos poetas brasileiros que se deparou primeiro com os becos sem saída da estética neoparnasiana da chamada "Geração 45". Se em A Luta Corporal (livro de 1950-1953) ainda podíamos ouvir alguns ecos de literatice em alguns dos "Sete Poemas Portugueses" - que, segundo o próprio poeta, foi seu "acerto de contas com a tradição da poesia metrificada" -, no mesmo livro (aliás, nesse mesmo conjunto de poemas), e mais à frente, há uma importante ruptura, uma queda dos cumes etéreos da Poesia Monumental ao embate poético corpo-a-corpo com a vida. Já no segundo dos Poemas Portugueses (1), que abre o livro, se lê:
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Nada vos oferto
além destas mortes
de que me alimento
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Caminhos não há
mas os pés na grama
os inventarão
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Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação
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Fonte, flor em fogo,
que é que nos espera
por detrás da noite ?
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Nada vos sovino:
com a minha incerteza
vos ilumino
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O poeta promete-nos assim uma palavra arrancada do vivido, do já não-presente (as "mortes"), uma poesia dúbia, incerta, mas com os pés no chão, no "gramado", uma "fonte" que incendeia, como uma "flor em fogo", com seu lume abrindo caminhos dentro-além da "noite".
Daí em diante no livro, como em Baudelaire, o poeta larga sua "auréola" na lama, precipita o vocabulário no chão duro da vida, pintando suas rimas com versos propositalmente brancos ou com rimas internas, muito mais sutis e tortuosas, procurando palavras e estruturas de choque para elas, chegando ao limite do vocabulário chulo, submergindo no rico conteúdo da vida, na velocidade do movimento negativo do tempo, com seu escoar infinitamente criador e destruidor, se atendo, assim, ao efêmero e ao perecível, como nos poemas tirados das coisas mais cotidianas: o galo, a galinha, as pêras apodrecendo no prato, a avenida da cidade. Seguindo sua matéria, a forma poética também se abre... daí outra tendência de ruptura no livro: o poema em prosa, linha reta, de influência surrealista:
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"Carta ao inventor da roda
O teu nome está inscrito na parte mais úmida de meus testículos suados; (...) tu inventaste o ressecamento precoce de minhas afinidades sexuais, de minhas probabilidades inorgânicas, de meus apetites pulverulentos; tu, sacana, cuja mão pariu toda a inquietação que hoje absorve o reino da impossibilidade visual, tu, vira-bosta, abana-cu, tu preparavas aquela manhã, diante de árvores e um sol sem aviso, todo este nefasto maquinismo sevicioso, que rói meu fêmur com uma broca que serra meu tórax num alarma nasal de oficinas de madeira.(...)" (A Luta Corporal, p.71).
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Como em Drummond, tal poesia só se produz no trabalho negativo duma linguagem corrosiva sobre os objetos do mundo, tirando-lhes de sua suposta naturalidade, de sua ilusão de transparência ou ar de inocente poeticidade. Só o objeto quebrado pela linguagem eleva-se à poesia:

"...despreza o mar / que amas, e só assim terás / o exato inviolável /mar autêntico" (ibid., "P.M.S.L.", p.34)
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ou:
"(...) As frutas sem morte / não as comemos" (ibid., "A fala", p.92).
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Sua intenção parece já não ser mais a encantação, mas o desenfeitiçamento. Seu método é a colagem da expressão poética na ação materialista do tempo. Exemplar, neste sentido, será a análise de "Carta do morto pobre"(do conjunto "Um programa de homicídio"):
"Bem. Agora que já não me resta qualquer possibilidade de trabalhar-me (oh trabalhar-se! não se concluir nunca!), posso dizer com simpleza a cor da minha morte. Fui sempre o que mastigou a sua língua e a engoliu. O que apagou as manhãs e, à noite, os anúncios luminosos e, no verso, a música, para que apenas a sua carne, sangrenta pisada suja - a sua pobre carne o impusesse ao orgulho dos homens"(p.43).
A imagem predominante aqui é a do poeta em seu trabalho ininterrupto de composição - trabalho sempre vão - inconcluso - em sua tentativa de capturar a realidade. O que resta, negativamente, é a materialidade das coisas e do corpo lá fora.
"(...) Oh não ultrajes a tua carne, que é tudo! Que ela polida, não deixará de ser pobre e efêmera. Oh não ridicularizes a tua carne, a nossa imunda carne! A sua música seria a sua humilhação, pois ela, ao ouvir esse falso cantar, saberia compreender: ´sou tão abjeta que nem dessa abjeção sou digna´. Sim, é no disfarçar que nos banalizamos,
"Vê o diamante: o brilho é banal, ele é eterno. O eterno é vil! é vil! é vil! //
Porque estou morto é que digo: o apodrecer é sublime e terrível. Há porém os que não apodrecem. Os que traem o único acontecimento maravilhoso de sua existência. Os que, súbito, ao se buscarem, não estão... Esses são os assassinos da beleza, os fracos. Os anjos frustrados, papa-bostas! oh como são pálidos!" (ibid., p.43).
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Daí sua desconfiança da estética institucionalizada:
"Ouçam: a arte é uma traição. Artistas, ah os artistas! Animaizinhos viciados, vermes dos resíduos, caprichosos e pueris. Eu vos odeio! Como sois ridículos na vossa seriedade cosmética!" (ibid., p.43).
