30 março, 2013

O CAPITALISMO GLOBALIZADO E SUAS CRISES ESTRUTURAIS

Este texto didático foi destinado aos meus alunos do 3º ano do Ensino Médio. Talvez ele seja útil para outros professores e pesquisadores.




O CAPITALISMO GLOBALIZADO E AS SUAS CRISES ESTRUTURAIS

Cláudio R. Duarte

O fim da história: a derrota do socialismo real, o triunfo do capitalismo global

Após o fim do socialismo real na Europa oriental e na URSS (1989-1991), o filósofo estadunidense Francis Fukuyama argumentou que a História tal como entendida até ali havia simplesmente terminado (no livro famoso desde então: “O Fim da História e o Último Homem”). Seguindo os passos da filosofia idealista de Kant e Hegel, ele dizia que o capitalismo liberal havia finalmente derrotado os seus inimigos históricos nos campos da economia, da política, da sociedade e da cultura. A partir desse “fim da história” haveria um único caminho a ser trilhado: a rota de acumulação infinita de capital, que prometeria gerar a paz, a harmonia, o progresso e a prosperidade social mundial, por meio do livre mercado, da competição, do avanço tecnológico e da democracia liberal ocidental.



De fato, o capitalismo – como sistema mundial produtor de mercadorias visando ao lucro – talvez seja imbatível. Nenhum sistema social conseguiu produzir tanta riqueza em tão pouco tempo, dinamizando e entrelaçando as diversas nações num mundo unificado.


O novo “capitalismo real” na região ex-socialista do Leste europeu

O difícil é manter a expansão dessa integração pelo mercado. Pois o que se seguiu no Leste europeu e na ex-URSS não foi exatamente essa tão sonhada prosperidade. A abertura para o livre mercado e a concorrência – já plenamente mundializados naquele momento –, gerou uma onda de novas “modernizações retardatárias” e de acumulação primitiva de capital (semelhante aos “cercamentos” ingleses do início do capitalismo), baseadas em privatizações selvagens e no reforço da dependência e do endividamento externo dos países (em processos semelhantes ao dos países latino-americanos), que agravaram a concentração do capital e da renda, aprofundando o desemprego, a violência e a criminalidade (a Rússia hoje tem uma população carcerária de 700 mil presos).

Hoje, no momento em que alguns consideram a Rússia um país “emergente”, o que há de fato é a franca desindustrialização e a perda do poder aquisitivo das massas, apenas sustentado através de crédito internacional, com a conversão dessa imensa região, na Divisão Internacional do Trabalho, numa área satélite da Europa Ocidental, com a função de lhe fornecer petróleo e gás (junto com os países da Ásia centro-norte: Cazaquistão, Turcomenistão etc.) e alguns bens industriais, restritos ao setor militar e aeroespacial (aviação e armamentos). O que o novo “capitalismo real” russo gerou foi o aumento dos lucros privados de uma certa elite política e empresarial (na verdade, como denunciam os críticos, quase uma quadrilha de gângsters provindos dos antigos “Partidos Comunistas”), dependente e associada ao capital multinacional da Europa ocidental e do resto do mundo. A democracia também tem falhado na medida em que não há mais nenhum plano social para as grandes maiorias (como na época do já saudoso, para alguns, “socialismo real”), mas tão-somente o “vale-tudo” da concorrência acirrada e da pilhagem do patrimônio público-estatal, através das grandes privatizações e da conversão da política num simples meio instrumental de administrar as crises econômicas e sociais. De forma semelhante, entre os países da Europa oriental, houve a real integração à União Europeia apenas das áreas mais ricas, dinâmicas ou com maior potencialidade capitalista (Eslovênia, Polônia, Hungria e Rep. Tcheca), beneficiando praticamente só os setores das classes médias mais bem educadas, enquanto os países mais pobres se tornam periferias de trabalho mais barato e de recursos naturais abundantes (Romênia, Bulgária, Eslováquia, Países Bálticos). Isso sem falar na desintegração da antiga Iugoslávia (1991-1998-2006) numa guerra étnico-religiosa sangrenta (bósnios muçulmanos x sérvios cristãos ortodoxos x croatas católicos) que matou mais de 200 mil e gerou cerca de 2,5 milhões de refugiados, em que se escondem motivos econômicos latentes (separatismo das regiões mais urbano-industriais da Eslovênia e Croácia x regiões agroindustriais e atrasadas da Sérvia, Montenegro e Bósnia-Herzegovina). O Leste europeu como um todo ameaça se tornar uma fonte de instabilidade e de emigração de população para a Europa ocidental.


O programa modernizador do “socialismo” chinês – ou o capitalismo de Estado ditatorial

Esse fim do socialismo real foi há muito previsto e antecipado pela China de Deng Xiaoping, quando da criação da “política de portas abertas” (a partir de 1978-80), com a descoletivização do trabalho agrícola, privatizações e a abertura das ZEEs (Zonas Econômicas Especiais) na orla do Pacífico, oferecendo ao capital multinacional vantagens inéditas em termos de lucratividade. Só na aparência, ou antes, só na cúpula política burocrática, a China é ainda um país “socialista”. Trata-se antes de um “capitalismo de Estado”, isto é, um capitalismo ditatorialmente dirigido, baseado numa política pragmática e agressiva de aceleração do crescimento a qualquer custo (depredação da natureza e altas taxas de exploração dos trabalhadores). O “fim da história”, aqui, se tornou o eterno pesadelo do trabalho barato estendido de sol a sol, com altíssimos níveis de poluição e destruição ambiental. Na realidade, a força do “Dragão Asiático” assenta-se nesse Estado ditatorial, capaz de contrabalançar o seu atraso histórico e a sua fraqueza de capital (tecnologia e infraestrutura social e produtiva) por meio dos planos quinquenais, do protecionismo e da dominação brutal dos trabalhadores, o que vêm resultando em fortes taxas de crescimento do PIB (de 8 a 15% ao ano).

