18 agosto, 2005

ALGUÉM BATENDO À PORTA - Entrevista: Pra que serve a crítica do valor

ALGUÉM BATENDO À PORTA
Pra que serve a crítica do valor ?
(Entrevista ao Centro de Mídia Independente)



*1) Y.: Levando em conta que a produção material, a atividade humana, não tem possibilidade de ser suprimida, por ser de certa forma ela a base da sociedade, no que se fundamenta a idéia de negação do trabalho?*
Cláudio R. Duarte: Antes de mais nada, trata-se de uma negação dialética, não de uma anulação do mundo material - o que seria um absurdo. Qual é o papel da produção material na vida social? Será que ela sempre foi o "centro" da sociabilidade humana, como se diz hoje, no capitalismo? A "sociedade do trabalho" sempre existiu? Acho que não. Então, temos de historicizar o conceito de "trabalho" e limitá-lo às sociedades modernas, isto é, às que se cristalizam em torno do mercado e do Estado. Só a modernidade impôs a atividade produtiva como centro da sociabilidade, pois ela está fundada na produção incessante de mercadorias para a valorização de capital. Nas sociedades pré-capitalistas o "tripalium" sempre fora associado a sofrimento, como condição natural de escravos ou servos, isto é, de pessoas menores, sem autonomia moral e "política". Se o trabalho existia era de modo totalmente negativo, como escravidão e servidão, de forma muito diferente da nossa sociedade. Não havia um "mundo do trabalho", estética e moralmente avaliado como positivo tal como hoje fazemos, pois a vida social e "política", o ócio e as atividades reprodutivas, eram muito mais importantes que a dura labuta. E por isso mesmo ela era mais reduzida, não um fim em si mesmo, como no capitalismo. No extremo oposto, se estudarmos as sociedades indígenas, veremos que muitas reduzem a atividade produtiva ao máximo: a apenas um momento do todo de sua reprodução. São, por isso, "sociedades do ócio", que recusam o trabalho (tanto como o Estado, a propriedade e a acumulação), como desvendou Pierre Clastres. Digamos que nesse caso temos uma "cultura", muito mais integrada que a nossa, onde a produção material não determina nem domina os outros momentos da vida. Caçar, pescar, dançar, cultuar, cuidar dos filhos etc. não são atividades hierarquizadas e nem são esferas separadas.
*2) Y.: Como fica o marxismo nesse caso?*
CRD: O marxismo sempre tentou reduzir as formações sociais anteriores ao capitalismo, de forma funcionalista, a um apêndice de sua produção, como se as necessidades econômicas fossem as que imperavam sempre sobre o todo, tal como no capitalismo: nesse sentido, o marxismo da "ontologia do ser social", fundado antropologicamente, sempre cai num anacronismo funcionalista. Só a modernidade transformou o mundo em esferas funcionais, com espaços completamente separados: a do lazer, da cultura e da arte (com os museus, clubes etc.), a da política (com as arenas políticas especiais), a da vida privada (e o lar burguês), e, finalmente, a do trabalho (fábricas, escritórios etc.), que domina e determina todas as anteriores, como manifestações diretas ou invertidas de si mesma. Apenas na moderna "sociedade do trabalho", enfim, podem atividades qualitativas tão distintas como dançar, cozinhar, ensinar, pescar ou cultuar ser homogeneizadas sob o nome genérico de "trabalho". Isso é uma abstração, não como a palavra "fruta" ou "árvore", é claro, mas uma "abstração real" de todas atividades humanas sob um único conceito universal. E isso significa uma violência brutal. Quem abstrai é o mercado, através da lei do valor.
*3) Y.: Como definir o trabalho moderno, então?*
CRD: A moderna atividade produtiva é qualquer atividade que, abstraída de suas qualidades e do controle direto dos homens, pode se tornar equivalente a qualquer outra, porque é medida pelo valor, tornando-se um meio de produzir mercadorias e, portanto, de valorizar capital. No capitalismo, as atividades produtivas são sempre "trabalho abstrato" - e abstrato em vários sentidos: no sentido de que está separado completamente dos outros momentos da vida (arte, lazer, política, vida doméstica, destinada às mulheres etc.); no sentido de que é uma atividade produtiva genérica, completamente abstraída do controle e das necessidades reais dos produtores, do sentido ou da qualidade do que se faz, pois o que importa é o valor monetário que ela traz; no sentido de que o produtor é um ser abstraído - separado - dos meios de produção, isto