17 julho, 2005

O ENIGMA CLARO DA CIDADE NO SÉC. 21

O ENIGMA CLARO DA CIDADE NO SÉC. XXI

Cláudio Roberto Duarte*

“O mundo, valer não vale”
(Drummond, “Cantiga de enganar”, Claro Enigma)

Vivemos ou não vivemos no “mundo das mercadorias” ? – assim sugeria o tema mais geral para discussão nessa mesa. Afinal, será mesmo que habitamos um mundo urbano no sentido enfático do conceito, tal qual este pressupõe (e apenas o pressupõe) a livre associação e o usufruto social da riqueza aí concentrada ? Ou vivemos de fato no mundo fantasmagórico das mercadorias e esquecemos o que poderia haver fora dele ? Os estudos apresentados aqui não respondem com alternativas excludentes (“ou... ou”), mas com a conjunção dialética “e”: hoje, viver o mundo urbano é viver simultaneamente o mundo das mercadorias, pois o primeiro, o urbano, torna-se a matéria fundamental para as formas da reprodução do capital. Ou seja, o conteúdo do urbano é o do processo de valorização e acumulação capitalista.

Portanto, o que os trabalhos desta mesa estão dizendo é que fizemos o bolo, o bolo cresceu, mas, após nem bem reparti-lo um pouco, o bolo nos traiu...

Na mesa interminável comíamos o bolo / interminável / e de súbito o bolo nos comeu. / Vimo-nos mastigados, deglutidos / pela boca de esponja. // No interior da massa não sabemos / o que nos acontece mas lá fora / o bolo interminável / na interminável mesa a que preside / sente falta de nós / gula saudosa.
(Carlos Drummond de Andrade, O bolo, Lição de coisas).

Gula saudosa, porque quem pode pagar e viver o mundo das mercadorias, não vive ainda, no sentido pleno, o mundo urbano, eis a contradição. O urbano está apenas na sombra de nossa história de capitalização e modernização periférica. É um enigma . Aparece, assim, nos estudos apresentados nesta mesa como negação (determinada). Assim, extinção de direitos costumeiros sobre as águas públicas urbanas é a instituição da água como mercadoria e raridade programada em Fortaleza, sob a capa do mais moderno tecnicamente (como mostra o estudo de Ana Cristina Mota Silva); privatização e grilagem de terras públicas em São Paulo é exclusão evidente do “social” que resta(va) nas mãos do setor público (a ponto, aliás, de hoje vivermos em alguns bairros a escassez de terras públicas para expansão dos serviços básicos como escola, tamanha é a fragmentação da terra em São Paulo); assim como a criação de bairros e loteamentos, diferenciados e segregados, segundo as faixas de renda, é a conformação de uma cidade partida, espelho fiel da dominação das leis da valorização, que, para se realizarem concretamente, então, podem e precisam passar por expedientes considerados arcaicos, isto é, por políticas urbanas autoritárias e clientelistas (como mostrou Mônica Brito, e também Ana C. Mota Silva). E “experiência hotelar” é experiência restringida do urbano, aquela mesquinharia administrada de hotel turístico mais ou menos travestida de espontaneidade e gozo, que ecoa mais ou menos nas lembranças frustrantes de cada um (como ensaia mostrar José Augusto Pessoa).

Todos os participantes respondem enfim: viver na cidade moderna, e mais especificamente, nas grandes cidades brasileiras de hoje é participar em larga medida como espectador – seja como consumidor, trabalhador ou funcionário – desse mundo autonomizado, sujeito às duras leis da valorização do dinheiro. O que há de peculiar e substancial aqui é que os estudos verticais, com forte documentação histórica em arquivos e mapas, como os de Ana C. M. Silva e Mônica Brito, mostram como a valorização se utiliza da propriedade formal de reunião e aglomeração das cidades como seu instrumento para acumulação e formação de capital em bruto. E isso desde a emergência das cidades brasileiras. Assim, deve-se muito e há muito tempo ao mundo das mercadorias: infraestrutura, bairros inteiros, senão a totalidade da cidade moderna. Não teríamos na América, efetivamente, e nesse caso diferente do caso do Velho Mundo (Europa e Ásia), uma história e uma geografia da(o) cidade (urbano) muito distinta da que o capital e o correspondente poder estatista engendraram. Ambos mundos se confundem desde o início.