A força chinesa, no fundo, revela-se como o fruto de uma fraqueza do desenvolvimento social mais amplo – vale dizer, assenta-se na concorrência predatória e canibal, isto é, autoimolação de sua população no altar da acumulação de capital. Pois a única forma de “integrar” uma massa gigantesca de pessoas pobres como trabalhadores na economia capitalista globalizada (exigente de elevados níveis de produtividade técnico-científica) é essa forma ditatorial altamente exploradora do trabalho barato e ambientalmente suicida – além do mais, baseada na dependência do capital e da tecnologia estrangeiros (americanos, europeus etc.). O que deveria nos fazer desconfiar do seu real poder político e econômico, ou pelo menos de sua estabilidade a longo prazo. David Harvey chama-nos a atenção para os gigantescos investimentos em infraestrutura social e produtiva: eles não podem ser pagos senão gerando dívidas de longo prazo (e sabemos como estas devem ser maquiadas pela burocracia chinesa), o que pressupõe a manutenção do ritmo de exportações - caso contrário, teremos mais um megafoco de especulação e colapso financeiro no mundo! E de fato, a produtividade chinesa só se compara à produtividade ocidental nas condições já nomeadas: se houvesse um maior rigor nas leis ambientais, uma maior regulação e limitação da exploração do trabalho (direitos humanos etc.) e uma maior abertura do país à concorrência mundial (o protecionismo chinês está entre os maiores do mundo, ao lado de Argentina,  Rússia e EUA), a China perderia um tanto de seus atrativos de lucratividade (e de fato, hoje, uma parte da indústria vai se deslocando inclusive para países ainda mais “atrativos” e “baratos”, como Bangladesh e Vietnã). A China tem de viver então da saúde de suas exportações, pois não consegue ainda criar uma massa salarial e um mercado interno autônomo para absorver a maior parte de sua própria produção (algo parecido se dá entre os Tigres Asiáticos).  

As modernizações dependentes/endividadas e superficiais/restritas da periferia

No mesmo sentido, o que ocorreu na periferia subdesenvolvida do mundo globalizado até agora também não foi nenhum promissor “fim da história” das antigas feridas coloniais e neocoloniais. O que se deu aqui foi, sim, um aumento exponencial do comércio e da riqueza regional e dos níveis de vida de setores das pequenas classes médias, consolidando o poder das grandes corporações nacionais e multinacionais, principalmente após a ascensão quase milagrosa de alguns poucos “países emergentes” (Brasil, México, Argentina, Índia, Turquia, África do Sul, Tigres Asiáticos). Eis um fenômeno em geral mal analisado, em que sempre há uma parte de realidade e uma outra de propaganda ideológica ou de pura e simples aparência, principalmente quando levamos em conta a sua forte tendência econômica primário-exportadora ou ligada a produtos manufaturados de baixa ou média tecnologia e de menor valor agregado (com notáveis exceções para a Coreia do Sul e a Índia), mantendo fortes níveis de pobreza e miséria, sem falar no autoritarismo político. Uma participação econômica ainda bastante endividada, dependente e subordinada aos grandes capitais multinacionais e às políticas dos Estados centrais e organismos de controle econômico e financeiro mundial (FMI, Banco Mundial, OMC, G-8).

A globalização como realidade e como ilusão

É de se notar portanto que os grandes fluxos comerciais mundiais concentram-se no eixo América do Norte – Europa – China/Japão/Tigres Asiáticos. (Vide o mapa dos fluxos em 2006.)  

A tão elogiada e mistificada globalização resulta, assim, no desemprego tecnológico ou estrutural de massas (cerca de 7% da população economicamente ativa mundial, ou 204 milhões de desempregados “oficialmente previstos” para 2013, pela OIT), além da na exclusão e da marginalização de regiões e continentes quase inteiros.

Pois se contarmos ainda o número de trabalhadores subempregados, informais e precarizados no mundo, segundo dados da OCDE, teremos mais da metade da população economicamente ativa mundial, cerca de 1,8 bilhão de trabalhadores! (para um total da PEA em torno de 3 bilhões). Assim, pode-se raciocinar que cerca de 2/3 da PEA mundial são quase praticamente supérfluos ou subprodutivos para o capitalismo global, turbinado pela 3ª Revolução Industrial, ou só se tornam “úteis” quando rebaixados ao subemprego e ao desemprego (que ajuda a rebaixar os salários em geral). Subentende-se, então, que a riqueza acumulada nas mãos das grandes corporações e Estados só pôde ser gerada sob este preço dolorosíssimo, pago pelas multidões radicalmente expropriadas e empobrecidas. Elas pagam com as suas vidas, com horas e mais horas de trabalho precário, e os seus recursos, que há muito foram monopolizados pelo capital. A OIT estima ainda que, em 2010, 397 milhões de trabalhadores viviam em situação de pobreza extrema (menos de US$ 1,25 por dia), enquanto outros 472 milhões não podiam satisfazer suas necessidades básicas com regularidade (renda entre US$ 1,25 e US$ 2 por dia).

É isso que se expressa nas enormes cidades miseráveis do mundo. Em 2005, segundo dados da ONU retomados e analisados por Mike Davis (em Planet of Slums, - Planeta Favela), havia mais de 1 bilhão de pessoas sobrevivendo em “slums”, ou seja, em habitações precárias e informais (favelas, cortiços, pontes, tendas, cemitérios, sótãos, ruas e sarjetas etc.), constituindo “apenas” 6% da população urbana dos países desenvolvidos, mas espantosos 78,2% dos países subdesenvolvidos! As favelas crescem mais rápido na África, na Ásia e nas repúblicas ex-socialistas soviéticas (Rússia, Armênia e Arzebaijão).

Obviamente, há muitos pobres que, não sendo miseráveis, vivem fora dos slums. Mas os pobres urbanos já são, segundo Mike Davis, a metade da população urbana mundial. Lembrando que esses números são “oficiais”, e como tais sujeitos à “maquiagem” feita pelos governos.

Contraditoriamente, assim, o incremento da riqueza mundial proporcionado pelas novas tecnologias da 2ª e da 3ª revoluções industriais, a partir dos anos 1950, se realizou a custa do grande aumento das desigualdades sociais em várias regiões – pois estas se revelam “supérfluas” ou “incapazes” de concorrer e acompanhar o nível tecnológico altíssimo imposto pela produtividade dessas novas tecnologias –, seguido por uma série de novos problemas e conflitos sociais em escala local ou regional (epidemias, fomes e guerras civis na África, guerrilhas urbanas e rurais na América Latina e na Ásia, violência urbana generalizada, tráfico internacional de drogas e armamentos, terrorismo, ondas racistas e neonazistas na Europa, guerras do Golfo, do Iraque e do Afeganistão etc.). É assim que a globalização se torna também a globalização do caos social. E que precisa ser “administrado” por um Estado de Exceção para não arrebentar.