é, tornou-se uma pura força de trabalho, um "sujeito" monádico, desenraizado, destinado a perambular pelo mundo atrás de seu sustento, sem objeto disponível diretamente; abstrato ainda porque cada trabalho concreto, já por si abstrato, é abstraído ainda mais uma vez na troca de mercadorias, sujeita aos padrões de produtividade sociais mais altas ao nível mundial. Este é o mundo do trabalho: o da abstração. "Trabalho", portanto, é a proto-forma da experiência social moderna, marcada estruturalmente pela abstração, pela insensibilidade e o desvario produtivista do homem moderno, constituindo sua alienação e cisão esquizofrênicas, no sentido marxiano e também psicanalítico destes termos. Vê-se como a crítica vai além do termo linguístico: chame-a produção ou economia, dá no mesmo. Só o capitalismo colocou a produção, a economia, no centro, com o cetro na mão.
*4) Y.: No livro "Manifesto Contra o Trabalho", o Grupo Krisis afirma que o trabalho está em crise e conseqüentemente o Estado também. De acordo com essa idéia, como se relacionam as duas crises?*
CRD: Trabalho, Capital e Estado são uma só coisa, isto é, uma identidade de contrários, através da forma-valor comum a todos eles. Se o valor entra em crise, esta tríade também tem de entrar em crise. A crise do trabalho tem a ver, no fundo, com as tecnologias da 3ª Revolução Industrial, que poupam cada vez mais trabalho produtivo na produção da riqueza. As máquinas avançadas substituem em massa o trabalho na produção de riqueza. Isso significa que cada vez mais teremos uma massa gigantesca de produtos (riqueza) com um mínimo de valor agregado em cada um deles. Surgem, então, grandes problemas para a realização dessa massa de mercadorias com valor unitário reduzido: daí a tendência à mundialização, à abertura transnacional de mercados, à concorrência bestial e nômade pelo mundo. É assim que surge também a tendência geral à desvalorização do capital, pois o valor real embutido nas mercadorias não compensa os gastos de sua produção e circulação. Daí a chegada dos "métodos flexíveis" de produção e circulação. O capital perde a capacidade de explorar e integrar trabalho abstrato em massa, e, no fundo, vai perdendo o seu alimento tão estimado, o trabalho, não por falta, mas por excesso de acumulação. Este então foge e "vagabundeia" no mercado financeiro, com custos baixos, impostos reduzidos e lucros altos, por incapacidade de manter as forças produtivas produzindo mais do que já produzem. Daí o crescimento econômico baixo, o desemprego estrutural, a desvalorização do próprio trabalho, com perda do poder de compra dos salários, a escalada do subemprego, da violência etc.
*5) Y.: Onde começa, então, a crise do Estado?*
CRD: Neste processo de crise, cheio de intermediações complexas e contraditórias, o Estado entra em déficit estrutural, pois já não consegue, e isso há tempos, arrecadar impostos suficientes para alavancar a produção nacional em crise, coisa de pelo menos 3 décadas. O Estado se endivida estruturalmente (lembre-se das dívidas brasileiras p.ex.), os países mais fracos em competitividade entram numa fase de "desindustrialização endividada", o Estado recorre ao mercado financeiro global para angariar fundos, é obrigado a cortar radicalmente os gastos públicos, fica refém das políticas neoliberais para conseguir novos empréstimos, tudo numa esteira fatal que leva ao fim declarado da política: quando o FMI e o Banco Central mandam ditatorialmente sobre o país, como vozes diretas do mercado, então vai se percebendo que o Estado perde sua antiga autonomia, já relativa, até ser esmagado pelas rodas desse totalitarismo econômico mundial. Há margens de manobras ainda, mas somente para os Estados em melhor posição na divisão internacional do trabalho. Esse processo portanto é muito contraditório, não totalmente sincrônico, pois se diferencia segundo o contexto nacional e regional.
*6) Y.: E como é que o marxismo, sem compreender a revolução microeletrônica, torna-se incapaz de compreender criticamente o desenvolvimento negativo do capitalismo?*