Ou como ensina Drummond em “América”, poeta “mestre de coisas”, que aliás foi também professor de geografia no início da vida em Minas Gerais,

"Tantas cidades no mapa... Nenhuma, porém, tem mil anos. / E as mais novas, que pena: nem sempre são as mais lindas. / Como fazer uma cidade ? Com que elementos tecê-la ? Quantos fogos terá ?/ Nunca se sabe, as cidades crescem, / mergulham no campo, tornam a aparecer / O ouro as forma e dissolve; restam navetas de ouro. / Ver tudo isso do alto: a ponte onde passam soldados (que vão esmagar a última revolução); / o pouso onde trocar de animal; a cruz marcando o encontro dos valentes; / a pequena fábrica de chapéus ; a professora que tinha sardas... / Esses pedaços de ti, América, partiram-se na minha mão. // A criança espantada / não sabe juntá-los (C. Drummond de Andrade, “América”, A Rosa do Povo).
* *

Mas se do início até o presente da sociedade moderna, a urbanização e as rendas fundiárias foram em geral modos fundamentais para a acumulação primitiva do capital (como mostram alguns historiadores para a Europa: F.Braudel, M.Dobb, H.Pirenne entre outros) – poderíamos então perguntar aos apresentadores: será isso hoje sinal de força da acumulação ou de fraqueza e crise permanente do capitalismo brasileiro ? Para uma perspectiva teórica mais abrangente, o estudo de Mônica Brito forneceria pistas de que haveria, na passagem do séc. XIX ao XX, certa força e dinamismo da acumulação, sinalizada pela diversificação dos investimentos do capital desde a agricultura, a indústria, o banco, passando pela urbanização (transportes, loteamentos etc.) até os lazeres. Mas não indicariam também uma fragilidade econômica fundamental do Brasil, uma fraqueza relativa do acúmulo de capital no país até aquele momento e a inadequação histórico-material relativa da cidade aos ditames da valorização capitalista (parca infraestrutura, escassez de habitats operários etc.) ?

O estudo de Ana Cristina Silva também sugeriria a força, de forma até mais enfática . Mas então, com essa nova questão, não seria preciso especificar a hipótese ? De fato, o capital inglês da Water Company, apontaria para a força histórica da acumulação no centro mundial (Inglaterra): a superprodução do capital no centro exigindo sua expansão imperialista para países periféricos, o que se faz aqui através dos setores econômicos ligados à urbanização, entre outros. (Assim, só mais tarde, os ramos da indústria de base e de bens duráveis aqui se instalariam). Quanto à capitalização da família Gentil, através do imobiliário, não tratar-se-ia, ao contrário, de uma acumulação ainda primitiva, parte incipiente duma acumulação nacional endógena, mais tarde socialmente mais ou menos malograda? Por outro lado, o “circuito secundário” da acumulação (imobiliário, urbanização), na terminologia de Lefebvre e Harvey , já deixaria naquele momento, virada do século, de ser menos relevante, isto é, “secundário”, para o centro mundial (sendo o circuito primário aquele da indústria e da produção de mercadorias reprodutíveis em massa)? Neste caso, acabariam as distinções entre um e outro circuito, passando o imobiliário a setor estrutural desde o início? Ou manter-se-ia a alternância entre os circuitos, conforme os ciclos de desenvolvimento (como nos afirma Harvey) ? Ou isso seria nada mais que uma possibilidade contida na forma persistente de subdesenvolvimento ou dependência externa da capitalização no Brasil (além do mais com imensos fundos territoriais “subdesenvolvidos” do ponto de vista capitalista) ? Ou ainda, a acumulação através do primado do circuito secundário não poderia ter sido um dos fatores do atraso e da lentidão da “revolução burguesa” no Brasil (caráter rentista do capital nacional etc.) ? Ou talvez correspondido a apenas uma etapa do desenvolvimento capitalista (o da formação de capital fixo e fundos de consumo) num país ainda descompassado com o centro ?
Não temos a resposta para todas essas perguntas. Tais perguntas e hipóteses são díspares e complexas pois envolvem a análise articulada das escalas geográficas (níveis e dimensões). Já os estudos de José A. Pessoa (sobre a expansão do turismo hoteleiro no nordeste) e em certa medida o de Sergio Martins (sobre a metropolização de Belo Horizonte) apontariam que hoje o “circuito secundário” não é mais, de fato, “secundário”, mas “estrutural” à acumulação. Mas então, pergunta-se: que fase da acumulação é essa ? Seria ela sólida, como sugere o termo “estrutural” ? Que acumulação global é essa em que a distribuição da mais-valia (renda fundiária, juros, capital-fictício, especulação) passa a ter mais importância que sua produção ? Seriam o setor turístico, o de serviços hoteleiros, o de infraestrutura urbana etc. produtivos em termos de capital social total, por ex. ? Por outro lado, os investimentos privados e estatais não tendem hoje a se restringir a certas zonas seletas da cidade, como no caso turístico-hoteleiro ? Qual a relação entre a especulação com imóveis e a com ações, ou seja, a especulação com base na propriedade fundiária (renda) e a com títulos mobiliários (vale dizer, com a mera forma do dinheiro por juros e dividendos) ? Neste caso, teríamos o urbano não só no mundo da mercadoria, mas também no da propriedade, isto é, sua “simulação” (sem substância de trabalho) – pois pode-se vender como mercadoria aquilo que não representa médias abstratas de trabalho social, mas representam monopólios; enfim, um mundo do fetiche “redobrado”, onde se remunera cada vez mais títulos patrimoniais e não algo que tenha algum lastro claro com o trabalho alienado.