Globalização e Estado de Exceção

O capitalismo triunfante, após o fim da Guerra Fria, é um sucesso – ao menos para as minorias “vencedoras” na concorrência global. Isso sem falar no agravamento dos impactos sobre a natureza e sobre a vida dos trabalhadores “incluídos” no sistema produtivo, hoje cada vez mais intensamente espoliados, alienados e socialmente precarizados – como produto das políticas neoliberais de flexibilização, terceirização e cortes nos gastos sociais. Algo que já atinge, inclusive, o mundo dito “desenvolvido”, através da queda substancial nos salários e no desmonte do chamado Welfare State ou Estado de Bem-Estar social. Assim, no lugar desse Estado e da política democrática, o que assistimos é a consolidação de um Estado de Exceção normativo (ou um estado de emergência) no mundo todo, que administra as crises baseado em medidas provisórias e decretos do Executivo, que tendem a suspender e a ultrapassar muitas vezes o direito constitucional e a regulação democrática, no limite, agindo contra as próprias resoluções da ONU e de outros organismos humanitários internacionais (como no caso da “guerra preventiva” contra o Iraque ou os “esquadrões da morte” e o “Caveirão” nas favelas do Rio de Janeiro). Um Estado que se torna, conforme propõe Paulo Arantes, cada vez mais um estado penal e carcerário, já que o caos, a miséria e a violência parecem não ter mais nenhum fim à vista (2,2 milhões de presos no EUA, 1,6 milhão na China, 700 mil na Rússia, 550 mil no Brasil).

Nessas condições opressivas, as regiões periféricas só não são excluídas e cortadas de vez da reprodução capitalista mundial porque tendem a se especializar nos setores em que ainda podem oferecer “vantagens comparativas” ou certos “atrativos”: a) mão de obra barata, com jornadas extensas, dócil, flexível, precarizada e não-sindicalizada (principalmente mulheres e jovens), quando não semi-escrava; b) muitos solos tropicais, minérios, petróleo e fontes de energia barata; c) taxas de juros atrativas e incentivos fiscais (ou paraísos fiscais da lavagem de dinheiro ilegal); d) legislação ambiental frágil; e) privatizações neoliberais de patrimônios públicos ou patenteamento da fauna, flora e conhecimentos e invenções locais.

No entanto, tais condições histórico-sociais negativas há muito aparecem como “coisas naturais” na opinião pública dominante, que já não chocam mais ninguém, sendo neutralizadas ideologicamente por serem “o que resta” a ser e a fazer no contexto desse mundo de concorrência total. “There’s no alternative”, como dizia a Primeira Ministra britânica, Margareth Thatcher, no início da era de desregulamentação neoliberal.


As crises atingem também o Centro

Mas hoje, enfim, o próprio centro geoeconômico e geopolítico do sistema – EUA, União Europeia e Japão – está imerso em graves processos de crise econômica, política e social, que lembram muito os processos de crise e desintegração econômico-social há muito conhecidos na periferia e na semi-periferia do sistema – levando ao “colapso da modernização” mundial, como previu Robert Kurz desde o fim dos anos 1980. Veja-se o gráfico da Bolsa de Nova Iorque entre 1900-2008 (Fonte: Le monde diplomatique).

Na verdade, desde pelo menos o início dos anos 1970 – crise fiscal dos Estados Unidos, choques internacionais do preço do petróleo (1973-79), estagflação galopante –, vêm se sucedendo crises internacionais cada vez mais frequentes em curtos espaços de tempo: a longa crise da dívida externa latino-americana dos anos 80 e 90 (México, Brasil e Argentina), a crise japonesa do início dos anos 90, a crise do sudeste asiático de 1997-98, a fuga de capitais da Rússia (1998), do Brasil (1999), da Argentina (2001-2), a crise da New Economy dos EUA (bolsa Nasdaq de alta tecnologia) de 2001-2, a crise imobiliária e financeira dos EUA de 2007-2010 e a crise europeia das dívidas de 2009-2013. Abalos recorrentes que produziram queimas bilionárias de capitais, fortes níveis de desemprego e subemprego, novos endividamentos estatais e estagnação econômica, estas últimas crises principalmente nos EUA e na Europa.

 Introdução geral à crise global estrutural do capital e as suas saídas provisórias

O que há então de errado com o Capital, o campeão olímpico dessa Ilíada moderna? Como já dito, para os Estados, as firmas e as classes vencedoras da competição mundial, talvez, nada há de errado. Mas todos reconhecem que a economia já não cresce como nos períodos áureos do fordismo e do Welfare State (os “30 anos gloriosos”, os “anos dourados do capitalismo”, em que o capitalismo pareceu ter se “civilizado”, entre mais ou menos 1945-73).

Isto acontece basicamente porque os lucros produtivos, na esfera da economia real (que tem de empregar trabalho e recursos naturais), são cada vez mais arriscados e difíceis de serem realizados, pois os mercados estão saturados e há muitos novos concorrentes agressivos (China, Índia, Coreia do Sul, Brasil etc.). Por isso, os lucros tendem a decrescer nos países e regiões de mercado saturado e de salário mais alto. Os EUA perde assim sua hegemonia econômica, com déficits enormes na balança comercial, falta de poupança interna e endividamento geral (famílias, empresas e Estado).

A saída para o reinvestimento dos superlucros excedentes (D-M-D*-M-D**...) tende a ser basicamente dois:

a) Esfera produtiva: a migração do capital (americano, europeu etc.) para o Sul e a periferia subdesenvolvida (com as suas vantagens destrutivas do trabalho e da natureza); ou a flexibilização, precarização e rebaixamento dos salários internos, com a intensificação da exploração dos trabalhadores nos próprios países centrais, mediante novas tecnologias e processos de gestão ainda mais produtivos e poupadores de força de trabalho. Incluem-se aqui, ainda, as práticas destruidoras da obsolescência planejada e perceptiva, que reduzem a vida útil dos produtos e fomentam um novo consumo, bem como as guerras preventivas (como as do Iraque e Afeganistão) e todo o setor da indústria cultural (que cria necessidades “supérfluas” e associa marcas a estilos de vida e distinção social).

b) Esfera financeira e especulativa: o crédito (para fomentar uma demanda fraca ou inexistente) e a especulação com ações, imóveis e títulos diversos (inclusive de dívidas alheias) – uma fuga maciça de dinheiro excedente para os mercados financeiros e especulativos, que criam um monstruoso “capital fictício” (com a cifra mágica de US$ 600 trilhões), que ajuda o capitalismo em crise a se mover para frente e fazem-no se transformar numa espécie de grande “cassino global”.  
Um ensaio de explicação geral das novas crises estruturais

Por que tantas crises, então, se tudo parece tão avançado, promissor, controlado pela tecnologia, e tudo tão rico, confortável e luxuoso? Ocorre que a maneira como esse sistema fetichista e alienado funciona – por meio de “relações coisificadas entre as pessoas ou relações sociais entre as coisas” produzidas, como mostrou Marx – quase que totalmente impede o controle social de maneira consciente e racional sobre a produção, visando ao atendimento das verdadeiras necessidades humanas e ecológicas das pessoas. É por isso que, impulsionando-se cegamente para a frente, através da interação de inúmeros agentes particulares independentes, que apenas perseguem o seu interesse pessoal de poder e lucro, o sistema produz tantas crises, e também tantas realidades contraditórias: promessas reais de riqueza, cultura, segurança, conforto, educação e avanço tecnológico em meio a um mar de insegurança, precarização, fome, miséria, violência, barbárie e destruição ambiental.