CRD: Antes de mais nada, a 3.a revolução industrial sozinha não explica nada. Isso seria repetir o esquema arcaico do marxismo mais tosco, que deposita todo o movimento da sociedade na evolução das forças produtivas. Ora, estas sempre são reguladas por relações de produção históricas. A robótica, a informática, a biotecnologia etc. aumentam a produtividade do trabalho, excluindo grande parte da mão-de-obra excedente para o exército de reserva, é certo, mas isso não acontece de forma direta, pois ocorre através da mediação de formas de regulação econômico-políticas "neoliberais" e "flexíveis", que desempregam e precarizaram ao máximo a condição dos trabalhadores, que vão perdendo todo tipo de segurança social e autonomia política. O proletariado é cada vez mais um sujeito sujeitado, fragmentado como classe, vivendo à caça de oportunidades individuais de ganhar seu dinheiro. Nesse ponto, o marxismo brasileiro tem feito análises críticas bastante corretas e precisas. O problema dessas análises talvez sejam as ilusões, socialmente justificadas, da possibilidade de um novo ciclo de desenvolvimento econômico nacional através de políticas neokeynesianas. Imagina-se ser possível, tanto quanto se passa a desejar realmente, a reconstrução de um Estado forte, economicamente investidor e politicamente antineoliberal: por um lado, um Estado que alavanque, com seus investimentos infra-estruturais, o crescimento econômico para gerar mais empregos e construir um mercado de massas; por outro, uma regulação nacional mais forte da concorrência mundial, tal como no modelo chinês, que possibilitaria ao país proteger sua indústria, taxar o capital especulativo, para este retornar ao investimento produtivo, recuperando então as políticas sociais, etc.
*7) Y.: De onde surge aquela velha e boa pergunta: o que fazer?*
CRD: Bem, cabe perguntar, primeiro, de onde surgiria a força política para exercer toda essa pressão democrática (sem romper com a ordem capitalista portanto) sobre o capital e a concorrência mundial - isso é uma incógnita. Aqui, nós da esquerda hoje patinamos (sem falar na crise do PT, que vinha de longe), já que o trabalho vivo objetivamente vai sendo cada vez mais desvalorizado pelo trabalho morto mundialmente acumulado em ciência e tecnologia, a classe trabalhadora vai se fragmentando etc. Em segundo lugar, cabe a pergunta sobre a fonte do crédito para tais mega-investimentos estatais, face a um Estado já estruturalmente endividado e demolido. Tudo isso nos mostra que o que está em jogo não é uma questão de pura e simples regulação política do sistema, no caso, o de uma rígida e perversa regulação neoliberal-flexível. Aqui, então, encontra-se o cerne da ilusão da esquerda (oposta ao economicismo da direita), a saber: o seu politicismo estatista. As forças produtivas tecnicamente superavançadas, para não dizer diretamente "revolucionárias" (pois máquinas não fazem revolução), tendem a limitar e repelir objetivamente os reformismos políticos da esquerda.
*8) Y.: Será que esse processo de crise é tão inevitável?*
Vamos fazer um raciocínio experimental, meio maluco: se a luta dos trabalhadores ressurgisse com força, se cortássemos pela raiz nossa atual flexibilização do trabalho, o desemprego provavelmente aumentaria ainda mais, pois o capital aumentaria ainda mais seus custos de produção (já muito altos, segundo o ponto de vista da concorrência mundial). A produtividade global bateria à nossa porta, causando falências em massa. Então, haveria uma contra-tendência maior ainda, por parte dos capitalistas, para revolucionar e automatizar a produção, ajustando-a a estes padrões mundiais, para contrabalançar o poder operário subitamente ascendente. Novamente teríamos a onda de desemprego e subproletarização. A objetividade histórica vai tornando-se incontornável: o trabalho deixou de ser uma forma de integração social garantida. Por isso, é positivo que vá surgindo na Europa a idéia de desvinculação entre trabalho e renda (programas de renda mínima, renda cidadã etc.). Assim, neste raciocínio hipotético, por incrível que pareça, a flexibilização, a precarização, o subemprego, acabam por nos ajudar a criar e a manter muitos empregos - precários, miseráveis e subhumanos é certo (na hipertrofia do setor de serviços por exemplo) - mas empregos reais, e, na verdade, quase sempre subprodutivos do ponto de vista da concorrência mundial. Eles já seriam, deste ponto de vista, a nossa "proteção social" contra o total desemprego (falências em masssa, etc., a degringolagem ao modo africano), que já estaria batendo a nossa porta.
*9) Y.: E a esquerda politicista, onde mais erra em tudo isso?*