Tendo, de minha parte, a pensar na hipótese de que tudo isso que nossa vista está abarcando hoje nesta monstruosa paisagem urbana é mais sintoma de fraqueza e crise do sistema produtor de mercadorias que de vigor da acumulação global do capital; que talvez esteja apontando, então, para o abalo (e o afundamento) da valorização real do valor, de sua capacidade expansiva e integrativa, ou, nos termos de Robert Kurz, um sinal de “colapso da modernização” . Talvez até mesmo sinalizando para o fato de que hoje o colapso da periferia mundial em termos de desenvolvimento moderno capitalista acaba suscitando e determinando formas arcaicas e irracionais de extração de mais-valia (trabalhos precarizados, sub-remunerados) e novas formas de sua divisão social (particularmente a renda fundiária urbana), neste ponto, aliás, elemento bem afinado com o movimento de especulação com ações e títulos públicos nas bolsas, enfim, com o enorme cassino global que toma o mundo de assalto após os anos 80. Isso teria sua base material no excesso de capital-dinheiro, na superacumulação do capital em termos globais, porém, agora, numa fase de muito maior desenvolvimento das forças produtivas técnico-científicas (microeletrônica, robotização etc.), impondo-se, pela globalização e pela superconcorrência mundial, a produtividade do trabalho mais forte do centro mundial para todas as regiões do globo. Tal crise do trabalho abstrato rebate no território. Deste modo, resultaria numa espécie de “urbanização” sem base material sólida, daí sua precariedade, um pouco como já se falou das “idéias” liberais” como “fora do lugar” no Brasil escravista e patrimonialista (Roberto Schwarz), ou como se falava, nos anos 60-70, numa “urbanização sócio-pática” na América Latina e Brasil, causada por uma “urbanização sem industrialização” (Cepal, Luiz Pereira). Tudo isso seriam esquemas interpretativos, que me parecem mais que hipóteses, mas menos e muito diferente de certezas (positivistas): antes, colocar-se-iam no estatuto de tendências e contra-tendências do processo geral de acumulação.

A expansão para o imobiliário, por isso, estaria inserida nessa contradição interna da valorização, que a colocaria como sendo um tipo de ilusão real, mas ainda uma ilusão. A gigantesca urbanização teria o seu “fundamento” mais na “propriedade da terra” (e o fetiche da renda fundiária) que na mediação das relações sociais pela forma-mercadoria, isto é, pelo valor, expressando uma média social de trabalho produtivo real. Os preços não teriam fundamento num valor correspondente, mas em títulos jurídicos da terra, formando-se assim pelo monopólio das localizações especiais, pelo ardil publicitário, pela propriedade de patrimônios culturais e tecnológicos etc. Caberia, porém, perguntar se a indústria da construção pesada e civil, até hoje setor sabidamente com menor composição orgânica de capital que outros, teria a potência de criar a mais-valia social (que cede aos proprietários ou se apropria novamente) e insuflar o sistema global. Mas de novo cabe a questão: qual sua posição dentro do esquema produtivo/improdutivo do capital social total? Ou seja, o que parece diretamente produtivo (lucro industrial da construção etc.) também é produtivo do ponto de vista da totalidade do processo? Habitação social, hotéis, asfaltamento, hospitais, escolas, barragens, presídios, quartéis, enfim, capital social fixo e fundo de consumo, são diretamente produtivos hoje ? Ou a sua resolução se dá no tempo (“indiretamente”) ?