Não é realmente muito fácil compreender as crises atuais, pois há muitas variáveis sociais em jogo, muitas diferenças nacionais e regionais a serem levadas em conta. Como explica o geógrafo David Harvey (O enigma do capital e as crises do capitalismo), regiões em franco crescimento e ascensão contrastam com regiões em recessão e exclusão; estratégias políticas se degladiam, novos produtos e tecnologias são criados todos os dias, prometendo novos mercados, e assim por diante. Contudo, as crises cíclicas são cada vez mais frequentes – após o fim dos “anos dourados do capitalismo” do pós-guerra (1945-1973) – e parecem indicar que, na verdade, entramos numa época de crises econômicas estruturais do sistema capitalista. Não se trata mais de crises passageiras. Também não são crises de legitimação ideológica (ligada aos valores que sustentam a sociedade burguesa, como se deu p.ex. na revolta dos estudantes e operários em Maio de 1968), nem só de crises sociais, políticas e ambientais. Todas essas crises são realmente importantes, como vimos anteriormente, mas elas não parecem ser capazes de trincar e quebrar a estrutura do sistema e colocá-lo abaixo. Talvez, somente a crise ambiental chegue próximo a isso, pois é a base de qualquer economia. A crise se torna realmente estrutural, como previu Marx, quando abala e esgota os fundamentos do sistema, isto é, a base que o sustenta: o trabalho produtivo (elaborado sobre a natureza).

Desde o início, vale lembrar, o capitalismo gera crises cíclicas de superacumulação – crises em que ocorre a paralisação temporária do capital investido, que se revela em excesso, por falta de venda das mercadorias, incluindo aí os trabalhadores, que se tornam desempregados. Foi exatamente isso o que ocorreu em 1929, quando a economia americana (e também a brasileira, com o café) acumulou enormes capacidades produtivas e toneladas de mercadorias, mas deixou de encontrar mercados externos na economia europeia (que se fechou, por meio de tarifas alfandegárias elevadas, para desenvolver a sua própria indústria, preparando-se para a 2ª Guerra). De repente, o preço das ações das empresas se viram superestimados e supervalorizados e tiveram de cair. O que se seguiu foram falências e desemprego de massas, que duraram até o início da 2ª Guerra (que reativou a economia americana – a forma mais terrível, bastante conhecida, de empurrar a economia capitalista adiante).

Essas crises cíclicas, portanto, sempre lançaram o sistema adiante, a níveis cada vez mais elevados de produção, após algum tempo de espera e de resolução dos pontos de estrangulamento ou saturação. Assim, a ampliação do crédito para o consumo, o deslocamento do investimento para novas áreas e setores (com menores salários e mais vantagens locacionais), as guerras (que podem exigir maior produção e destruir excedentes de uma só vez), as políticas keynesianas de investimentos estatais na economia (principalmente através da construção de obras públicas e infraestruturas) – tudo isso sempre pôde criar demanda artificial e fazer retomar o crescimento dos países. Mas não sem gerar dívidas, que precisam ser pagas nos anos posteriores.

Dessa vez parece ser um tanto diferente. O capitalismo globalizado, por meio da 3ª Revolução Industrial, acumulou capacidades produtivas excedentes de mercadorias que já não conseguem ser totalmente vendidas e remunerar o capital investido. Ao contrário, essas capacidades produtivas só alimentam dívidas gigantescas – seja para a sua produção (pois exige enormes gastos com infraestrutura produtiva e social: escolas, universidades, saúde, estradas, portos, energia etc.), seja para o seu consumo (crédito imobiliário, parcelamento de bens duráveis e de produção etc.). Dívidas que vão se acumulando e se tornando insolváveis – a não ser multiplicando novos empréstimos, fazendo incidir juros sobre juros, num esquema do tipo “bola de neve”. Vide o endividamento europeu e estadunidense nos gráficos.



Assim, como propôs Kurz, essas novas crises talvez sejam sinais do fim da fase de ascensão e amadurecimento do sistema. No fundo, talvez sejam o prenúncio do seu envelhecimento e do seu declínio histórico, porque tendem a destruir as duas fontes da riqueza social (trabalho e natureza).

            A causa mais profunda das crises estruturais recentes é então precisamente esta: o desejo infinito de valorização do capital tende a superacumular meios de produção e mercadorias, que, por sua vez, custam a serem vendidas e retornarem como lucro real. O que incita o capital a paralisar o seu crescimento acelerado (típico do fordismo dos anos 1950-70) e a se desvalorizar em massa. Um retorno à produção fordista, absorvedora de força de trabalho em massa, é impossível, pois a humanidade não pode simplesmente esquecer os novos métodos produtivos que poupam força de trabalho.

A crise ocorre porque o sistema tende a reduzir a fonte de todo valor e mais-valia: tende a eliminar maciçamente o trabalho humano do processo produtivo (lembremos da cifra de 2/3 da PEA mundial desempregada e subempregada, isto é, só empregável em condições subvencionadas pelo Estado, mediante complementos estatais de renda,  ou sob terríveis e desumanas condições de exploração).

Mas assim fazendo, reduzindo fortemente o trabalho socialmente necessário (o que, numa sociedade utópica, poderia muito bem servir à redução radical da jornada do trabalho para todos) e desvalorizando sua fonte de valor, o sistema do Capital tende a reduzir a capacidade de compra para as mercadorias que ele superproduziu.  Desse modo, elas tendem a ficar sem escoamento possível – principalmente numa conjuntura neoliberal que gera desemprego e reprime os salários no mundo todo. Nessas condições o capital produtivo tende a diminuir o seu ritmo de acumulação – o que se expressa nas baixas taxas anuais de lucro retido pelas corporações (após pagamento de impostos e juros de dívidas), de acumulação real e de crescimento do PIB mundial, após 2008 (vide gráficos dos EUA).