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Daí também seu programa de estranhamento poético, um claro prenúncio da estética posterior de "Poema Sujo":
"Olhemos os pés do homem. As orelhas e os pêlos a crescer nas virilhas. Os jardins do mundo são algo estranho e mortal. O homem é grave. E não canta, senão para morrer"(ibid., p.43).
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Uma moral da história - a relação intrínseca de poesia, morte e libertação - se dissemina por outros poemas, como em:
"A beleza é mais frágil do que a vida // Esperamos a morte, sem defesa" ("A fera diurna", p.25).
Ou ainda:
"Era preciso que / o canto não cessasse / nunca. Não pelo / canto (canto que os / homens ouvem) mas / porque can- / tando o galo / é sem morte" ("As peras", p.38).
Só no frágil instante do dizer poético, em que cintilam as coisas miúdas da vida, há algo que lembre a verdade. O ato de compor para Gullar só se redime na tentativa do poeta "incendiar-se". Só isso leva também ao desengano de si:
"(...) construo, com os ossos do mundo, uma armadilha; aprenderás, aqui, que o brilho é vil; aprenderás a mastigar o teu coração, tu mesmo" (ibid., "Um programa de homicídio", parte 1, p.45). Ou ainda:
"O que somos é escuro, fechado, e está sempre de borco (...) O que somos não nos ama: quer apenas morrer ferozmente" (ibid., parte 4, pp.48-9)".
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Gullar se identifica várias vezes com o ponto de vista da morte. Sua visada é a da alegoria, no sentido benjaminiano do termo, mais que do símbolo: o ponto de vista da destruição da aparência de reconciliação. Só assim se reencontra, ecoando simultaneamente Manuel Bandeira e João Cabral, a integração com o ciclo natural:
"Vai o animal no campo; ele é o campo como o capim, que é o campo se dando para que haja sempre boi e campo; que campo e boi é o boi andar no campo e comer do sempre novo chão. Vai o boi, árvore que muge, retalho da paisagem em caminho. Deita-se o boi, e rumina, e olha a erva a crescer em redor de seu corpo, para o seu corpo, que cresce para a erva. Levanta-se o boi, é o campo que se ergue em suas patas para andar sobre o seu dorso. E cada fato é já a fabricação de flores que se erguerão do pó dos ossos que a chuva lavará, /
quando for o tempo." (ibid., parte 5, p.50).
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Como apontou João L. Lafetá, o poeta tende no final do livro, a um lirismo que beira o "solipsismo" (2), onde a desintegração do verso em palavras soltas, e da própria palavra em a-significantes, submerge mui facilmente a dureza do mundo numa linguagem opaca e hiperfluída, um enxurro demolidor - como no poema "Roçzeiral" ("Au sôflu i luz ta pom -/ pa inova´/ orbita / FUROR / tô bicho / ´scuro fo-/ go / Rra // UILÁN / UILÁN, / lavram z´olhares, flamas! (...)", ou naquele último que se inicia com o verso "negror n´origens" -, resultando em algo que o poeta não deixava de perceber, no poema anteriormente analisado, como um:
"(...) vertiginoso acúmulo de nadas!" (ibid., parte 4, p.48).
... enfim, como na fase intermédia de Drummond (de Claro enigma até A vida passada a limpo), uma diluição do ser no nada ou no amorfo: "O que somos, o ser, que não somos, não ri, não se move, o dorso velhíssimo de poeira (...)".
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A partir de Vil Metal (1954-1960) o poeta retornará cada vez mais em direção ao mundo objetivo. Um dos melhores poemas dessa virada é "O escravo"(p.149):
O escravo
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Detrás da flor me subjugam,
Atam-me os pés e as mãos.
E um pássaro vem cantar
para que eu me negue.
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Mas eu sei que a única haste do tempo
é o sulco do riso na terra
- a boca espedaçada que continua falando.
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Como antes, o objeto hiper-poetizado, a coisa natural - a "flor", o "pássaro" - são tidos como suspeitos, imprestáveis se tomados ingenuamente. Novamente só a desnaturalização dos objetos pode os elevar à poesia. Mas a poesia verdadeira é a que fica atada à vida, ligada ao tempo por uma haste, que é, no belíssimo verso, "o sulco do riso na terra", um riso vindo de uma boca em pedaços, que continua dizendo a negatividade desse mundo.
Gullar irá aguçar cada vez mais uma perspectiva que poderíamos nomear como "poesia atada à vida exterior", abrindo-se para o mundo. Irá passar pelas estações do objetivismo poético, com a fase concretista/neoconcretista e pelo período da poesia diretamente engajada, como nos "romances de cordel". Mas é após o golpe militar de 64, a partir de "Dentro da noite veloz", que iremos ter com a maturidade desse grande poeta.
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Notas:
(1) Ferreira Gullar - Toda Poesia (1950/1980). São Paulo, Círculo do Livro, 1983, p.18. Todas as citações virão com o nome do livro ou do poema correspondente, seguido do número da página.
(2) "João Luiz Lafetá - "Traduzir-se. Ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar" in: ___. A dimensão da noite e outros ensaios. Antonio Arnoni Prado (org.). São Paulo. Duas Cidades/Ed.34, 2004.
(Dezembro - Fevereiro - 2007).