CRD: A antiga esquerda socialista ou social-democrata que chega ao governo, agora totalmente nas vestes do velho populismo, tem de mostrar a verdadeira face desse seu antigo voluntarismo politicista: pode prometer a criação de 10 milhões de empregos, mas realmente apenas consegue administrar a crise do trabalho abstrato com medidas assistencialistas, e, justamente, flexibilizadoras do trabalho (pois estas são as únicas que geram realmente "emprego"), além de outras sob medida para a continuidade da hegemonia do capital especulativo. Isso tudo sob a ideologia deslavada da responsabilidade fiscal, da ética na política, do compromisso com o povo etc. Estamos vendo no que tudo isso se tornou com o afundamento do PT. A esquerda acadêmica, neste contexto, também não se cansa em apontar a sua derrota teórica e prática, de forma tácita é claro, com frases de valorização moral e quase-religiosa do trabalho, típicas do protestantismo e do produtivismo do século passado, em suma, de que só o trabalho das massas dignifica a vida humana, além de ser, "ontologicamente", o mais importante gerador da riqueza social em geral. Ora, no contexto da 3.a revolução industrial isso torna-se uma bela mentira: cada vez mais valores de uso (riqueza) são fabricados, só que com o mínimo de valor agregado por unidade, justamente pelo aumento do capital constante cientificizado em geral. As máquinas avançadas geram a maior parte da riqueza material, enquanto o trabalho vivo, mais e mais técnico-científico, reduzido a um mínimo, é responsável pelo restinho do valor real de cada produto. A esquerda, confundindo qualquer atividade humana (ou trabalho concreto), efetivamente produtor de bens, com o trabalho abstrato-produtivo, também confundirá riqueza e valor - como se estivéssemos na "idade de ouro" da acumulação da mais-valia real, e não na do capital especulativo, sem fundamento real econômico (valor), mero preço, dinheiro sem substância.
*10) Y.: E como retomar a crítica radical do capitalismo e do trabalho?*
CRD: A crítica neste tipo de esquerda é reduzida a um mínimo, à superfície. Ou seja, o pior em tudo isso, é que a velha e boa crítica do fetichismo da mercadoria, a da insanidade da acumulação de trabalho abstrato sem limites, isto é, sem qualquer relação viva com as necessidades reais e o controle dos homens, com todas as suas implicações desastrosas para a vida social, cultural e ambiental – o que mais deveria nos importar – esta crítica é quase totalmente desvalorizada, recalcada, esquecida ou simplesmente confundida com uma crítica estética e moral do consumismo. Quando muito é adiada ao infinito. A forma-mercadoria parece se naturalizar completamente, mesmo na esquerda política, já que a luta prioritária passa a ser a recomposição dos salários, a recomposição da classe, para lutar por mais crescimento econômico, portanto mais trabalho abstrato, mais integração de massas no "feliz" mundo das mercadorias. O programa radical de "auto-abolição do proletariado" é simplesmente apagado da história. O sonho "unidimensional" que resta, como diria Marcuse, seria tornar cada brasileiro um novo americano classe média, precisamente quando seu modelo original há muito já mostrou a face mórbida da decadência social e cultural, e agora também econômica. Mas se o frágil biombo da economia especulativa vir abaixo, talvez aí chegará a hora do acerto de contas. Daí renascerão as velhas ideologias do trabalho e da nação, da propriedade e da liberdade democrática, provavelmente com os EUA à frente. É aí, afinal, que a crítica do valor e do trabalho, feita hoje mais ao nível ideológico que na prática, encontrará a sua plena atualidade. Os movimentos sociais atuais terão então de encarar sua auto-crítica, passando pela crítica anti-capitalista e anti-estatal - ou definitivamente trancar a porta para a história que lá fora bate, lhes restando, então, se acotovelar em seu estreito quarto de despejos ideológicos, à procura das velhas fantasias rotas e rasgadas.
(JULHO/AGOSTO 2005)
Link do original:
http://www.midiaindependente.org/pt/red/2005/08/327224.shtml

3 comentários:

Suzana Gutierrez disse...

Claudio
Ficou ótima a articulação do pensamento, bem didática :)
abraço,
Su

Anônimo disse...

oi claudio, parabéns pela entrevista e pelo blog! carreira solo? e os outros projetos, o grupo de discussão, o vocabulário etc.? abraço, edson gil

Suzana Gutierrez disse...

Hoje, 31/8, foi o dia escolhido para o que eu entendo ser uma grande linkania, o BlogDay. Fazendo a minha parte indiquei este blog e estou aqui para contar isso.
abraço,
Su