 Daí a necessidade extrema de globalizar o comércio, criar blocos econômicos regionais para a livre circulação de capitais e mercadorias, criar liquidez e mobilidade total para o capital, desregulamentar, flexibilizar e precarizar os contratos de trabalho, privatizar empresas públicas a preços de banana, enfim, ampliar mais e mais o consumo através da propaganda e do crédito, criando novas necessidades artificiais e supérfluas, novos produtos culturais e tecnológicos, diminuir a vida útil dos produtos. Em suma, eis a necessidade de ampliar a produção e o consumo a qualquer custo. Ter a obrigação de ser feliz pelo consumo, aparentar (mais do que ser) um consumidor satisfeito – eis a nova religião capitalista que complementa a religião protestante do trabalho, desde os anos 1950 e 60. Acontece que robôs e computadores não fazem greves, e também não compram nada, nem têm sentimentos ou necessidade de ostentação de status social.

Isso significa, portanto, que o capitalismo cava o buraco em que ele mesmo está hoje enterrado. As cifras trilionárias do PIB mundial e da especulação são em grande parte (ou quase totalmente) fictícias, fetichistas, imaginárias. Elas dependem basicamente do crédito e da especulação – ou seja, dependem de um valor real que ainda não foi produzido e que talvez jamais o será. Talvez seja este o verdadeiro fim da história de Fukuyama.

O que é o valor de uma mercadoria? O que dá valor ao dinheiro existente? Segundo Marx, o valor de uma mercadoria é nada mais que a cristalização de uma certa média social de tempo de trabalho. Como todos sabem, time is money. Ou seja, o valor depende das horas de trabalho gastas na produção de mercadorias. O dinheiro não vale por si próprio, mas é apenas a expressão simbólica (materializada num pedaço de papel ou metal) que tem de corresponder a uma riqueza real produzida pela economia real, explorando a energia humana dos trabalhadores, cristalizando-a em uma imensa acumulação de mercadorias (que podem ser também serviços prestados).

Ora, quando a 3ª revolução industrial tende a economizar e, no limite, a eliminar em massa o trabalho vivo dos processos produtivos mais importantes, então, diminui a quantidade de novo valor (ou mais-valia) inserida no sistema, bem como as taxas médias de lucro. As mercadorias saem com o custo unitário cada vez mais barato, devido ao aumento da produtividade do trabalho, mas assim também aumenta a quantidade de mercadorias a serem vendidas, a fim de que se possa realizar a mais-valia (ou o lucro) nelas embutido. Vamos imaginar um exemplo hipotético.

Se eu invisto um capital de US$ 200 milhões para produzir 200 lanchas em certo período de tempo, utilizando 100 trabalhadores, gerando um lucro de 50 milhões (D investido: -200 + 50* de lucro, com cada lancha sendo vendida por 1,25 milhão), então, minha taxa de lucro é de 50/200 = 25%. Na próxima rodada da acumulação (digamos, após 5 anos), a concorrência me obriga a investir em novas tecnologias (microeletrônicas e automatizadas). Agora precisarei empregar US$ 290 milhões na produção, incluindo estas tecnologias e apenas 10 trabalhadores de alto nível técnico, que farão 350 lanchas, com o preço unitário de 1 milhão cada, gerando um lucro de 60 milhões. Os preços unitários cairão, mas o meu capital total – se conseguir vender todas as lanchas produzidas – aumentará um pouco: terei no total 350 milhões (D investido:-290 + 60* de lucro). Ou seja, terei futuramente 100 milhões a mais do que há 5 anos atrás quando iniciei a fábrica. Porém, agora, tive de investir muito mais em tecnologias do que em trabalho/salários. O novo maquinário, os novos funcionários etc. me custaram 290 milhões, e não mais 200, como anteriormente. A mais-valia real produzida foi 60 milhões, apenas 10 milhões a mais do que há 10 anos atrás. Assim, a taxa de lucro diminuiu: 60/290 = 20,6%. De fato, o investimento compensará se eu conseguir realmente vender estas lanchas rapidamente, conseguindo cobrir os meus custos e aumentar o meu capital total para 350 milhões. Mas se não conseguir, terei de pedir mais empréstimos para pagar as dívidas passadas com as novas tecnologias e trabalhadores (US$ 40 milhões que me faltavam para realizar o novo investimento). Porém, se eu vender apenas 200 lanchas (US$ 200 milhões), não conseguirei nem mesmo cobrir o custo total do investimento (US$ 290 milhões); assim terei de começar a reduzir os planos de produção, vender máquinas, demitir alguns funcionários ou mesmo, talvez, mudar de ramo e decretar a falência. E, no entanto, muito antes disso, 90 funcionários já haviam sido demitidos.

Consequentemente, haverá menos capacidade aquisitiva no mercado em geral (entre empresas, Estados e trabalhadores). Daí a dificuldade geral de vender e realmente realizar os lucros embutidos nas mercadorias. Não, talvez, para o mercado de lanchas, que é voltado aos altos executivos e aos grandes capitalistas, que podem se endividar e pagar a médio prazo as suas lindas lanchas, além de viagens internacionais, carros luxuosos, bens importados e tudo o mais. Mas os 90 trabalhadores demitidos deixarão de comprar alimentos, roupas, eletrodomésticos, moradias etc. A não ser que eles troquem de setor, expulsem outras pessoas “menos competitivas” do que eles, desempregando-as, numa onda de empurra-empurra geral de alto a baixo na escala social. Serão então 90 futuros migrantes ou, no limite, 90 excluídos, talvez criminosos. Os altos executivos donos de lanchas também poderão perder o emprego, a partir dessa falta de consumo geral, e pôr tudo a perder, deixando de me pagar as prestações de sua maravilhosa lancha. Poderei até reaver a lancha, mas terei de encontrar outro alto executivo disposto a comprar uma lancha usada, numa economia agora em crise.

A não ser, ainda, que a economia mundial cresça num ritmo médio “normal” de 3% ao ano (o número mágico proposto pelos economistas e políticos) e consiga ampliar mercados, gerar mais lucros, mais capital e mais renda do que o capital social total investido (nas infraestruturas produtivas e sociais), e consiga assim absorver mais força de trabalho do que antes, reduzindo drasticamente o desemprego. Porém, é exatamente isso que a economia mundial hoje está cada vez menos conseguindo fazer, a partir dos novos custos de modernização impostos pela 3ª revolução industrial. 