Em todo caso, a reprodução social daí resultante é, como sugeria já Lefebvre, um processo crítico, mas ainda “reprodução”: qual é a capacidade aquisitiva de nossas classes médias para realizar e justificar tais investimentos urbanos (verticalização, shoppings, turismo, hotelaria, aeroportos etc.) ? Quais efeitos negativos teria uma queda drástica das bolsas nos preços imobiliários e na urbanização, seja no setor de habitação (desvalorização imobiliária) seja do setor produtivo em geral (desvalorização de capital diretamente produtivo) ? Ou seria isto, de novo, como sempre foi, um refúgio seguro para o capital-dinheiro paralisado ? Quais são as implicações sociais e espaciais da proletarização e empobrecimento generalizado para estas cidades que crescem sem poderem mais integrar proletários no processo produtivo formal ? (A indústria da construção teria qual papel nisso?). Dentre estas conseqüências não estariam principalmente os bairros hiper-segregados, os mercados paralelos (circuito informal ou inferior da economia, inclusive de moradia precária), a imensidão dos “trabalhos concretos” irracionais e a violência urbana com seus poderes “integradores fragmentados” (tráfico de drogas, máfias, tribos etc.) ? Não está aí o peso e a gravidade da reprodução das relações anacrônicas e abjetas que passam desapercebidas, pois totalmente inquestionadas pela opinião pública e “científica” (“direito ao trabalho”, “inclusão social”, políticas tradicionais etc.) ? A ilusão aqui, como se vê, pesa bem mais que a mão de uma criança, apesar da aparência de transparência. Ou como Drummond, que neste trajeto nos acompanha, nos diz:

"Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta depuração / Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. / Os olhos não choram. / E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o coração está seco / És todo certeza, já não sabes sofrer.// (...) Teus ombros suportam o mundo / e ele não pesa mais que a mão de uma criança / As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios / provam apenas que a vida prossegue / e nem todos se libertaram ainda (...) / Chegou um tempo em que a vida é uma ordem / A vida apenas, sem mistificação". (Drummond, “Os ombros suportam o mundo”, Sentimento do Mundo).

Enfim, estamos condenados a lutar eternamente pela modernização burguesa mais que tardia das relações (crescimento capitalista, luta pelo governo do Estado, cidadania “orçamento participativo” etc.), como etapa para quê ? Como ampliar a visão e dar um salto maior? Lutar pelo possível-possível (pragmaticamente) sem olhar mais ao possível-impossível ?

* *

É que no interior daquele bolo não podemos saber se vivemos no mundo urbano ou no da mercadoria/propriedade. Lá tudo é escuro. Gostaríamos de uma resolução formal clara, enfática, ou um pé fora do “bolo” da acumulação, o imbróglio da alienação. Lefebvre, porém, já nos prevenira que o mundo urbano moderno quando entrava num ponto crítico passava por uma caixa preta, um campo cego (A revolução urbana). Talvez uma caixa de Pandora onde o que sai é o mais formidável e o mais horrível, sistematicamente. Como objeto em formação o urbano não nos é claro. Não há o que dizer de positivo dele. Nem aos geógrafos que querem definições claras dos conceitos, como se já se tratasse de coisas fundamentadas e postas autonomamente sobre seus próprios pés. Por isso, aqui, só conseguimos dizer o que ele não é, apesar de podermos apontar para alguns embriões detonadores, agentes que perfurariam de dentro para fora o velho “bolo”. Mas, sem garantias teleológicas, o enigma permanece.

Enfim, como ensinar às crianças, tal qual Drummond evoca em “América”, um modo de juntar esse quebra-cabeças e decifrar o enigma ? Como educá-las para não respeitar como um ídolo a cidade e o solo urbano sob a forma fetichista da mercadoria e da propriedade privada ? É preciso talvez criar uma “cantiga de enganar”, fazê-las desaprender o que se tornou tão natural, instruí-las sobre aquele riso alegórico que despreza esse “mundo” ? :

"O mundo não vale o mundo, / meu bem. (...) // O mundo, / meu bem, / não vale / a pena, e a face serena / vale a face torturada. / Há muito aprendi a rir, / De quê? De mim ? ou de nada ? / O mundo, valer não vale. / Tal como sombra no vale / a vida baixa..." (C. Drummond, “Cantiga de enganar”, Claro Enigma).