Multipliquemos esse exemplo para os vários setores da economia “tecnicizada e cientificizada” e teremos o atual problema estrutural do desemprego dos trabalhadores. Isso que se torna assim, também, o desemprego estrutural do capital. A desvalorização geral do trabalho (dos salários, dos direitos etc.) se converte, a curto ou médio prazos, na desvalorização geral do capital, já que capital (o dinheiro investido: D-M-D*) nada mais é do que o acúmulo do trabalho explorado e alienado. Nessas condições, o capital desvia-se para o lucro “fácil” das bolsas (embora de alto risco).

É por isso que as bolsas sobem, sobem, sobem como balões de ar quente, até que despencam de uma vez e as empresas perdem os valores estratosféricos que estimavam possuir. Se a minha empresa de lanchas tivesse ações na bolsa, tais ações poderiam estar valendo não apenas 350 milhões no total, conforme a promessa normal de lucros futuros. Os acionistas poderiam começar a comprar e a revender esses títulos, já sem esperar os dividendos futuros. Gerariam uma supercapitalização que faria tais ações valerem algo como 360 ou 400 milhões – enfim, algo como 50 milhões a mais do que a minha empresa valerá futuramente, no momento de distribuir os dividendos entre acionistas. Não que a especulação seja pura ficção. Se a procura por lanchas aumentar muito, realmente as minhas lanchas poderão ser vendidas não por 1 milhão cada, mas por 1,25 milhão, como há 5 anos atrás; nesse caso o capital total da empresa atingirá até mais do que o inicialmente previsto: 437,5 milhões (350 lanchas x 1,25 milhão cada).   

A maioria dos capitalistas faz isso: compra ações e títulos baratos, especula em cima dos altos e baixos repentinos, vendendo-os sempre na hora certa. Há muito tempo, desde pelo menos os anos 1980-90, que os bancos e as grandes corporações têm lucros financeiros muito superiores aos de sua área de atuação real (produção, comércio ou prestação de serviços), nos mercados totalmente desregulamentados. Os lucros se devem menos aos seus trabalhadores ocupados do que à atuação de um departamento financeiro “esperto” e bem “antenado” nos negócios especulativos. Há até um sistema de “bancos sombra” ou “às escuras”, ganhando dinheiro com operações ilegais e arriscadas no mundo (sem qualquer lastro ou depósito monetário real). Os bancos criam “capital fictício” ao emprestarem dinheiro sob a forma de títulos de crédito uns para os outros, criando derivativos e securitização de dívidas, que multiplicam a jogatina global totalmente instável e irresponsável. Isso ocorre porque o mercado financeiro é sempre otimista, "aventureiro" e cego: para ele, toda produção ou toda nova tecnologia promete ganhos futuros gigantescos – pouco lhe importam às vezes os custos reais de produção, as taxas decrescentes de lucro (maquiadas nos balanços empresariais), a saúde geral da economia e os ganhos reais da sociedade mais ampla (baseada fundamentalmente em salários – e não em créditos ou especulação financeira, embora esta última possa alimentar o consumo de famílias de trabalhadores nos países mais desenvolvidos como os EUA e a Alemanha).

Mas se a minha fábrica de lanchas der sinais de falta de vigor comercial e financeiro-especulativo, se eu não apresentar balanços positivos no decorrer dos anos, as ações totais podem repentinamente cair e equivaler somente ao preço das 200 novas lanchas que já consegui vender até o momento (uma queda de US$ 350 para 200 milhões) – ou ainda menos, digamos 150 milhões, pois o mercado começa a desconfiar que o mar dos negócios não está para lanchas – lanchas que estão prestes a ficar encalhadas na lama das vitrines ou nos pátios de minha fábrica. Ou ainda pior, se o “negócio da China”, a “bola da vez”, agora, não forem mais lanchas, mas helicópteros e jatinhos particulares!

Chega assim um momento em que o consumo só pode ser estimulado artificialmente pelo crédito privado e a demanda estatal. Só isso mantém a Grande Máquina funcionando, adiando o acerto de contas com a baixa acumulação real. Portanto, temos um consumo de massas movido artificialmente por meio de dívidas, estendidas no tempo. Daí em diante, a civilização capitalista perde os seus bons modos. Os lucros só são obtidos por meio das estratégias mais selvagens possíveis (dumping social, depredação ambiental, privatizações, expropriação e patenteamento geral do saber e da cultura etc.). Se a acumulação real de capital tende a decrescer porque as taxas de lucro na produção tendem a diminuir, então se pode tentar contrapesar isso pelo aumento das taxas de exploração – isto é, através da espoliação mais radical dos trabalhadores e da natureza. Todos pagarão com a miséria, há muito conhecida na periferia subdesenvolvida. Trata-se de um processo de “africanização” ou “brasilianização” do mundo, segundo alguns sociólogos europeus.

Não é então que o capitalismo não explore ainda muito trabalho ou que deixe de produzir mais-valia e lucros. Mas que o trabalho explorado não gera tanta mais-valia como antes! As taxas de lucro tendem a diminuir por causa do aumento dos enormes custos de investimento em capital fixo (infraestrutura produtiva e social), gerando dívidas que, se tivessem de ser pagas imediatamente, tornariam tais produções totalmente improdutivas e inviáveis, ou seja, não-lucrativas. O total do capital financeiro-especulativo em torno de U$$ 600 trilhões – em que não há só ações e papeis imobiliários, mas títulos da dívida pública dos governos e dívidas privadas, comercializados como qualquer ação – significa que teríamos de produzir, a curto ou médio prazo, cerca de 5 ou 6 vezes o valor do PIB mundial atual, ou seja, adiantar uma produção equivalente à esperada para todo o século XXI ou XXII! Isto, é claro, se as bases sociais, naturais e ecológicas aguentarem uma tal empreitada!

Com taxas muito baixas ou arriscadas de lucro produtivo, o capitalista então se desestimula a investir na economia real – o que faz aumentar ainda mais o desemprego e a recessão. Ele tentam então, como um Mágico, realizar o impossível: tenta simular um lucro que ainda nem foi realizado na produção real de mercadorias. Algumas empresas então possuem ativos financeiros enormes que, em pequeno grau, voltam à produção, são aplicados produtivamente (até para justificar o nome e o valor da empresa no mercado). A bolsa é uma forma rápida de capitalização produtiva das empresas. Mas as somas de dinheiro a ser investidas a cada rodada são tão grandes que a maior parte desse dinheiro se mantém girando, de maneira livre e desregulamentada, na esfera financeira e especulativa. Um dinheiro que copula com dinheiro e gera mais dinheiro automaticamente. Isso pelo menos até que a inadimplência dos consumidores e os negócios reais se revelem claramente como deficitários, negativos ou simplesmente inviáveis, pois no fundo são incapazes de gerar realmente mais valor do que o já acumulado. Esse dinheiro fictício da ações e títulos então vira fumaça – esteja nas mãos de quem estiver – e desaparece tal qual um dia surgiu. Na bolsa sempre há os espertos, como o especulador George Soros (que lucrou US$ 3 bilhões em 2008) e os enganados que ainda não perceberam que tudo não passa de simulação e especulação de lucros fantasiosos e dívidas praticamente impagáveis mesmo a longo prazo.

O que as novas tecnologias da 1ª, da 2ª e da 3ª revolução industriais possibilitam é exatamente isso: um conjunto de bens materiais e imateriais abundantes e quase sem nenhum valor, pois pouco trabalho realmente produtivo é absorvido em sua fabricação e distribuição. Eles deveriam valer nada ou quase nada – mais precisamente, valer só o irrisório número de horas de trabalho que ainda é necessário para produzi-los, divididos pela sua quantidade. O seu alto preço é, assim, em grande parte, uma ficção artificialmente criado por rendas de monopólio, através de: a) marketing das marcas, b) propriedade intelectual do saber cultural e científico (que não deveria valer coisa alguma, pois representa quase nada em termos de horas de trabalho); c) propriedade imobiliária; d) juros e lucros de especulação sobre lucros produtivos futuros irrealizáveis. Continuamos a pagar muito por eles, mas muitos produtos ficam encalhados ou deixam de ser produzidos, justamente porque não há valor real (em lucros e salários) que os possa pagar. Ao invés de serem usados para acabar com o sofrimento e a miséria social mundial, tais bens de produção e consumo são trancafiados a sete chaves por seus proprietários. Nessas condições alienadas, os fantásticos meios de produção, criados pelo conhecimento técnico-científico da humanidade, se tornam meios de destruição coletiva, gerando apenas desemprego e miséria, violência e guerras.

Foi essa paralisia geral que se deu em 2008-2012 (com o mercado imobiliário americano, inglês, irlandês, espanhol e grego). É isso, ainda, que ocorre com os próprios Estados nacionais, altamente endividados, e que hoje parecem prestes a decretar a moratória na União Europeia, com ajustes macroeconômicos antipopulares (na Grécia, Portugal, Irlanda e Itália), ou seja, políticas de austeridade que cortam os gastos sociais de uma vida moderna desenvolvida na época do Welfare State (previdência social, funcionalismo público, corte nos salários, férias, programas sociais diversos, saúde e educação etc.). Cortes que punem os trabalhadores enquanto reservaram trilhões de dólares e euros para sanar os chamados “créditos podres” dos bancos. O Estado transformou a crise econômica e financeira em crise das contas públicas e crise fiscal, que já está se transformando em crises sociais agudas (movimentos como Occupy Wall Street, nos EUA, dezenas de greves em toda Europa etc.). Só estas medidas de emergência salvaram o capitalismo do desastre.  

O fim da história? Parece-nos claro que essas novas crises vieram para ficar. A não ser que a economia capitalista revele milagrosamente um fôlego de sete gatos, com sete vidas, em seis ou sete planetas iguais a este.


Bibliografia


Davis, Mike. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006.

Harvey, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. S. Paulo: Boitempo, 2011.

Kurz, Robert. O colapso da modernização [1991]. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

24 março, 2013

Pequena orientação didática para ler mais e melhor as Memórias póstumas de Brás Cubas

Pequena orientação didática para ler mais e melhor as MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS


Cláudio R. Duarte


1- Pode-se até tentar ler o romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1880-1881) fora do seu tempo, fora de seu contexto. Mas muita coisa se perde dessa maneira em termos de análise formal e estrutural. Não se trata de um livro da "cultura universal", que fala para todos os lugares em qualquer tempo histórico -- mas antes do primeiro passo acertado de Machado de Assis para escrever um ciclo de romances sobre a História do Brasil. Um país particular, no conjunto do sistema capitalista mundial.
Vale relembrar, uma nação pós-colonial, com todas as mazelas e heranças negativas que nós conhecemos: o país do latifúndio monocultor e agrário-exportador, do escravismo, do poder oligárquico do patriarcado rural, o país do favor, dos privilégios e das relações de dependência, e que somente na aparência é um país moderno e civilizado.  (Vide foto do Senhor e seus escravos- sempre descalços -, na primeira metade do séc. XIX).
 Geograficamente, ainda, um país desmembrado em regiões fragmentadas e desconjuntadas, ou seja, mais ligadas comercialmente com o exterior do que com o próprio restante do país (arquipélagos regionais isolados, com pouca relação comercial, pouca interligação em termos de comunicações e transportes).

O contexto acima indicado importa e muito para a boa leitura do romance. Pois ele toma esse contexto como a substância de sua forma e de sua estrutura - como já apontaram críticos de peso como Roberto Schwarz, John Gledson e José Antonio Pasta.

Para Machado, o sentido do livro é narrar essa história malograda de uma nação escravista feita em pedaços. Trata-se de uma nação que ainda não nasceu, ou que nasceu morta nas mãos de uma elite descompromissada e de costas para a verdadeira nação, feita de escravos e dependentes, vivendo na miséria e sob a lógica do arbítrio e do favor. Uma elite caprichosa, cínica e autoritária, que apenas começou a morrer a partir da Lei do Ventre Livre (1871) e da modernização urbano-industrial, não obstante continue a falar ainda hoje, no país do trabalho precário, da marginalização, da exclusão social das massas em relação à cidadania. Por isso, Brás Cubas irá morrer em 1869, no limiar da lei de 1871, mas continua a falar no presente, eternamente, a partir do Além, no berço esplêndido da nação - vale lembrar, ainda escravista em 1881 (data da publicação do romance).


Em resumo, então, tínhamos um país estruturalmente dividido e repleto de condições negativas: liberal e escravista, moderno e atrasado, civilizado e bárbaro, cosmopolita e provinciano, ilustrado e prisioneiro do mito, da religião e do obscurantismo, enfim, um país que tinha em seu DNA contradições imensas, que não poderiam ser eliminadas por uma narrativa realista. Mas um realismo fantástico, cheio de humor e metafísica. Por isso, Machado não repete os erros românticos -- não enfeita, nem adocica como fazem Alencar ou Macedo. Machado destroó as ilusões românticas e nacionalistas.