Enfim, como fazê-las aprender a questionar os direitos de herança patrimonial violentos e anacrônicos ? Como mostrar que a cidade pode se tornar obra coletiva, também para além das garras do Estado ? Mas antes, como fazê-las crer que este não se trata do urbano, mas do “mundo das mercadorias”, onde porém o trabalho social abstrato deixou de ser, em potência, o elo essencial de socialização e, portanto, a condição central que define a vida ? Só os dominados crêem numa necessidade “objetiva” deste mundo. Mas, é certo que

"Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, / onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo" (Drummond, “Elegia 1938, Sentimento do Mundo).

São muitos os enigmas para o urbano neste milênio que se abre. Mas uma coisa é certa. Se o espaço seria algo assim como o nosso corpo social, a extensão e a potencialização de nosso próprio corpo biológico, agora então talvez só estejamos ficando com a parte insignificante dele, com a individualidade humilhante, embora ainda sensível, de nosso próprio corpo privado. Nosso poeta lírico captou o social tout court quando dizia,

"Escurece, e não me seduz / tatear sequer uma lâmpada. / Pois que aprouve ao dia findar, / aceito a noite. / E com ela aceito que brote / uma ordem outra de seres / e coisas não figuradas. / Braços cruzados. // Vazio de quanto amávamos, / mais vasto é o céu. Povoações / surgem do vácuo./ Habito alguma ? // E nem destaco minha pele da confluente escuridão. / Um fim unânime concentra-se / e pousa no ar. Hesitando / E aquele agressivo espírito / que o dia carreia consigo, / já não oprime. Assim a paz, / destroçada./ Vai durar mil anos, ou / extinguir-se na cor do galo ? / Esta rosa é definitiva,/ ainda que pobre. // Imaginação, falsa demente, / já te desprezo. E tu, palavra. / No mundo, perene trânsito, / calamo-nos. / E sem alma, corpo, és suave" (Drummond, “Dissolução”, Claro Enigma).

Talvez o enigma maior seja esse: fazer a práxis social dizer o indizível, com as palavras que nomeiem o social lá onde se vê e sente apenas o corpo individual mutilado e isolado no espaço, o sujeito cidadão-burguês acorrentado em seu fundamento fetichista do trabalho social e da propriedade privada. Na dialética de nosso tempo, ainda o mesmo de Drummond, isso se expressa assim:
“Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos.” (“Nosso Tempo”, A Rosa do Povo).


NOTAS

* Ex-membro do Labur-USP. Prof. do Ensino Fundamental. Comentário dos trabalhos apresentados na 7ª sessão de debates do VII Simpósio Nacional de Geografia Urbana. "Pensar e projetar a cidade do século XXI: desafios para a construção da problemática urbana", realizado em São Paulo, USP, de 15 a 19 de outubro de 2001.

1 - Deve-se a Henri Lefebvre (La Revolution Urbaine. Paris, Galimard, 1970) a dialetização do conceito de urbano: nestes termos ele se converte numa forma social que se determina historicamente de modo vário, mas que, sendo um objeto em formação, em devir, torna-se um pressuposto que pode ser posto efetivamente na história, isto é, superado em suas limitações, após a supressão das contradições da sociedade da mercadoria e do trabalho abstrato. Seria a realização do humano como reunião de diferenças (não contraditórias). Como forma geral, o urbano implica sempre, assim, a reunião e a concentração da riqueza social, embora nem sempre tal reunião tenha até aqui sido plena: p. ex., a produção capitalista de mercadorias reúne na cidade o que foi separado mas enquanto separado – capital e trabalho; as forças produtivas aparecendo sob a forma fetichista do capital.

2 Com efeito, o nome do segundo capítulo do livro citado de Lefebvre, chama-se “O campo cego”.

3 “...Isto significa dizer que o imobiliário deixa de ser um circuito secundário, tanto no capitalismo industrial como no financeiro e que, de maneira desigual, esses novos investimentos, a partir da constituição da cidade como negócio, significam uma mobilização do espaço inteiro, para além da simples mobilização das matérias- primas no espaço...”, diz Ana Cristina em seu texto apresentado.

4 Circuito secundário, ligado ao imobiliário, não se confunde com setor secundário de Clark (indústria). Vide Lefebvre (op.cit.). E também Harvey, D. Urbanization of Capital (Oxford, Basil Blackwell / J.Hopkins Univ. Press, 1985) e Los límites del capitalismo y la teoria marxista (México. Fondo Cultura Economica, 1990).

5 Kurz, Robert. O colapso da modernização. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.