 2- A chave principal da obra, portanto, é esta: Brás é o Brasil. Mas um Brasil morto ou em decomposição - daí o ponto de vista inusitado de um "defunto autor". O romance será então repleto de ambiguidades, ambivalências, confusões, disparidades, contrastes, despropósitos, que refletem essa condição brasileira dividida e negativa. O ser do Brás/Brasil é um ser-outro (alienado) ou um não-ser (morto). Daí o vazio e a esterilidade do livro, feito de descontinuidades, capítulos curtos, que não prosseguem e não levam a nada. Daí o saldo negativo do livro (capítulo das Negativas, no final da obra). A Lei do Ventre Livre prometia aparentemente um país novo, com liberdade de trabalho e mobilidade social. Mas é isso que Machado irá negar nos romances seguintes: em Quincas Borba, Dom Casmurro e Esaú e Jacó - quando retrata o malogro da liberdade e da ascensão social e os embustes e autoritarismos congênitos à classe dominante brasileira. Em Memorial de Aires, último livro do autor, a elite dá finalmente as costas para o país e retorna para Portugal, deixando os negros à sua própria sorte, após a Abolição. O que deu - como sabemos bem - em cortiço, favela, viração,  exclusão e racismo (vide foto ao lado, de favela no Rio, no início do séc. XX).
3- Voltando enfim ao Brás Cubas.
a) Brás Cubas é polarizado entre uma série de ideias móbeis e uma ideia fixa. A ideia móbil é tudo o que não para um segundo no lugar, hesitante, dando rasteiras no leitor e nos personagens do livro, ostentando um ar de superioridade. Estas ideias cabriolantes o caracterizam pela volubilidade, pela falta de caráter, inconstância de desejos, imprevidência, falta de perspectiva e de projetos sólidos, vontade de gozo imediatista, comportamento trapaceiro, perverso e violento contra o outro (Prudêncio, Eugênia, D. Plácida), enfim, uma mobilidade infinita de pensamentos sem propósito ou totalmente insensatos, com teorizações filosóficas ridículas ou rebaixadas, uma mobilidade aliás que atinge até o espaço (viagens, andanças, perambulações etc.). Trata-se do oposto da elite protestante europeia ou estadunidense. Além disso, Brás serve-se do discurso filosófico e iluminista para justificar práticas patriarcais e escravistas, completamente opostas ao decoro e à ideologia igualitária e libertária da civilização burguesa. Na realidade, todos os personagens são volúveis quase da mesma forma que Brás. Todos são muito bons e mesmo excelentes em termos de discurso, mas na prática são miseráveis e nada exemplares (com exceção de Eugênia). Mesmo os subordinados como Prudêncio ou Dona Plácida se transformam no seu oposto, conciliando-se com o sistema de dominação vigente. O próprio escravo de Brás, no final do romance, tem o orgulho de sua servilidade (o fato de ser escravo de um senhor muito rico).

b) A sua ideia fixa - o emplastro Brás Cubas - nada mais é que a tentativa de pôr um fim a essa movência vertiginosa de caráter e falta de propósito na vida. Mas o seu projeto é nada mais nada menos do que um "medicamento sublime", ou seja, um remédio milagroso para "aliviar a nossa melancólica humanidade" (cap. II). Ou seja, um projeto impossível - francamente maluco - , e nenhum pouco baseada na ciência e no trabalho. Essa ideia era nada mais então que uma "sede de nomeada" - isto é, a tentativa de obter fama e glória, de figurar na opinião pública como um cartaz nas ruas, como um rótulo de remédio. Um desejo de se tornar a pura superfície de uma propaganda publicitária. Como diz, no cap. II, ele buscava, de um lado, "filantropia e lucro" (interesse burguês), de outro "sede de nomeada" (interesse tipicamente pré-moderno, baseado na paixão por títulos honoríficos e hierárquicos).

c) Finalmente, como Brás não tem nenhum "ser" fixo, nenhum caráter valoroso e honrado, então, ele pode se misturar e se confundir com a esfera do Outro em geral. Para começar, ele violenta o próprio leitor, invade o seu espaço e o ameaça com piparotes e frases que simplesmente o desprezam (o leitor é o único "senão" do livro). Eis o capricho autoritário de nossa elite transformado em uma escrita violenta.

A falta de lei nesse país permite o vale-tudo, inclusive um morto narrar um livro. Uma passagem livre do Mesmo (ou do Eu) no Outro, sem respeito a qualquer limite (moral, social, legal, narrativo). Toda lei, toda resistência do real, é virtualmente abolida. Assim, Brás é por um lado um homem culto, por outro, pura casca e ornamento, rebaixando a filosofia à ignorância, à piada e a teoremas sem pé nem cabeça (filosofia narcisista da ponta do nariz, aforimas estúpidos etc.). Brás é tão sutilmente inteligente quanto abertamente louco ou paranoico, como seu amigo Quincas Borba. É tão refinado (citando Dante, Molière ou Shakespeare) quanto perverso e brutal (batendo em Prudêncio, legitimando o seu cunhado escravista Cotrim etc.). Assim, ainda, Brás é tão ativo e dominador quanto um ser passivo, deixando Marcela ou Virgília tomarem conta de si (aliás, Virgília faz o papel de homem do casal, - ela é Vir, viril). Na Câmara dos Deputados, o seu único projeto político é querer reduzir o tamanho da barretina da Guarda Nacional, algo que não tem nada de político. No fim da vida, a sua melhor ação não passa de filantropia medíocre (em que pisa mais uma vez em Eugênia) e desejo de fama e glória, sem nenhum compromisso verdadeiro para com o país. Algo que lembra diretamente a lei do Ventre Livre: cheia de boas intenções, mas na prática mantendo os filhos de escravos nas fazendas como mão-de-obra não-paga até os 21 anos.

Quando o Eu não se distingue do Outro, temos então instaurado um regime de confusão, perversão, loucura e violência, em que tudo é invadido pela esfera do outro. No fundo, um regime de exceção estrutural às leis e normas, o fruto estéril de um país em que o indivíduo burguês europeu não se constituiu plenamente - ou que se constitui apenas pela metade. A pior mazela dessa indistinção entre o Mesmo e o Outro é então esta: o Brasil moderno, que prometia já uma imensa riqueza com o café, dificilmente se separa e se distingue do atraso, ou melhor, só é possível com base nos elementos mais arcaicos e atrasados, em que a história falha e não acontece. Eis o Brasil Morto que ainda hoje segue vivendo e nos alienando.